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Alguns dias atrás, numa estrada entre Petersfield e Winchester, no sul da Inglaterra, um amigo atropelou acidentalmente um faisão – ave muito comum na região. O pobre animal pulou na frente do carro e ali ficou, impassível diante das buzinadas e luzes do farol. Depois do susto e dos lamentos iniciais (que não duraram muito; o animal não nativo é uma praga por aqui), o motorista observou que faisões atropelados às vezes vão para a panela, especialmente quando os algozes são imigrantes.
Consumados os minutos de luto, a nossa conversa já se desviava impiamente para o sabor da carne de faisão quando me ocorreu um assunto mais honorável, ligado à causa mortis: muitos animais não estão equipados para entender o significado de um grande objeto com luzes e som se movendo rapidamente e sem aparência de qualquer coisa viva. O processo evolutivo não os dotou de módulos cognitivos capazes de interpretar esses sinais e de reagir de modo eficiente. E daí nos embrenhamos numa discussão animada sobre os limites cognitivos do ser humano: apesar da sua notável flexibilidade, nosso aparato cognitivo não é infinitamente variado.
Essa é uma questão da mais alta importância, e que vem sendo demonstrada de modo chocante com o advento das mídias sociais. Há indícios de que os seres humanos não estão equipados cognitivamente para lidar com essa nova tecnologia. Ou não estão, ao menos, sem “trajes de proteção” muito especiais.
Há indícios de que os seres humanos não estão equipados cognitivamente para lidar com a nova tecnologia das mídias sociais
A questão forma o transfundo de um artigo atipicamente pessimista de Jonathan Haidt na revista The Atlantic em 11 de abril: “Por que os últimos 10 anos da vida americana têm sido singularmente estúpidos – e isso não é só uma fase”. Em outros termos, uma estupidez crônica se instalou na civilização estadunidense.
O ponto de Haidt é, basicamente, o de que uma grande Torre de Babel utópica foi levantada com o auxílio das modernas mídias sociais e sua promessa de erigir um megassistema de redes on-line que permitiriam às pessoas um grau de comunicação, compartilhamento e sinergia sem precedentes, o que certamente nos levaria ao aperfeiçoamento e generalização da democracia.
A coisa começou com a internet nos anos 90, passando pelas novas plataformas, como Myspace, Friendster e Facebook (e Orkut, no Brasil) em torno de 2003, pela explosão do Facebook (de 100 milhões de usuários em 2008 a 3 bilhões hoje) e pela emergência do Twitter. O clímax do “otimismo tecnodemocrático” teria ocorrido em 2011, com a Primavera Árabe e o movimento Occupy, e a disponibilização do Google Translate nos agora cada vez mais populares smartphones. Daí Haidt sacramentar 2011 como o ano em que Babel foi reconstruída (pessoalmente acho isso um exagero, mas vamos lá).
O fato é que a coisa não durou nada. As mídias sociais, sim, seguem “florescendo” em algum sentido, e especialmente nos lucros anuais. Mas a utopia tecnodemocrática desabou fragorosamente. A começar pela “Primavera Árabe”, incensada pela esquerda liberal, e que levou à ascensão dos piores radicalismos religiosos e do Estado Islâmico.
A arquitetura das mídias sociais, como foi progressivamente construída, incluindo os botões de “curtir”, “descurtir” e “compartilhar”, não conduziu a um processo suave e redondo de disseminação de informações e compreensão mútua, mas a um sistema altamente tóxico de fragmentação social, envolvendo desonestidade dos influenciadores na manipulação dos trends, comportamento de manada, reprodução de raiva e sentimentos negativos por contágio social, destruição de reputações, e moralismo. “Como um psicólogo social que estuda emoções, moralidade e política, vejo isso acontecendo... As novas plataformas... foram quase perfeitamente planejadas para manifestar nossos eus mais moralistas e menos reflexivos”, diz Haidt.
O problema é que as instituições da democracia se baseiam precisamente na desaceleração emocional. São sistemas incrementais, baseados na discussão, negociação, racionalização e construção de acordos. E há regras. A dinâmica e a velocidade das mídias sociais não permitem esse processo, no entanto; os julgamentos são rápidos, superficiais, facciosos, excessivamente controlados pela indignação. As mídias sociais “amplificaram e armamentizaram” frivolidades, desavenças secundárias, contos falsos ou mesmo verdadeiros salientando o ridículo do outro, tudo mexendo com as nossas vísceras antes de termos tempo de pensar realmente no assunto. “Curtimos” ou “retuitamos” num ato absolutamente solitário, e espalhamos não apenas verdades, mas toneladas de desinformação e fake news.
A arquitetura das mídias sociais não conduziu a um processo suave e redondo de disseminação de informações e compreensão mútua, mas a um sistema altamente tóxico de fragmentação social
O problema vai além dos maus hábitos e do espírito cínico que acabamos cultivando no uso dessas mídias; a questão é a sistemática destruição da confiança pública que essa guerra de guerrilha produz entre os seus usuários:
“Quando os cidadãos perdem a confiança em líderes eleitos, autoridades de saúde, tribunais, polícia, universidades, integridade das eleições, cada decisão passa a ser contestada; cada eleição se torna uma luta de vida ou morte para salvar o país do outro lado... estudos acadêmicos recentes sugerem que as mídias sociais são realmente corrosivas para a confiança em governos, órgãos de notícias, pessoas e instituições em geral.”
As mídias sociais estão, como um “solvente universal”, acelerando o processo de destruição da confiança social em instituições, narrativas tradicionais e nas pessoas, destruindo junto com isso a capacidade de cooperação social. O resultado dessas mídias não tem sido, como se creu utopicamente, um grau mais elevado de diálogo, mas uma generalizada e altamente defensiva fragmentação narrativa: cada um luta para defender seu pequenino círculo de histórias e valores, e derrama sua indignação em arrastões virtuais para destruir narrativas ameaçadoras.
Um dos estudos mais preocupantes citados por Jonathan Haidt é o “The Hidden Tribes of America”, produzido pelo grupo pró-democracia More in Common, que pesquisou 8 mil americanos em 2017 e 2018 e identificou sete grupos ou “tribos” sociais. Dessas sete tribos, duas se mostraram as mais politicamente extremistas: os “Conservadores Devotos” e os “Ativistas Progressistas”, correspondendo respectivamente a 6% e 8% da população. Mas, apesar do número reduzido, eles respondem pela vasta maioria do conteúdo produzido nas mídias sociais (acima de 70% de todo o conteúdo).
Esses grupos mais extremistas são que fazem mais barulho e alcançam maior visibilidade; os mais moderados costumam ser silenciados ou simplesmente se retiram do debate público. Agora, a surpresa: esses extremos tendem a ser culturalmente homogêneos, e representam dois grupos de elite. Nos EUA eles são predominantemente brancos, escolarizados e representam os mais ricos entre os sete grupos. Além disso, eles são muito mais críticos com membros do seu próprio grupo que assumem posturas mais moderadas ou apoiam quaisquer ideias do “outro lado”, mesmo que esse apoio seja moderado.
O mundo criado nos anos 2000, através da nova tecnologia das mídias sociais, não é um mundo humano. É um mundo cognitivamente poluído
Chris Bail, que dirige o Laboratório da Polarização na Universidade Duke (EUA), vem argumentando sobre o mesmo ponto há tempos: uma minoria extremista monopoliza a discussão nas mídias sociais transformando-as num inferno. O que o novo estudo mostra é que essa minoria extremista é também uma elite tóxica e conflituosa.
Jonathan Haidt descreve essa situação desesperadora de um modo jocoso, como uma “estupidez estrutural”. Fala-se tanto em uma série de injustiças estruturais, mas a estupidez tomou conta de nossas instituições e até de nosso sistema universitário, sucateando a liberdade de expressão e de pensamento. E, segundo ele, a coisa só vai piorar.
Imagino que o leitor já formou, a essa altura, uma imagem do problema que estamos enfrentando: a velocidade que as mídias sociais impõem no processo de afetação e reação, por parte do usuário, contorna a sua capacidade de julgamento. Em termos de economia comportamental, dizemos que o “Sistema 1”, ou o sistema cognitivo rápido, segundo a tese de Daniel Kahneman, é excitado repetidamente e aqueles conhecidos vieses cognitivos, como o comportamento de manada, os vieses afetivos, o viés de confirmação e inúmeras outras programações cognitivas que todo cidadão de bem herdou de seus pais, são postos em operação instantaneamente. E, sem esforço intencional e treinamento para tanto, a curadoria da informação e dos sentimentos que o “Sistema 2” poderia realizar é malfeita ou inexistente. É nesse sentido que as mídias sociais nos emburrecem – não há outra expressão para descrever o que está acontecendo. Trata-se de uma grande máquina de estupidificação.
O ponto que adicionei ao argumento de Haidt foi esse, já citado aqui, da aceleração em nossas comunicações, que transgride os limites de velocidade do pensamento, do acordo racional e da própria democracia. A velocidade natural de digestão e processamento das ideias é menor do que a velocidade imposta pela interação das mídias sociais. O que me leva a entender que o mundo criado nos anos 2000, através da nova tecnologia das mídias sociais, não é um mundo humano. É um mundo cognitivamente poluído, assim como a Londres da Revolução Industrial era poluída e desumana; é um pós-humano inumano. O tempo do diálogo entre os seres humanos não é respeitado pela temporalidade do Twitter.
É por isso que estamos sendo atropelados pelas mídias sociais; a nossa democracia vem sendo sucessivamente atropelada por elas. E, se não tomarmos providências, acabaremos jantados por algum autocrata.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos