Ouça este conteúdo
Uns 15 anos atrás, acompanhei um amigo em uma série de visitas a igrejas evangélicas de Belo Horizonte, para falar sobre conservação ambiental e apresentar a organização que ele coordenava. À época isso era novidade; a ONG A Rocha Internacional foi fundada em 1983, desenvolvendo um fantástico trabalho de conservação ambiental, primeiro em Portugal e, depois, em várias partes do mundo, combinando valores cristãos e ciência da conservação, mas sua expansão internacional ainda era recente. E os evangélicos brasileiros mal sabiam a respeito.
Foi uma experiência decepcionante, mas também intrigante. Diante da bela apresentação sobre o dever cristão de cuidar do meio ambiente, não se levantaram objeções morais. Ninguém reagiu dizendo que isso não importava; nem objeções políticas, ou mesmo “científicas”, tais como a negação da mudança climática, hoje comum. Nada disso; o argumento apresentado foi de que “o mundo vai acabar”.
É isso mesmo que você leu. “Como a Bíblia diz que o mundo vai acabar, e que vamos para o céu, por que perder tempo cuidando do planeta? É melhor nos ocuparmos de pregar o evangelho.”
Nos círculos evangélicos, há muitos anos circulava uma concepção segundo a qual Jesus virá do céu buscar o seu povo e levá-lo para as moradas eternas; e o mundo, como o conhecemos, será destruído. Se é assim, pra quê cuidar do meio ambiente?
Para evitar confrontos, esse meu amigo evitava a discussão teológica e saía pela tangente. Não o culpo por isso, àquela altura; parecia-lhe que esse debate tiraria o foco. Lembro-me de ficar surpreso, mas não inteiramente; em algum lugar da cachola eu sabia que mais cedo ou mais tarde esse argumento iria emergir, e que teríamos de encará-lo. O caso é que, nos círculos evangélicos, há muitos anos circulava uma concepção escatológica (do grego eschaton; uma doutrina sobre o destino do mundo e “as últimas coisas”) segundo a qual Jesus virá do céu buscar o seu povo e levá-lo para as moradas eternas; e o mundo, como o conhecemos, será destruído por uma grande conflagração, por meio do fogo. A hinologia evangélica inclui algumas canções, como O Rei Está Voltando, que antecipam desaparecimentos e aviões caindo, devido ao arrebatamento da igreja para se encontrar com Cristo:
O Mercado está vazio, seu trabalho já parou
O martelo dos obreiros, seu barulho já cessou
Os ceifeiros, lá no campo, terminaram seu labor
Toda Terra está em suspense, é a volta do Senhor!
REFRÃO: O Rei está voltando, o Rei está voltando
A trombeta está soando, o meu nome a chamar
[Sim] o Rei está voltando, o Rei está voltando
Aleluia! Ele vem me buscar!
Os vagões de trens vazios,
passam ruas, e quarteirões
Aviões sem seus pilotos, voam para destruição
A cidade está deserta, sua agitação parou
Sai a última notícia: “Jesus Cristo já voltou!”
O Rei está voltando, o Rei está voltando
A trombeta está soando, o meu nome a chamar
O Rei está voltando, o Rei está voltando
Aleluia! Ele vem me buscar!
Vejo a multidão subindo, ouço o coro angelical
Todo o céu está se abrindo, em um bem-vindo sem igual
Como o som, de muitas águas, nós ouvimos ecoar
“Aleluias ao cordeiro, nós chegamos para o lar!”
O Rei está voltando, o Rei está voltando
A trombeta está soando, o meu nome a chamar
[Sim] o Rei está voltando, o Rei está voltando
Aleluia! Ele vem me buscar!
Sendo cristão evangélico, devo dizer que compartilho da crença em um retorno literal de Jesus Cristo; trata-se de uma implicação da fé em sua ressurreição, como consta nos Evangelhos. Mas o ponto a destacar, no hino, é seu caráter avertivo; a expectativa religiosa da ida para o céu é portadora, de modo sutil, de uma expectativa de abandono da terra. “Ele vem me buscar.” E finalmente irei embora!
Alguns mestres bíblicos como Artur Bloomfield, em O Futuro Glorioso do Planeta Terra, de 1974, bastante populares até o princípio dos anos 90, faziam, inclusive, uma conexão explícita entre textos bíblicos falando sobre um juízo divino “pelo fogo” com uma futura guerra nuclear. Que teria, supostamente, uma função purificadora. Ainda adolescente, fiquei bastante impressionado com esse livro. Como outros jovens cristãos, seguia entusiasticamente as notícias de guerras e desastres naturais. A Guerra Fria, então, era um prato cheio. “Será que Jesus volta agora?”
Mas em 2005 eu me sentia, pelo contrário, exasperado com os efeitos dessas ideias. Parecia-me evidente que essa concepção da história e da esperança cristã legitimaria a mais completa refugação de nosso planeta.
Há significativa evidência de que cristãos evangélicos têm uma visão positiva da questão ambiental, e mais: acima da média nacional
O curioso, entretanto, é que eu não percebia, nos cristãos que sustentavam tais ideias, nenhum desprezo pela criação, per se. Não se tratava de uma negativa moral. Lembro-me com clareza que a maioria dos evangélicos que eu conhecia associava a beleza da natureza com o Criador. Não por acaso, em muitas cidades brasileiras, eles ainda hoje buscam os montes como lugar de oração e retiros espirituais em meio à natureza. Nos batistérios de igrejas tradicionais, geralmente no centro do altar – precisamente onde, nas igrejas católicas, tradicionalmente ficava o sacrário –, temos um batistério, uma pequena piscina para a imersão dos convertidos, e sobre ela a pintura de uma paisagem natural. Hoje a estética dos locais de culto evangélico mudou bastante, mas esse padrão é ainda visível, por exemplo, na nave do templo da Assembleia de Deus Central, à Rua São Paulo, em Belo Horizonte. Lembro-me de minha avó, uma líder religiosa batista que ensinava explicitamente essa escatologia pessimista, sorrindo, cantando e agradecendo a Deus diante de uma bela visão das montanhas mineiras. Foi a minha primeira memória do “mar de Minas”. Como é que pode?
Segundo já tive a oportunidade de mencionar em nossa coluna, há significativa evidência de que cristãos evangélicos têm uma visão positiva da questão ambiental, e mais: acima da média nacional. Isso foi demonstrado por um estudo de Amy Erica Smith e Robin Veldman, publicado no Journal for the Scientific Study of Religion (“Evangelical Environmentalists? Evidence from Brazil”, 2020), segundo o qual evangélicos e pentecostais praticantes adotam, simultaneamente, crenças sobre o outro mundo e soluções deste mundo para problemas ambientais. Além disso, por estranho que pareça, eles acreditam que é possível combinar ações humanas com oração e expectativa de intervenção divina no assunto da crise ambiental.
Podem esses dois conjuntos serem reconciliados? Aparentemente os sentimentos morais dos evangélicos estão em contradição com a sua escatologia. E a contradição não é um problema apenas local; esse paradoxo foi herdado das missões evangélicas anglo-saxônicas. O biblista inglês e bispo de Durham N. T. Wright relatou uma experiência similar no Canadá, por volta de 1983 – mesma época do nascimento da ONG d’A Rocha:
“Deparei-me pela primeira vez com o problema que estou discutindo aqui durante um fim de semana de palestras em Thunder Bay, Ontário, em 1982 ou 1983. Eu trabalhava em Montreal na época e fui convidado a falar sobre Jesus no contexto histórico, um assunto sobre o qual eu vinha palestrando que, por fim, se transformou em meu livro Jesus and the Victory of God… Para minha surpresa, o principal tema das perguntas não era o significado das parábolas ou da cruz, nem a encarnação, em si, mas ecologia. Algumas pessoas na igreja diziam que não adiantava se preocupar com as árvores, as chuvas ácidas, a poluição dos rios, dos lagos e das águas ou com a mudança climática em relação à época do plantio e da colheita, porque Jesus estava voltando logo e o Armagedom destruiria o mundo presente. Além de não adiantar se preocupar com o estado do ecossistema, isso era não algo espiritual, mas uma forma de mundanismo que distraía as pessoas da verdadeira missão do evangelho, que era a salvação e o sustento das almas para uma eternidade espiritual.”
Aparentemente os sentimentos morais dos evangélicos estão em contradição com a sua escatologia. E a contradição não é um problema apenas local; esse paradoxo foi herdado das missões evangélicas anglo-saxônicas
Trata-se, evidentemente, de um problema endêmico nos círculos evangélicos. Segundo Smith e Veldman, os evangélicos na América do Norte em ainda mais dificuldade com a ideia de conservação ambiental do que os correligionários brasileiros, mas há essa região de convergência geral: o obstáculo escatológico. O que se pode fazer a respeito disso?
O que temos, no caso, é um interessante exemplo de como um grupo religioso pode ter uma predisposição em seu ethos e até mesmo em seu pathos religioso, para determinada atitude moral e social, mas na prática tropeçar nas próprias pernas teológicas. É como se os sapatos evangélicos estivessem com os cadarços amarrados um ao outro. O que ilustra o ponto: ideias têm consequências.
Em minha leitura, a hegemonia de uma escatologia-do-fim-do-mundo é menos uma necessidade estrutural da fé e da teologia evangélica, e muito mais um sintoma, um recurso psicológico de um estrato social que experimenta um grau de estranhamento e de exclusão social. Ela serve ao propósito de cerrar as fileiras da religião, fornecer consolo terapêutico e reconciliar o crente com a experiência de alienação provocada, muitas vezes, por um ambiente hostil à sua fé. O que, de resto, parece ser uma das causas de crenças apocalípticas.
Mas antes que alguém pense em desprezar inteiramente esses sentimentos, cabe uma qualificação: lembro que uma antítese espiritual contra o “mundo”, enquanto sistema construído para operar como se Deus não existisse, é inevitável e até sadia para a comunidade cristã, do contrário ela não poderá servir à sua função de testemunha profética em sua geração. O problema não residiria nessa antítese, mas antes na confusão entre “mundo”, enquanto sistema civilizatório anti-Deus e desumano, e “mundo” enquanto boa criação de Deus. Essa foi a confusão promovida pelo antigo movimento gnóstico: a Blasphemia Creatoris.
A primeira boa notícia é que, da contradição entre os sentimentos morais evangélicos quanto ao meio ambiente e sua escatologia popular, podemos suspeitar que esse rubicão ainda não foi cruzado, ou não completamente. Pode haver elementos protognósticos no evangelicismo, mas em geral esse limite não foi cruzado.
A segunda boa notícia é que, desde os tempos daquelas visitas com meu amigo ambientalista cristão, noto as coisas mudando significativamente. A ascensão social e o maior engajamento cultural vêm tornando o cristianismo evangélico um pouco mais intramundano. E mesmo o envolvimento político conservador não suprimiu os sentimentos conservacionistas dos evangélicos (eu diria, pelo contrário, que conservadorismo e conservacionismo se pertencem mutuamente). Mas o mais interessante de tudo é que uma lenta transformação teológica vem acontecendo, com mais e mais evangélicos compreendendo que a verdadeira Esperança Cristã não se confunde com um desejo de partir e mandar o mundo às favas. Pelo contrário, a Esperança enche o nosso peito com a vontade de cuidar de um planeta que ainda tem um futuro. E o que garante esse futuro é a própria ressurreição de Cristo.
Há esperança para o envolvimento de evangélicos com a conservação ambiental, e a fonte dessa esperança reside na Esperança Cristã. Essa compatibilidade entre esperança e conservação será o assunto de uma próxima coluna.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos