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“Seria irracional contrastar fé e razão, pois a fé é o próprio modo de racionalidade adotado pela razão em sua fidelidade àquilo que busca compreender.” (Thomas Torrance)
O choque das recentes eleições municipais ainda está sendo absorvido pela direita e pela esquerda. Essa última, em especial, terá muito a matutar sobre como modificar o voto que a destronou em 2018 e que ela nem chegou perto de recuperar em 2020: o voto evangélico. Seria possível recrutar a fé para a emancipação e o “processo civilizatório”?
Mas não tomarei hoje o tempo do leitor com outra homilia de incredulidade contra a esquerda. Gostaria de levantar o problema inverso; o problema que interessa às pessoas religiosas. É possível, partindo da fé, mover-se em direção ao mundo e agir nele de forma construtiva? Que relação há entre a fé e a busca do bem comum?
Creio...
Um dos mais famosos teosofemas da tradição cristã é invocado na expressão “creio para compreender” (credo ut intellegam), ou sua equivalente “fé em busca de entendimento” (fides quaerens intellectum). As expressões remontam a Clemente de Alexandria (século 2.º d.C.), aludindo ao livro do profeta Isaías 7,9, segundo certa tradução: “se não crerdes, jamais compreendereis”. A ideia repetiu-se em Agostinho de Hipona, Anselmo de Cantuária e Tomás de Aquino, ganhando corpo e tornando-se uma espécie de chave sagrada.
Não tento, ó Senhor, penetrar a tua profundidade: de maneira alguma a minha inteligência amolda-se a ela, mas desejo, ao menos, compreender a tua verdade, que o meu coração crê e ama. Com efeito, não busco compreender para crer, mas creio para compreender. (Anselmo de Cantuária, Proslogion)
Trata-se de um movimento de humilhação e também de confiança, no qual a mente se ajoelha diante do mistério divino, e admite a necessidade de circunscrever suas exigências. Não se trata de uma negação do esforço cognitivo, de uma desistência da tarefa intelectual, nem da aceitação de cabrestos conceituais, mas de um encontro com a realidade do que somos como seres humanos, daquilo que os define, mais do que qualquer outra coisa: a sua criaturidade.
Não penso que a fé nos move a compreender apenas as coisas divinas e teológicas, no sentido estrito, mas a compreender todas as coisas de forma teorreferente: todas as coisas “nos céus e na terra”
Não é que o trabalho, o sentimento moral, a sociabilidade, a inteligência lógica ou a imaginação estética não sejam distintivos humanos e capacidades ilustres, mas que, uma vez reconhecida a realidade de Deus, são todas elas enquadradas como dádivas e resultantes do ato criativo divino. À visão do abismo do nada e da gratuidade de sua própria presença a pessoa cai de joelhos; seu universo se amplia e ao mesmo tempo se aproxima tremendamente, quando o próprio espaço e o tempo são engolidos por um infinito espiritual e moral.
É claro que isso desorganiza a vida do sujeito; pense em Saulo, o rabino perseguidor dos cristãos judeus, quando descobriu que seu arqui-inimigo estava vivo e era o seu próprio Messias. Descobrir-se criatura, não apenas como mero dogma socialmente obrigatório, mas como uma consciência de realidade modificada, reposiciona todas as peças do tabuleiro, repinta inteiramente o quadro da realidade e às vezes transforma as correntes dos compromissos humanos em fios de algodão.
Esse estado mental que chamamos de fé envolve crenças sobre si, sobre as realidades divinas e sobre o mundo. Uma vez emergindo, não é algo que se possa simplesmente suspender, como um interruptor de luz. Há um elemento compulsório na experiência de crer, que se apresenta a partir dos processos internos dessa forma de sentimento de mundo, muito além de meras imposições sociais. É assim com as crenças de modo geral; não podemos evitar a crença de que estamos lendo um texto na tela de um celular, de um tablet ou de um computador, exceto por algum distúrbio psicológico ou por hipnose; nem mesmo o solipsismo filosófico pode, sozinho, interromper nossos processos de formação de crenças.
De certo modo, aquele que tem fé encontra-se sob um imperativo. A realidade, para ele, ampliou-se; ele precisa levar o que crê em conta enquanto responde às demandas do pensar e do agir. E aqui faço um movimento que pode ser questionado por alguns leitores: não penso que a fé nos move a compreender apenas as coisas divinas e teológicas, no sentido estrito, mas a compreender todas as coisas de forma teorreferente: todas as coisas “nos céus e na terra”.
E, assim, as relações do fiel com o mundo são, todas elas, substancialmente alteradas. Não são anuladas; ele continua se movendo para viver, para dizer, para abraçar, para construir, e para compreender.
... para compreender
Consideremos o conhecimento; conta-se entre o que John Finnis chama de “as formas básicas do bem”. Quando falamos em “bem”, aqui, não nos referimos já a um debate sobre o que seria certo ou errado, mas a algo anterior: realidades que se impõem a nós de forma universal como coisas desejáveis, que podem nos ajudar a florescer e a atingir a plenitude ou a felicidade, e são prezadas por nós por sua natureza intrínseca.
Assim é o conhecimento; amá-lo é desejar a verdade, e desejar a união com a própria realidade. O conhecimento alarga a alma e pode torná-la amiga do próprio Ser. Que conhecer a realidade seja um bem é algo autoevidente e que dispensa demonstração. Até mesmo se alguém se propusesse a demonstrar que o conhecimento não é um bem, estaria nesse mesmo gesto ocupando-se de buscar uma relação mais íntima com a realidade, esforçando-se para negar uma visão alegadamente errada do valor do conhecimento. Ora, nesse momento ela estaria cometendo uma contradição performática, uma autorrefutação operacional. Sua atração erótica pela negação da falsidade denunciaria a bondade básica da verdade e do conhecimento da verdade.
Conhecer enriquece a vida; amplia horizontes e se multiplica. Sua distribuição não empobrece ninguém; ele pode ser compartilhado, refundido e cultivado de forma inesgotável. Trata-se de uma forma básica do bem, e admitindo-a podemos discutir seriamente sobre as formas corretas e erradas, ou boas e más de lidar com o saber.
A fé, ao inserir na equação da existência uma relação com a fonte divina de todas as coisas, desarranja e rearranja completamente a constelação de bens do sujeito
Ora, o mesmo se aplica a outros bens básicos, como a vida, em seu sentido pleno, não apenas biológico-metabólico, mas de todas as dimensões do fenômeno, como a saúde do organismo, o sexo, a reprodução, o nascituro, os filhos e a família; e a nutrição, o cuidado da vida e seus meios, a segurança e o respeito à vida, o equilíbrio dos sistemas ecológicos e a totalidade da biosfera etc. Viver é indiscutivelmente bom, a existência de vidas miseráveis jamais foi prova contra as vidas boas, tranquilas e felizes. De novo, há o errado e o certo sobre o bem viver, mas ambos repousam sobre o viver.
E poderíamos seguir falando sobre outros bens de caráter similar, como a linguagem, ou a sociabilidade e a amizade, tão fundamental na filosofia social dos antigos; a beleza e o desfrute estético, incluindo o jogo, o lazer e o humor; a “racionalidade” prática expressa na boa gestão de bens finitos e das relações, na economia e na justiça; a virtude moral e os hábitos da confiança e da confiabilidade; e também a religião.
Esses bens podem ser reconhecidos por qualquer pessoa, e o são; não estão além do alcance de ninguém, em princípio. Mas a fé altera a nossa percepção desses bens. Charles Taylor destacou, em As Fontes do Self, que pessoas com sistemas de crença e mapas morais diferentes hierarquizam seus bens diferentemente. É assim que alguém pode, por exemplo, considerar a nacionalidade a forma superior de sociabilidade ou de “amizade social”, e tornar outros bens em meios para atingir esse fim, numa espécie de absolutismo moral. Ou tornar a “justiça” a chave básica da existência.
A fé, ao inserir na equação da existência uma relação com a fonte divina de todas as coisas e, na tradição judaico-cristã, com um Deus que fala e que propõe um futuro para o ser humano, desarranja e rearranja completamente a constelação de bens do sujeito. É como se uma estrela gigante-azul de repente penetrasse nosso sistema solar e o próprio Sol se tornasse um de seus satélites, alterando todas as órbitas.
Necessariamente, depois de tais eventos cataclísmicos, a ordem das coisas seria alterada. E é assim que a fé interfere na compreensão da vida e do mundo. Aquele que crê se descobre em um novo universo, e precisa de um novo entendimento. Por isso ele “crê para compreender”.
Creio para compreender
Voltemos, então, ao nosso ponto, no início do artigo. Thomas Torrance, inspirado pela visão de Michael Polanyi, destaca que a fé envolve um tipo de amizade com a realidade. Quem conhece sempre exercita um tipo de fé, porque ajusta sua aproximação cognitiva à realidade daquilo que deseja conhecer. O elemento fiducial, nesse sentido, é interno a todo e qualquer ato cognitivo e o coloca em relação com seu objeto.
E não é diferente quando se trata do conhecimento de Deus. Minha fé não é a desistência, mas a direção do meu movimento. A fé não está em contradição com o conhecimento, porque não está em contradição com a realidade e com o bem.
É verdade que, às vezes, crenças contraditórias podem ser sustentadas por alguém, por carência de autocrítica. Mas crer num testemunho, sustentar uma narrativa numa investigação histórica, ou defender um modelo teórico em um campo científico, mesmo em presença de evidências contraditórias, não significa necessariamente uma contradição de fé e saber; pode ser simplesmente a dinâmica de nossa imaginação, que intui coisas que não podemos ainda substanciar, mas que somos capazes de antecipar. Como o epistemólogo Michael Polanyi observou, muitos cientistas relatam a sensação de estarem se aproximando de grandes descobertas antes de o “Eureka!” se consumar. Paul Ricoeur também fala da imaginação como uma “sonda” do real, que nos permite planejar ações e antecipar o futuro.
A fé não está em contradição com o conhecimento, porque não está em contradição com a realidade e com o bem
Existe, nas escrituras bíblicas, um contraste entre “fé” e “visão”. O apóstolo Paulo diz que nós andamos “pela fé e não por vista”, em sua Segunda Carta aos Coríntios. Mas essa tensão não corresponde ao dilema cognitivo típico da mente ocidental herdado, por sua vez, da mente grega, e que divide as crenças entre fatos baseados em evidência sensível, a partir da metáfora da “visão” e as crenças subjetivas, baseadas apenas em sentimentos ou na autoridade externa.
Na visão hebraica, segundo destacou o teólogo Thomas Torrance, sob influência, aqui, de Martin Buber, a “visão” não tinha hegemonia sobre outros sentidos, como se fosse a forma privilegiada de conhecer o mundo:
No hábito hebraico de mente, ouvir e ver, palavra e visão, não eram desconectados, mas a ênfase era colocada na palavra e na audição como moldando o modo básico de compreensão e dando primado à fé sobre a vista. Isso tinha a ver com a convicção de que o Deus eterno e invisível é a realidade esmagadora com a qual estamos relacionados. Desde que ele constitui o fundamento criativo do ser e do conhecimento do ser humano, é através da confiança nele que a existência humana será ordenada no mundo. (Belief in Science and in Christian Life, 1980).
A fé não era e não é entendida pela tradição judaico-cristã, portanto, como um estado subjetivo, em oposição a um saber mediado pela constatação evidencial, mas como uma relação cognitiva que capta a profundidade espiritual e pessoal do mundo, e que responde a ela de modo apropriado a seu “objeto cognitivo”: a confiança e a atenção – em analogia com as relações cognitivas que temos com outras pessoas, ou “outras mentes”, segundo a famosa concepção do filósofo da religião Alvin Plantinga.
De fato, não conhecemos as pessoas pela mera observação; pois pessoas existem no oceano da linguagem e do sentido, e se movem a partir de mapas morais, com propósitos que vão além do instinto natural. Conhecemos as pessoas conversando com elas. Deus se revelou assim, como um Deus pessoal e verbal; como um Deus que falou através de profetas e por meio de seu filho, o Logos; até mesmo como um Deus que fala, segundo o Salmo 19, através da glória dos céus, ainda que sem usar palavras e cordas vocais.
A relação de fé, corretamente compreendida, é uma relação aberta e positiva, de amizade com o Ser e com o profundo do real. Não é uma fuga, numa negativa, ou um sono. Nesse sentido, ela busca o bem, e está necessariamente conectada a toda e qualquer forma de bem.
Creio para buscar... o bem?
Se podemos falar de “fé em busca de conhecimento”, poderíamos falar de igual modo a respeito de outros bens? “Fé em busca de” liberdade, ou de justiça, ou de beleza, ou de amizade, ou de amor?
Penso que esse seria um desdobramento natural. Sendo a fé essa relação de amizade com o fundamento último, pessoal e divino de todas as coisas, ela deveria nos tornar amigos de todos os bens, que passam a ser vistos, assim, como dádivas, gestos e sinais, rastros deixados pela passagem d’Aquele que desejamos.
O que ocorre é que, assim como se dá com o conhecimento, a fé imprime um tipo de racionalidade diferente ao movimento em direção ao bem; um tipo de fidelidade humilde e confiante a eles, que deseja acomodar-se à sua natureza, curvando-se às suas exigências, em vez de forçá-los às suas agendas.
Sei que aqui as discórdias se multiplicam como as pragas do Egito! Da cacofonia de vozes, de práticas sociais e de narrativas sobre a liberdade, a igualdade, a justiça, ou o saber, como poderíamos discernir esse sentido e direção de nossos esforços?
O que são esses bens fundamentais, cujo cultivo funda as diversas formas de vida comunitária, amizade e cooperação pelo bem comum?
Uma parte da resposta está à mão: essa confusão é uma exigência do nosso sistema de liberalismo procedimental, que se evade dos debates sobre a natureza do bem, considerado indefinível e incapaz de consensos, e se refugia em meras decisões formais e pluralistas sobre o direito de cada um de viver da forma que desejar.
Como esse direito vem incluindo, mais recentemente, o pseudodireito de sentir-se bem e feliz mesmo que a realidade diga o contrário, até mesmo a discussão honesta e crítica sobre a natureza do bem passa a ser reprovada e evitada com todas as forças; pois é preciso garantir que ninguém se sinta triste – mesmo que seu sistema de valores seja absolutamente miserável, e que os efeitos colaterais de seus vícios sejam todos “perdoados” pelo Estado por meio de nossos impostos.
É preciso voltar aos princípios. O que são esses bens fundamentais, cujo cultivo funda as diversas formas de vida comunitária, amizade e cooperação pelo bem comum? Qual é a melhor forma de cultivá-los, sem gerar predomínio e destruição de outros bens, ou monopólios injustos de acesso a eles? Que práticas de distribuição desses bens podem ser justas, não apenas do ponto de vista da equidade, mas também da adequação à lógica e à natureza interna de tais bens?
Mas essa não é a única questão que as pessoas de fé precisam fazer. Outra questão é a da fidelidade à sua amizade primordial, e a permissão para que a luz dessa amizade se projete sobre a sua jornada pessoal. O que significa liberdade e emancipação, se levarmos a sério a ideia de um Deus criador e pessoal? Como devemos ver a justiça, a igualdade e a reconciliação? A realidade de Deus transforma nosso entendimento sobre a importância de algo como a “beleza”? E quanto às nossas interpretações do princípio da fraternidade, ou de uma ética da vida?
Tomemos particularmente a questão da liberdade. Emancipação é um dos motivos espirituais centrais de nossa cultura moderna, e atravessou diversos episódios de diferenciação e “especiação”, significando coisas diversas em contextos de relação afetiva, ou de classe, ou raciais, ou de trabalho, ou de gênero, ou regionais, ou hierárquicas, por exemplo. Quem discutiria a importância do tema da emancipação? Não apenas por ser uma espécie de mantra, da política aos filmes hollywoodianos, mas até mesmo, para os cristãos, porque está no coração de uma de suas histórias fundamentais: a história do Êxodo, da libertação de Israel de sua escravidão no Egito pelo braço de Iahweh e o cajado de Moisés.
O esforço da esquerda ou do bolsonarismo, hoje, para incorporar a força da religião em suas agendas é vão – embora não inútil
Mas o que a fé pensa sobre a “emancipação”? O que seria pensar sobre “emancipação” a partir das histórias do Êxodo, do Sinai e do Deuteronômio, de modo fiel? Teria essa palavra o mesmo sentido que teria para um militante identitário, ou para um libertário de direita? Pergunta retórica: quem se debruçou sobre o tema sabe que não.
Nesse sentido, o esforço da esquerda ou do bolsonarismo, hoje, para incorporar a força da religião em suas agendas é vão – embora não inútil. Se tiverem sucesso, o terão destruindo a substância da fé e, então, incorporando a massa processada de pessoas cuja fé foi apagada ou desnaturada. Sem que as agendas sejam mudadas, esses esforços de cooptação não passam de máquinas de inautenticidade. Porque, como Torrance notou com perspicácia, a fé envolve certa fidelidade ao que se quer conhecer, e a quem se quer relacionar. Mas as fidelidades de nossos partidos políticos são bem outras.
Significaria isso um “não” definitivo para essas militâncias? Não penso assim. A partir da fé, podemos buscar coisas; podemos promover o conhecimento, a vida, a liberdade, a beleza e a justiça. Mas a motivação e o enquadramento dessas buscas deverão ser radicalmente alterados: pois o sentido, o escopo e a inter-relação entre esses bens precisam receber a luz do discurso divino e do seu Logos. A partir da fé e da audição da palavra de Deus é que o cristão compreenderá, trabalhará, falará, cooperará, politizará, cultivará, desfrutará e amará.
E isso já significará algo, de saída: que o pathos fundamental dessa imaginada “militância” cristã não seria, realmente, uma luta, mas uma amizade. Onde houver um militante fiel, este não será primariamente um inimigo dos males, mas um amigo fiel dos bens.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos