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Cena do filme "A Missão", de Roland Joffé
Cena do filme “A Missão”, de Roland Joffé| Foto: Reprodução

Causou comoção a recente nomeação de Ricardo Lopes Dias, em 5 de fevereiro, para o cargo de Coordenação de Proteção a Índios Isolados e de Recente Contato na Funai. Moções de indignação se espalharam pela imprensa, com entrevistas ferinas de intelectuais do campo das humanidades, especialmente antropólogos e indigenistas, denunciando mais um ato de genocídio contra os indígenas brasileiros. Rapidamente o Ministério Público Federal, sempre pronto a investir com galhardia contra o dragão da influência religiosa no mundo público, agiu em relação ao fato entrando com ação liminar em 11 de fevereiro para reverter a nomeação de Lopes Dias, alegando “conflito de interesse”. Como se o laicismo militante que possuiu o corpo do MPF não o colocasse, nesse caso, em frontal conflito de interesse contra 90% da população que ele pretende defender.

Diante dessa articulação do MP, a Associação Nacional dos Juristas Evangélicos (Anajure) se movimentou para solicitar participação no processo como amicus curiae, solicitação negada no último dia 18 pela juíza Ivani Silva da Luz, da 6.a Vara Federal do Distrito Federal, de modo estranho e inexplicado.

Em todo o caso, a liminar do MP foi indeferida. Segundo a juíza, não é possível afirmar de antemão e em tese que a mera nomeação represente conflito de interesses com a política indigenista do Estado, nem violação da Constituição, nem conflito com os sistemas de direitos humanos, nem desvio de finalidade. De modo que, por ora, Lopes Dias fica no cargo.

O caso certamente seguirá por algum tempo, mas nosso assunto não é exatamente esse – se o nomeado é ou não a pessoa mais indicada para o cargo –, mas a questão de fundo que se ergueu: evangelizar indígenas é uma violação? Ou, mais amplamente: a prática da evangelização e do proselitismo religioso é algo criminoso, ou contrário aos direitos humanos, ou manifestação de intolerância religiosa, ou um gesto de violência cultural, ou coisa antiética?

É crime?

Em matéria de 13 de fevereiro de 2020 do site The Intercept, intitulada “Pastor assume cargo na Funai para converter índios”, foi alegado exatamente isso: que a evangelização de indígenas seria vedada pela Constituição: “O artigo 231 da Constituição Federal proíbe a evangelização dos indígenas”.

Já que, lendo com boa fé, a maior parte das pessoas inocentemente acreditará no probo veículo de imprensa, será proveitoso citá-lo diretamente: “Artigo 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

A liberdade de religião ou crença não é uma liberdade meramente “privada”, ou interna à consciência, embora tenha aí seu fundamento

A estripulia do panfleto de esquerda não poderia passar despercebida. O fato é que o mencionado artigo da Constituição Federal não diz absolutamente nada nem próximo do que é alegado no Intercept. Ele certamente garante a proteção dos indígenas e de seus modos de vida, mas isso não significa per se uma vedação ao contato e ao exercício da evangelização, mas de atos que intencionem a mera destruição de seu modo de vida.

Na verdade, tudo o que é direito dos indígenas no artigo 231 a respeito do reconhecimento de sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, excetuando-se a seção sobre direito à terra, é uma aplicação particular do direito que todos os seres humanos têm. E isso nunca foi, nem jamais será uma vedação ao proselitismo religioso.

É contrário aos direitos humanos?

É bastante promovida a tese de que o proselitismo religioso seria um gesto de intolerância religiosa e uma violação dos direitos humanos. Nada mais falso. Vamos aos elementos:

“Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, em público ou em particular.” (Artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948)

“1. Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência e de religião.  Esse direito implica a liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças, bem como a liberdade de professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto em público como em privado.

2. Ninguém pode ser objeto de medidas restritivas que possam limitar sua liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças.

3. A liberdade de manifestar a própria religião e as próprias crenças está sujeita unicamente às limitações prescritas pela lei e que sejam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos ou liberdades das demais pessoas.

4. Os pais, e quando for o caso os tutores, têm direito a que seus filhos ou pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja acorde com suas próprias convicções.” (Artigo 12 da Convenção Americana dos Direitos Humanos, 1969)

Segundo o documento fundador do Sistema ONU de Direitos Humanos, e o equivalente em nosso principal sistema regional, da OEA, a liberdade de religião ou crença não é uma liberdade meramente “privada”, ou interna à consciência, embora tenha aí seu fundamento. A religião é, por natureza, uma experiência coletiva, envolvendo não apenas sentimentos, mas discursos, práticas sociais e instituições.

É fato que muitas vezes a religião realiza um movimento universalizador ou “católico” por sua própria natureza. Por essa razão grandes religiões, como o Judaísmo, o Cristianismo, o Islã e o Hinduísmo, eventualmente associaram-se à racionalidade filosófica para compor grandes padrões de interpretação da totalidade da experiência humana e da realidade. Isso se dá por um aspecto, interno às religiões, que é o desejo pelo bem e pela verdade.

De modo que, a não ser na imaginação fantástica do indivíduo secularizado e urbano moderno, o indivíduo “W.E.I.R.D.” segundo a descrição do psicólogo social Jonathan Haidt (Western, Educated, Industrialized, Rich & Democratic), a religião não é uma experiência privada. A religião é sempre uma geradora de mundos simbólicos e de simbiose social e, pelo menos no caso das grandes crenças, é também uma cosmovisão, uma hipótese de universalidade.

O que é protegido envolve não apenas a crença, mas a prática, o culto e a observância, inclusive em público. Ou seja, o direito de manifestar publicamente a própria religião. Admite-se certamente que, quando tal manifestação colocar em risco a segurança, a ordem, a saúde ou a moralidade, pode ser necessário estabelecer limites – seria o caso, por exemplo, de versão wahabita do Islã, com seu culto ao terrorismo, ou, para dar um exemplo próximo, da presença de missionários cristãos entre grupos indígenas sem os cuidados necessários para evitar transmissão de doenças e acesso inadvertido a substâncias viciantes.

A Convenção Americana dos Direitos Humanos especifica o direito de “professar e divulgar a religião”, tanto em público quanto privadamente

Mas além disso – e esse ponto é da mais alta importância – é protegido para todas as pessoas o direito de mudar de religião. Esse ponto exige esclarecimento.

Há, no campo da religião ou crença, um elemento muito dinâmico e ao mesmo tempo muito pessoal. A autenticidade religiosa não elimina a conexão coletiva, mas muitas vezes se põe em choque com ela. Para os ocidentais essa autonomia da consciência é tida em alta conta, e mesmo indivíduos muito secularizados sabem honrar o papel de Martinho Lutero e da Reforma protestante para a emergência da liberdade de consciência.

Ocorre, no entanto, que tal liberdade religiosa não pode se realizar sem um campo de pluralidade, sem um “mercado das crenças”. A disponibilização pública dos diversos discursos e práticas espirituais que acreditem ter contribuições de valor universal é condição de possibilidade para um verdadeiro exercício da liberdade religiosa, exatamente como ocorre em qualquer outro campo da sociedade – nos campos afetivos, acadêmicos, políticos ou econômicos, a lógica é similar.

Mais do que isso, a disponibilidade do acesso a diversas crenças religiosas permite o livre exame e o discernimento crítico, em nome da verdade e do bem.

Sim, é certo que nem todos empregarão essa acessibilidade da melhor forma possível; mas isso é o que ocorre com qualquer liberdade. O direito ao devido processo legal não visa deixar bandidos impunes, mas proteger a todos de injustiças; similarmente, a disponibilidade das crenças não visa produzir confusão ou tribalismo, mas crítica e autocrítica, aprendizado mútuo, dúvida ou fortalecimento da crença, validação ou falseamento de suas pretensões de universalidade, enfraquecimento de religiosidades moralmente questionáveis e fortalecimento daquelas que humanizam o ser humano.

E isso nos leva ao tema mais polêmico de todos: a Convenção Americana dos Direitos Humanos especifica o direito de “professar e divulgar a religião”, tanto em público quanto privadamente. Esse direito, corretamente entendido, não é uma negação, mas uma ampliação e uma garantia fundamental para as liberdades pessoais.

O que temos aqui é nada menos que o sagrado direito ao proselitismo religioso. Um direito que protege não apenas a liberdade de todos, mas também a liberdade do discurso de fé, e a possibilidade de procurar e encontrar a verdade suprema sobre a realidade. E – por que não? – a liberdade do descrente de contar a todos sobre a sua descrença.

Ora, indígenas não são menos que pessoas humanas, sujeitos de direitos humanos como todas as outras. E aqui precisamos lembrar a Declaração e Programa de Ação de Viena, resultantes da grande e histórica Convenção dos Direitos Humanos de Viena, em junho de 1993. Essa convenção estabeleceu os princípios da Universalidade, Interdependência e Indivisibilidade dos Direitos Humanos.

O ponto dessa afirmação foi deixar claro que não se pode defender, por exemplo, as liberdades civis fundamentais, ou direitos de primeira geração, e preterir os direitos sociais, econômicos e culturais, ou direitos de segunda geração.

Mas levanto aqui o óbvio: como falar no “direito de autodeterminação dos povos” e na “dignidade humana” do indígena, para em seguida negar o direito à vida, ou o direito à propriedade, ou o direito à liberdade de religião ou crença? Como aplicar a eles alguns direitos e arbitrariamente vedar-lhes o acesso ao debate religioso e filosófico sobre a Verdade suprema? Isso não faz absolutamente nenhum sentido, e constitui um desvio da linguagem universal dos direitos humanos.

Indígenas são participantes do mesmo universo moral, com os mesmos direitos e, como é inevitável, os mesmos deveres

O que poderia ser apenas inferido é explicitamente afirmado na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, de 2007. Essa declaração, que procura reconhecer ao máximo possível a autodeterminação e a capacidade desses povos de manter sua coesão interna e identidade em face à sociedade moderna, é aberta em seu Artigo 1 afirmando que:

“Os indígenas têm direito, a título coletivo ou individual, ao pleno desfrute de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais reconhecidos pela Carta das Nações Unidas, a Declaração Universal dos Direitos Humanos e o direito internacional dos direitos humanos.”

Eles são contados, portanto, como participantes do mesmo universo moral, com os mesmos direitos e, como é inevitável, os mesmos deveres. Declaração similar se encontra na Declaração Americana dos Direitos de Povos Indígenas, de 2016, em seu artigo V.

A declaração também garante o direito a não sofrer assimilação forçada ou destruição de sua cultura, sendo os Estados obrigados a prevenir atos que privem povos indígenas de sua integridade e identidade de seus valores culturais (artigo 8). Por paridade: assim como um Estado nacional pode exigir de imigrantes o reconhecimento e o respeito aos valores nacionais, mas sem tiranizar sua identidade cultural, os Estados devem garantir o direito dos indígenas à sua identidade.

Igualmente, a Declaração Americana (no artigo XVI) garante a proteção à espiritualidade indígena, ao direito desses povos de não sofrer pressões, imposições ou medidas coercivas que limitem suas crenças e símbolos religiosos, e a medidas estatais para garantir que sua vida religiosa seja respeitada e preservada.

Mas nada disso implica a obrigação de assepsia ou de isolamento cultural. Assim como a liberdade de religião ou crença inclui a liberdade de mudar de religião, os direitos dos povos indígenas lhes garantem o direito de manter seus valores, e não a vedação ao contato e à troca cultural. O texto da declaração deixa implícito, inclusive, a necessidade de garantir a participação dos indígenas no sistema internacional de direitos e seu protagonismo político nos Estados dos quais fazem parte.

Mais do que isso, podemos dizer que a tentativa de vedar arbitrariamente o contato cultural constitui, por si só, uma verdadeira violação dos direitos humanos dos indígenas, segundo o artigo 16 da Declaração de 2007:

“1. Os povos indígenas têm o direito de estabelecer seus próprios meios de informação, em seus próprios idiomas, e de ter acesso a todos os demais meios de informação não indígenas, sem qualquer discriminação.

2. Os Estados adotarão medidas eficazes para assegurar que os meios de informação públicos reflitam adequadamente a diversidade cultural indígena. Os Estados, sem prejuízo da obrigação de assegurar plenamente a liberdade de expressão, deverão incentivar os meios de comunicação privados a refletirem adequadamente a diversidade cultural indígena.”

A mesma declaração garante igualmente o direito de “manter e desenvolver contatos, relações e cooperação, incluindo atividades de caráter espiritual, cultural... com outros povos” (artigo 36, inciso 1).

Por que razão um indígena poderia ser instruído sobre direitos humanos e sobre seus direitos políticos, mas não sobre outros aspectos de seu entorno cultural? Como poderão as mulheres e crianças indígenas ter o direito à igualdade de gênero – um dos grandes valores ocidentais – como se afirma no artigo VII da Declaração Americana dos Direitos dos Povos Indígenas, sem apreender os fundamentos filosóficos e morais históricos desses direitos? Como poderão desfrutar do “direito ao desenvolvimento” (artigo XXIX) sem algum tipo de síntese entre seus valores e as noções modernas de desenvolvimento?

A tentativa de vedar arbitrariamente o contato cultural constitui, por si só, uma verdadeira violação dos direitos humanos dos indígenas

Qual a inteligibilidade de uma negação aos cristãos do direito de anunciar o Evangelho aos indígenas, enquanto os valores emancipatórios modernos recebem a permissão de acesso?

Na verdade, o Sistema ONU e o Sistema OEA destacam e protegem o que deve ser protegido: o direito de autodeterminação desses povos, que deverão ver preservada a sua capacidade de dizer “não” a qualquer proposta de síntese ou modificação de sua cultura, valores e religião. Mas proteger sua autodeterminação também significa dar-lhes também a possibilidade de dizer “sim”.

É intolerância religiosa?

Há quem alegue que criticar o sagrado do outro seria violência cultural. Muitos evangélicos, católicos, adeptos de religiões de matriz africana e muçulmanos têm esse entendimento. A crítica por cristãos aos deuses de religiões politeístas tem sido frequentemente representada como gesto de intolerância.

Embora esse seja assunto para outro artigo, quero antecipar a discussão mencionando que tal compreensão tem sido rejeitada no Sistema Internacional de Direitos Humanos.

Por muito tempo a antiga Organização para a Cooperação Islâmica tentou emplacar a tese de que os Estados da ONU deveriam estabelecer leis antiblasfêmia, com o propósito de frear discursos “islamofóbicos” e garantir a segurança de todos (ou seja, não atiçar extremistas islâmicos).

A Comunidade Europeia e os Estados Unidos, entre outros, recusavam essa política apontando o fato comprovado de que tais leis eram empregadas em países islâmicos e outros para perseguir dissidentes religiosos e representantes de outras religiões.

Precisamos aprender a respeitar pessoas de todas as religiões, mas isso não significa a obrigação de respeitar suas divindades, suas concepções de sagrado e suas moralidades

Com a “Primavera Árabe”, estabeleceu-se o “Processo de Istanbul” sobre uma base completamente diferente: estabelecer uma política de defesa da liberdade religiosa e de combate à discriminação sem o recurso a leis antiblasfêmia. E isso levou à Resolução 16/18 da Comissão de Direitos Humanos da ONU, ao Plano de Ação de Rabat e à Resolução 66/167 da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 2011.

O que foi estabelecido por essas resoluções? Que a dignidade das pessoas de cada religião, bem como seus lugares de culto e oficiais religiosos devem ser protegidos da discriminação e da estereotipificação negativa; mas que suas crenças e instituições não gozam da mesma proteção.

Em outras palavras: precisamos aprender a respeitar pessoas de todas as religiões, mas isso não significa a obrigação de respeitar suas divindades, suas concepções de sagrado e suas moralidades. Guardando-se os limites para evitar o discurso de ódio e a estereotipificação destrutiva, a crítica ao sagrado do outro é perfeitamente legítima e não constitui violação de direitos humanos.

Literalmente – podemos dizer – afirmar que o Deus dos cristãos é uma ilusão ou que é moralmente questionável, não é per se intolerância nem discurso de ódio. Tudo depende do contexto. Igualmente, considerar deuses de religiões politeístas como ficções ou forças demoníacas não é, per se, uma negação da dignidade das pessoas que creem em tais deuses.

É, de jure, violência cultural?

Não podemos ser cínicos aqui; evidentemente toda comunicação cultural implica a possibilidade de mutação cultural e, eventualmente, de destruição, e o imperialismo cultural não é uma ficção. E essa é uma preocupação central da Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas de 2007 e da Declaração Americana dos Direitos dos Povos Indígenas de 2016.

A questão é sob qual ângulo se contempla o evento do contato cultural e os processos de destruição e mutação que ele estabelece.

Na perspectiva multiculturalista que hoje domina o pensamento antropológico, segundo a qual, grosso modo, todos os sistemas civilizacionais seriam complexos simbólicos puramente construídos, incomensuráveis e mutuamente relativos, a imposição de quaisquer valores ocidentais modernos, por exemplo, sobre uma cultura tradicional seria um ato de arrogância colonizadora. Ao assumir uma inexistente e inverificável superioridade cultural, o colonizador comete violência moral contra povos tradicionais, uma vez que sua identidade e sentido de dignidade seriam indissociáveis de seus sistemas simbólicos.

Sem ter a pretensão de solucionar, aqui, um debate imenso e já secular, é preciso dizer claramente que essa posição é simplesmente insustentável.

Em primeiro lugar, porque não é possível adotar uma política multiculturalista, e uma ética de alteridade para fundamentar essa política, sem adotar imediatamente uma versão de universalismo. No caso, esse tipo particular de universalismo que já mencionamos: a compreensão historicista do humano, segundo a qual a cultura seria uma construção simbólica e material autorreferenciada e incomensurável, e não uma resposta à realidade e um aperfeiçoamento da natureza humana.

O caso, no entanto, é que mesmo essa visão é ainda derivada do ideal renascentista do homem como demiurgo de si mesmo, “Causa Sui”, fonte de onde brota a compreensão do mundo humano como o “Factum”, aquilo que é meramente feito e não é natureza, tão fundamental de Hobbes a Foucault. Daí viria o “Homo Faber” marxiano e, em associação com hipóteses linguísticas como as de Saussure e Saphir-Wolf, a noção de que culturas seriam sistemas de significados meramente construídos, autorreferenciais e não realísticos.

O fato é que o multiculturalismo trai a si mesmo universalizando inevitavelmente uma visão específica da natureza humana e, como um metafísico de armário, impondo-a como um antilogos universal. Um antilogos que muitos não ocidentais não aceitarão jamais, como os muçulmanos persas, por exemplo.

O problema é que há mil razões para assumir uma visão realista da natureza humana, da linguagem e da cultura como um sistema estruturado de diálogo com a realidade, uma realidade que se impõe e que cobra pedágios do sistema cultural, erguendo-se como régua e juiz independente sobre o seu destino.

Toda a tese de uma clivagem entre humano e natureza, como se houvesse uma tábula rasa sob uma multiplicidade de mundos culturais possíveis e incomparáveis, é um antilogos, irreconciliável com a ciência moderna e com a sabedoria antiga.

Assim, por exemplo, “tratamentos” de doenças, manejo inadequado de recursos, práticas reprodutivas e hábitos de guerra, por exemplo, podem destruir uma civilização; culturas não desabam apenas por tragédias naturais ou por um envelhecimento interno, mas por sua parcialidade e insuficiência no trato com a realidade. Elas são objetivamente avaliáveis; juízos de valor podem ser emitidos sobre elas.

Talvez alguns exemplos de práticas culturais moralmente reprováveis no Oriente, na Europa e nas Américas nos ajudem a esclarecer o ponto.

No século 19 era ainda comum o Sati, a prática da queima de viúvas vivas, com os corpos em bens de seus maridos, na Índia. Apenas no registro oficial, foram mais de 8 mil casos entre 1813 e 1828. Essa prática abominável era um aspecto da cultura local que expressava tanto crenças religiosas quanto um sistema de valoração e uma teoria de bens na qual a mulher era inferior ao homem. Nesse sistema a liberdade individual e “o direito da mulher sobre o seu próprio corpo”, tão importantes em nossa era dos “direitos reprodutivos das mulheres”, seriam algo simplesmente ininteligível. Mas, sob pressão de missionários cristãos como o lendário William Carey, o governo colonial britânico começou a agir contra a prática, até seu banimento por vias legais.

Também os espartanos adotavam a prática de escravizar seus hilotas, cidadãos de segunda classe, e de treinar seus jovens guerreiros aterrorizando e caçando esses pobres escravos. Anualmente os jovens espartanos saíam nas Cripteias para massacrar hilotas, como hoje se sai em blocos para o carnaval. Seus jovens eram ensinados a lutar até a morte e indivíduos fracos ou deficientes eram absolutamente desprezados. Por tudo o que sabemos hoje, psicopatas se dariam muito bem em Esparta.

Entre muitos povos antigos as práticas de guerra e execução dolorosa eram extremamente comuns. Os assírios eram especialmente cruéis, com sua prática sistemática de empalação. A execução por fogo ou apedrejamento era comum, e praticada inclusive pelos hebreus, como se vê na Bíblia hebraica.

Os astecas praticavam sacrifícios humanos de modo sistemático e permanente, caçando impiedosamente indígenas de pequenas tribos para usá-los nesses sacrifícios. Rios de sangue foram derramados para o seu culto – embora certamente menos que os Estados nacionais “laicos” derramaram no século 20. Mas, entre as mais abjetas práticas de culto de todos os tempos, eles praticavam a adoração ao deus da chuva Tlaloc, prendendo dezenas de crianças e aterrorizando-as ao máximo, até que chorassem bastante – porque, em sua visão de mundo, o seu choro garantiria muitas chuvas –; então, elas eram sacrificadas. Elas não eram apenas aterrorizadas ou apenas sacrificadas, mas aterrorizadas e em seguida sacrificadas.

Seria um exagero dizer que tal cultura não poderia ser preservada a não ser abandonando tais práticas? Teria ela mais direito de manter seus valores do que um arianismo nazista?

Para não seguirmos criticando a outros, consideremos a nossa própria cultura moderna ocidental. Não é verdade que ela não guarda boa relação com o meio ambiente e que mostra grande dificuldade para proteger e conservar os biomas de nosso planeta? Não é esse um julgamento objetivo, e tão objetivo que até mesmo um visitante extraterrestre seria capaz de emiti-lo, talvez até mesmo calculando nosso prazo até a extinção segundo estatísticas cósmicas imemoriais?

Os astecas praticavam sacrifícios humanos de modo sistemático e permanente. Teriam eles mais direito de manter seus valores que um arianismo nazista?

Cada cultura, seja ela uma cultura tradicional ou um dialeto do sistema moderno, tem deveres para com a realidade. A verdade e o bem não são opcionais ocidentais platônicos; são imperativos da mente humana, dos quais até mesmo índios isolados participam a seu próprio modo. Do contrário, eles não poderiam ter sido incluídos nos sistemas internacionais de direitos humanos.

Mas façamos um exercício de pensamento: se assumirmos que, dada a natureza humana compartilhada, diferentes culturas são comparáveis e não absolutamente incomensuráveis, seria plausível a ideia de que toda cultura pode ter contribuições positivas e defeitos graves. E que todas poderiam aprender com todas, em nome da natureza humana.

Essa consideração não é puramente teórica; temos evidência histórica inegável de que a superioridade militar e econômica não equivale a dominação ou genocídio cultural. Sabemos, por exemplo, que os romanos foram conquistados culturalmente pelos gregos, e esse fenômeno já ocorreu muitas vezes. Uma aproximação respeitosa a uma cultura tem o potencial de universalizar muitos bens e valores.

Dada a responsabilidade que cada ser humano tem diante de outros seres humanos, diante da terra e diante da realidade, é necessário compreender que todas as culturas são mutuamente responsáveis. Temos de responder aos indígenas brasileiros pelo que estamos fazendo com a Amazônia, por exemplo. Temos de ouvi-los e aprender com eles. Eles também precisam responder diante de todos os seres humanos pelo que fazem com suas mulheres e crianças. Os chineses, igualmente, não podem alegar incomensurabilidade cultural para justificar seu tratamento recente aos uigures. Assim como os árabes, os africanos e os outros brasileiros.

Nenhuma cultura ou religião é incorrigível e incondicionalmente respeitável, seja ela constitutiva de uma grande civilização ou de uma pequena comunidade tradicional. Por essa razão, entendo que a tese de manter o isolamento cultural e proibir a comunicação de ideias e valores a uma outra cultura é, de jure, inaceitável.

É, de facto, violência cultural?

A essa altura, um leitor com um pouco de conhecimento sobre a história da ocupação da Amazônia estará possivelmente perdendo a paciência. Afinal, a despeito da linguagem moral abstrata acima apresentada, o fato é que a formação do Brasil foi destrutiva para muitas civilizações indígenas, e a evangelização cristã não seguiu um paradigma claro de respeito à diferença cultural, de aprendizado mútuo e de coexistência. Ou seja: ainda que a interdição de jure seja inaceitável, é possível alegar que a tese de uma troca cultural positiva afunda sob um mar de contrafactuais.

Entendo que esse é o ponto crucial, e realmente não pretendo solucioná-lo aqui. Mas posso introduzir alguma evidência de que, no que se refere à evangelização cristã, os contrafactuais estão contrabalaçados.

Em primeiro lugar, é fato que muitas culturas tradicionais foram preservadas exatamente pela ação de missionários cristãos, por conta da noção cristã da Encarnação, e da tese de que a palavra do Evangelho precisa ser posta em várias línguas. Com essa motivação, há séculos missionários cristãos têm estudado línguas e culturas numericamente minúsculas com o propósito de formalizar suas gramáticas, vocabulários e sistemas de significação, para então elaborar traduções das Escrituras.

No Brasil a Bíblia inteira foi traduzida para seis línguas indígenas e o Novo Testamento está traduzido em 38 línguas, segundo dados da Sociedade Bíblica do Brasil. Para se ter uma ideia do esforço que isso envolve, a tradução completa para o Waiwai levou 53 anos, no total. E uma obra como essa torna-se a base para uma nova experiência de memória e autorreflexão dos indígenas, por um lado, e de diálogo com as culturas ocidentais, por outro. Cada vez que uma língua ágrafa é aprendida e normatizada, e o Novo Testamento é traduzido para essa língua, obtém-se uma espécie de “Pedra de Roseta” cultural.

Muitas culturas tradicionais foram preservadas exatamente pela ação de missionários cristãos

Curiosamente, então, o esforço que leva a uma subversão de sistemas simbólicos tradicionais, com a contestação de suas divindades e moralidades, é simultaneamente a garantia de preservação da linguagem e da herança cultural, e a possibilidade de sínteses que garantam a sobrevivência dessas culturas em contato com uma civilização muito mais poderosa.

Em segundo lugar, temos evidência de povos que receberam o Evangelho cristão sem genocídio e sem entrar em processos de autodestruição, e que relataram uma experiência de aperfeiçoamento, consolidação cultural e ganhos em dignidade humana. Exemplos clássicos são a cultura celta e o antigo reino etíope; recentemente poderíamos mencionar os Sawis da Nova Guiné, evangelizados pelo canadense Don Richardson (falecido em 2018) nos anos 1960. Os Sawis eram um povo guerreiro de caçadores de cabeças e canibais, que considerava a traição uma grande demonstração de inteligência e coragem, e que sofria com violência e doenças. A conversão dos Sawis, a codificação de sua linguagem e a tradução do Novo Testamento elevou a expectativa de vida, reduziu a violência, extinguiu o canibalismo e levou a testemunhos genuínos de gratidão por membros daquele povo.

Outro exemplo mais recente é o dos Konkombas do dialeto Bimonkpeln, no oeste da África, evangelizados pelo antropólogo e missionário brasileiro Ronaldo Lidório a partir de 1994. A língua desse grupo era ágrafa, e foi feito o esforço de compor a gramática, dicionários, cartilhas, e de alfabetizar os adultos. Mais de 500 adultos foram alfabetizados em sua língua materna, e o Novo Testamento foi completado em 2001.

Em terceiro lugar, é possível demonstrar que em muitos casos não foi a ação de missionários cristãos, mas a influência de valores e hábitos ocidentais condenados pelos cristãos, e a presença de agentes exploradores seculares igualmente condenados pelos cristãos, a causa de sofrimento entre povos tradicionais. A introdução do dinheiro, da música, das novelas globais, da promiscuidade sexual, da droga e da bebida e da militância política de esquerda não podem honestamente ser lançados na conta do evangelho cristão.

Em muitos casos não foi a ação de missionários cristãos, mas a influência de valores e hábitos ocidentais condenados pelos cristãos a causa de sofrimento entre povos tradicionais

Esse é o caso de alguns dos exemplos dados pela imprensa laicista de contatos malfadados (Waimiri-atroari, Kren-Akarore, Araweté e Parakanã, dentre outros), os quais não foram feitos por missionários cristãos, mas sim pelo próprio órgão governamental responsável pela política de proteção e integração proposta pelo marechal Cândido Rondon a partir da Criação do antigo Serviço de Proteção aos Índios (SPI), substituído em 1967 pela Fundação Nacional do Índio (Funai). A chegada de atividades missionárias deu-se posteriormente, quando já estava em curso a redução populacional desses grupos, seriamente ameaçados pelo cerco do entorno social. Dadas outras experiências históricas, não seria implausível que a chegada de missionários cristãos bem preparados com suficiente antecedência houvesse fortalecido a capacidade desses povos de resistir ao impacto da cultura moderna.

Mas e quanto a povos isolados? Nesse ponto é necessário dar a mão à palmatória: quanto a eles, é legítimo manifestar a presença e a disponibilidade, mas é necessário aguardar um movimento desses povos em direção ao diálogo cultural. Esses povos têm o direito de existir em isolamento voluntário enquanto o quiserem, segundo é exigido pelo artigo XXVI da Declaração Americana dos Direitos dos Povos Indígenas. O respeito à autodeterminação de cada povo e cultura é um pressuposto de qualquer verdadeira evangelização.

Finalmente, outra condição se impõe: meios indiretos de avaliar a fragilidade e vulnerabilidade de uma cultura precisam ser empregados antes de qualquer movimento de aproximação, para garantir que tal processo não cause a extinção daquela sociedade. Sempre que houver a possibilidade de introduzir, juntamente com o Evangelho, o pior da nossa cultura ocidental laica, é importante moderar e até adiar o esforço missionário.

É antiético?

Minha última observação será bem curta. Os que praticam proselitismo religioso o fazem porque acreditam em verdades universais, e em padrões éticos universais. Os que rejeitam essa prática geralmente o fazem em nome de uma ética da alteridade, segundo a qual a diferença deve ser respeitada, e o outro não deve ser absorvido e tornado mera extensão do meu Self, ou do nosso eu coletivo.

Mas, como o Barão de Munchausen, esse arrazoado pretende erguer-se do pântano relativista com cavalo e tudo puxando os próprios cabelos. Pois ao recomendar tal ética da alteridade a pessoas de todas as culturas e religiões, em nome do pluralismo e da tolerância, sem mais, ele quer nos persuadir a todos de seu próprio projeto de moralidade universal. Projeto esse que não faria nenhum sentido para muitas religiões das mais diversas formas e tamanhos.

Não penso que uma ética da alteridade seja algo inviável ou indesejável; mas apenas que não pode ser universalizada sem, de um jeito ou outro, voltar a Platão ou ao universalismo judaico-cristão – lá onde ela nasceu. E isso nos coloca de volta à tarefa evangelizadora. Tarefa essa a que o Cristianismo não poderá renunciar sem perder sua própria identidade.

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