O assunto dos “capitais sociais e morais” e sua urgência para nossa sociedade fragmentada tem ocupado a nossa atenção há muitas semanas. Gastamos alguma tinta para propor o uso dessas categorias para pensar sobre como tirar do papel o princípio da fraternidade, tema da encíclica Fratelli Tutti, do papa Francisco.
Hoje vamos descer a aspectos ainda mais práticos e estratégicos, dialogando com a economia comportamental; mas antes é necessário relembrar nossa formulação do problema.
Vivemos em uma sociedade informatizada, mas em processo de atomização, com um tecido social bastante enfraquecido. Temos grande interconectividade, mas pouca solidariedade, confiança e cooperação – ou seja, temos baixos níveis de capital social e moral. A carência de atenção aos deveres da fraternidade acaba dificultando a preservação das liberdades fundamentais, da igualdade e da dignidade das pessoas; os direitos humanos não se efetivam bem sem o terceiro princípio. A vida econômica, o empreendimento social e a própria democracia emperram nessas condições.
Temos grande interconectividade, mas pouca solidariedade, confiança e cooperação – ou seja, temos baixos níveis de capital social e moral
Nossa demanda urgente, portanto, reside na reconfecção do tecido social e na produção de capitais sociais e morais. O que podem líderes religiosos, agentes públicos, empreendedores sociais, empresários e pessoas comuns fazer a respeito?
Proponho que usemos sistematicamente recursos da moderna economia comportamental e, particularmente, que nossos líderes adotem a chave do “paternalismo libertário” como método sistemático para a promoção de capitais morais, fraternidade e amizade social.
Capitais morais e arquitetura de escolhas
Jonathan Haidt, que também reconhece a importância do capital moral para a formação da comunidade e a cooperação social, observou, em The Righteous Mind, que esse capital aparece, por assim dizer, “incorporado” ou “encarnado” em instituições, práticas sociais e tecnologias que “engatem” com a nossa estrutura psicoevolutiva:
Podemos definir o capital moral como os recursos que sustentam uma comunidade moral. Mais especificamente, o grau de posse, por uma comunidade, dos conjuntos interligadores de valores, virtudes, normas, práticas, identidades, instituições e tecnologias que se fundem bem com mecanismos psicológicos evoluídos e assim capacitam a comunidade a suprimir ou regular o egoísmo e tornar possível a cooperação.
A construção civilizatória precisa, portanto, ser intencional a respeito de tais virtudes, normas, práticas, identidades, instituições e tecnologias. Isso nos leva à questão do desenho estrutural de nossas microrrelações sociais e da nossa sociedade como um todo – e à questão das arquiteturas de escolha.
Richard Thaler, Prêmio Nobel de Economia de 1997, desenvolveu com Cass Sunstein a ideia de nudges (“empurrõezinhos” ou “incentivos”) como categoria de intervenção comportamental para o setor privado e a política pública. A ideia é a de que muitas pessoas podem chegar a uma compreensão razoavelmente clara de que certo comportamento é adequado, mas isso não significa que sejam automaticamente capazes de fazer a melhor escolha. Elas não seriam “econos”, ou seja, indivíduos calculistas e racionais, segundo as teorias de comportamento da tradição da escolha racional, ou rational choice. Diferentemente dos econos, os humanos seriam na maior parte do tempo governados por inclinações automáticas baseadas em padrões cognitivos pré-configurados, seja por processos darwinianos imemoriais, seja por hábitos afetivos e comportamentais arraigados. Assim, é de grande importância a figura do “arquiteto de escolhas”, que eles descrevem em seu livro Nudge:
Um arquiteto de escolhas tem a responsabilidade de organizar o contexto no qual as pessoas tomam decisões (...) Todo bom arquiteto sabe que algumas decisões aparentemente arbitrárias – como a localização dos banheiros – influenciarão sutilmente a interação das pessoas que utilizam o edifício. Cada ida ao banheiro cria uma oportunidade de encontrar colegas (para o bem ou para o mal). Um bom edifício não é apenas atraente; ele tem de “funcionar”.
As abordagens de Thaler e Sunstein se fundam no campo da Economia Comportamental e nos estudos pioneiros do psicólogo experimental Daniel Kahnemann, também ganhador do Prêmio Nobel em 2002 e fundador do campo juntamente com Amos Tversky por suas descobertas sobre motivação e decisão. Kahneman traduziu suas descobertas em um conceito didático bastante simples, de que o ser humano operaria com dois sistemas cognitivos coordenados, sendo que cada um deles teria um fluxo de processamento diferente do outro: O Sistema 1, ou sistema automático ou “rápido”; e o Sistema 2, ou sistema oneroso ou “lento”.
Cuidando juntos de coisas que importam, teremos boas oportunidades para nos descobrir como semelhantes e estabelecer os laços morais e sociais para preservar a nossa civilização
O Sistema 1 (rápido) constitui-se de um conjunto de módulos cognitivos, vieses e heurísticas cognitivas e decisionais pré-estabelecidas (heurísticas seriam “atalhos” mentais, emocionais e comportamentais; caminhos “prontos” na mente e no corpo), e variados automatismos de julgamento. Incluiria também hábitos mentais e cognitivos, e habilidades naturais ou aprendidas – por meio da prática, o Sistema 1 pode adquirir uma “segunda natureza”, estabelecendo processos especializados, como dirigir um automóvel ou tornar-se um virtuose ao violino, por exemplo. Mas, seja com padrões instintivos ou aprendidos, o Sistema 1 envolve cognição e resposta rápidos e estereotipados. Ele governa a maior parte do nosso comportamento por meio dessas heurísticas intuitivas. Diz Kahneman em Rápido e Devagar:
Há muitos anos visitei o diretor de investimentos de uma grande empresa financeira, que me contou que acabara de investir dezenas de milhões de dólares em ações da Ford Motor Company. Quando lhe perguntei como tomara essa decisão, ele respondeu que recentemente fora a uma feira automobilística e ficara impressionado: “Rapaz, eles sabem mesmo como construir um carro!”, foi sua explicação. Ele deixou bem claro que confiava em seu faro e que estava satisfeito consigo mesmo e com sua decisão. (...) A decisão do alto executivo hoje seria descrita como um exemplo da heurística afetiva, onde os julgamentos e as decisões são orientados diretamente por sentimentos como gostar ou não gostar, com pouca deliberação ou raciocínio. (...) Isso é a essência das heurísticas intuitivas: quando confrontados com uma questão difícil, muitas vezes respondemos a uma mais fácil em lugar dela, normalmente sem perceber a substituição.
O Sistema 2 (lento) diz respeito à nossa capacidade de raciocínio lógico-abstrato, de atenção concentrada para resolução de problemas novos e para todos os esforços de aprendizado. Esse sistema seria “preguiçoso”, costumeiramente entregando as tarefas ao Sistema 1 a não ser que ele seja incapaz de realizá-las – então, por um esforço intelectual consciente, o indivíduo se engaja com o estranho, vence estereótipos e preconceitos, e expande sua experiência cognitiva.
Numa área diferente, as descobertas de Kahneman foram confirmadas por psicólogos morais como Paul Bloom (Yale) e Jonathan Haidt (NYSU), como a subestrutura da imaginação moral. Bloom mostrou que bebês de 6 meses seriam capazes de sentimentos morais e comportamento altruísta, refutando a teoria clássica do desenvolvimento moral de Piaget-Kollberg. Jonathan Haidt, por seu turno, mostrou evidência conclusiva de que sentimentos morais e padrões cognitivos pré-configurados evolutivamente formariam a base dos julgamentos morais, atualizando as compreensões de David Hume e Adam Smith sobre os sentimentos morais. Assim Kahneman observa, citando o próprio Haidt:
Como disse o psicólogo Jonathan Haidt em outro contexto, “A cauda emocional abana o cão racional”. A heurística do afeto simplifica as nossas vidas criando um mundo que é muito mais ordenado do que a realidade.
A evidência procedente da ciência comportamental contemporânea, seja da Economia Comportamental ou da Psicologia Moral Experimental, tem uma implicação bastante direta no modo como pessoas em posições de poder, seja no mercado, no Estado, na religião ou na educação, podem promover de forma inteligente e estratégica a geração de capitais sociais e morais.
Influenciar sem coagir
“Paternalismo Libertário” é uma expressão criada por Cass Sunstein para expressar a tese de que tanto a tentativa de controlar o comportamento dos cidadãos quanto a de atribuir a eles o encargo de agir de forma absolutamente autônoma e racional seriam disfuncionais, seja do ponto de vista moral, seja porque se baseiam em compreensões idealizadas que não correspondem à natureza humana. A verdade estaria em um ponto de equilíbrio entre esses dois extremos.
Considerando que, por um lado, não sendo econos, os seres humanos terão o seu comportamento dominado na maior parte do tempo pelo Sistema 1, tendendo em muitas situações a adotar, conscientemente ou não, comportamentos reprováveis e ineficientes; mas tendo por outro lado as capacidades da racionalidade e da autonomia, por conta do Sistema 2, seria possível, por meio de um estímulo intencional aplicado ao Sistema 2 para compensar sua baixa “velocidade” e proatividade – ou seja, através de um nudge –, disparar um processo decisório racionalmente consistente. Um nudge funciona como um “motor de arranque” para processos que dependem do Sistema 2.
O paternalismo libertário é um tipo de paternalismo relativamente fraco, brando e não intrusivo, pois não cria impedimentos ou obstáculos às escolhas. Se as pessoas querem fumar, se entupir de doces, escolher um tipo de plano de saúde pouco vantajoso ou torrar todo o dinheiro antes da aposentadoria, os paternalistas não vão forçá-las a fazer o contrário – aliás, nem sequer vão colocar empecilhos nessa jornada. Ainda assim, a abordagem que recomendamos é considerada paternalista, pois os arquitetos de escolhas, sejam elas públicas ou privadas, não estão apenas identificando ou colocando em prática as decisões que esperam que as pessoas tomem; na verdade, estão, conscientemente, induzindo as pessoas a seguir caminhos que melhorarão suas vidas. Estão dando um nudge.
É muito importante que os processos educacionais globais de nossa civilização tenham seus fins modificados, para incorporar sistematicamente o princípio da fraternidade
Arquiteturas de escolha baseadas em nudges são um recurso para políticas de liderança cientificamente informadas sobre os processos decisórios humanos, e nesse sentido têm maior potencial de sucesso.
A abordagem do Paternalismo Libertário é às vezes criticada em nome de uma suposta “neutralidade” a ser perseguida pelos governos, neutralidade essa identificada com uma postura libertária buscando anular qualquer influência governamental. É desejável manter uma neutralidade relativa preservando espaços de dissenso e alternativas abertas ao cidadão, mas não há neutralidade absoluta, como Kanheman expressa com clareza límpida:
Políticas públicas são em última instância sobre pessoas, o que elas querem e o que é melhor para elas. Toda questão envolvendo políticas públicas implica pressuposições acerca da natureza humana, em particular sobre as escolhas que as pessoas podem fazer e as consequências de suas escolhas para si mesmas e para a sociedade.
Uma abordagem paternalista-libertária pode ser bastante eficiente no sentido de construir situações pedagógicas facilitadoras e metodologias de incentivo para a construção de compromissos morais e coletivos entre pessoas, e para a assimilação dos fundamentos de direitos humanos. Nudges devem ser usados especificamente para construir situações para o disparo de hive switch (o “seletor de colmeia”, na metáfora de Jonathan Haidt), de modo que as pessoas deixem de operar exclusivamente no modo “eu” e entrem na modalidade “nós”.
Ajustando os meios e os fins
Em artigo recente no New York Times, David Brooks lamentou o colapso da solidariedade na América, elogiando bastante o novo livro de Robert Putnam sobre o tema (The Upswing), e argumentando que a nação só se tornará grande de novo com uma profunda mudança cultural e uma reconstrução de seu tecido social. Penso que a tese da mudança de cultura vai direto à raiz do problema, mas ao mesmo tempo mostra o quão intratável ele é.
Mas nada justificaria assentar-se e assistir às invasões bárbaras. Tendo em mente a evidência a respeito desses sistemas de processamento e aprendizado, é muito importante que os processos educacionais globais de nossa civilização tenham seus fins modificados, para incorporar sistematicamente o princípio da fraternidade, e que seus métodos sejam ajustados a essas realidades sobre a natureza humana recentemente iluminadas pelas ciências comportamentais.
Nesse sentido, o ensino do princípio da fraternidade precisa receber especial atenção pelos arquitetos de escolhas na mídia e na imprensa, na educação formal, na política pública, nas igrejas e religiões, no mercado e onde houver líderes e tomadores de decisão. A construção da comunidade e do sentido de “nós” a partir do cultivo de bens comuns deve receber a prioridade que merece.
Ao mesmo tempo, os riscos da tribalização devem ser explícita e sistematicamente encarados. Pois é sempre possível criar um “nós” enviesado, reativo e exclusivista, que sirva apenas a interesses internos. Sem trabalho crítico e um universalismo identitário intencional, os sentimentos de grupo poderão facilmente desembocar em processos de tribalização e de exclusão, que estão em alta contemporaneamente. Notoriamente na xenofobia da extrema-direita em vários países, bem como na psicopolítica identitária.
Em The Coddling of the American Mind, Jonathan Haidt e Greg Lukianoff apontaram essa falha na educação norte-americana contemporânea. Citei o trecho noutra ocasião e repito aqui para reforçar o ponto:
Neste livro temos enfatizado um princípio básico de psicologia social: quanto mais separamos as pessoas apontando as diferenças entre elas, mais divididas e menos confiantes umas nas outras elas se tornarão. Alternativamente, quanto mais enfatizamos objetivos ou interesses comuns, compartilhamos destinos e a humanidade comum, mais elas verão umas às outras como seres humanos como elas, tratarão bem umas às outras, e virão a apreciar duas diferentes contribuições à comunidade. Pauli Murray expressou o poder desse princípio quando escreveu “Quando meus irmãos tentavam traçar um círculo para me excluir, eu traçava um círculo mais largo para incluí-los”.
O universalismo deve ser afirmado e buscado com tanta qualidade e intensidade quanto se afirmam as identidades particulares: para cada “eu” é preciso um “nós”, e para cada “nós”, deve ser traçado outro círculo de valor e significado que inclua os “outros” em um “nós” mais amplo, um círculo de universalização.
Nudges da fraternidade
Em outros termos: serão necessárias contramedidas pela fraternidade e o bem comum. Em nosso artigo anterior discutimos um importante paper de Robert Putnam, E Pluribus Unum: Diversity and Community in the Twenty-first Century, mostrando que o aumento da pluralidade cultural está associado a menores índices de solidariedade e de capital social.
A pesquisa de Putnam não prova, naturalmente, que não devemos estimular a pluralidade social, mas confirma o que a psicologia moral moderna vem repetindo: a natureza humana apresenta traços tribais de base evolutiva, e processos automáticos de empatia, vieses intragrupais e heurísticas afetivas, tal qual um “João Teimoso”, frustrarão nossos esforços para fazer a coisa certa, a não ser que empreguemos contramedidas inteligentes para contornar essas tendências.
Kahneman nos ajudará aqui a entender que a cauda emocional abana o cão racional:
A combinação de um Sistema 1 que busca coerência com um Sistema 2 preguiçoso significa que o Sistema 2 vai endossar muitas crenças intuitivas, as quais refletem intimamente as impressões geradas pelo Sistema 1. (...) A dominância de conclusões sobre argumentos é mais pronunciada quando há emoções envolvidas. O psicólogo Paul Slovic propôs uma heurística do afeto (affect heuristic) em que as pessoas deixam que suas simpatias e antipatias determinem suas crenças acerca do mundo. (...) A primazia das conclusões não significa que sua mente está completamente fechada e que suas opiniões são inteiramente imunes à informação e à argumentação sensata. Suas crenças, e até sua atitude emocional, podem mudar (...) A autocrítica é uma das funções do Sistema 2.
Para cada “eu” é preciso um “nós”, e para cada “nós”, deve ser traçado outro círculo de valor e significado que inclua os “outros” em um “nós” mais amplo
E é assim que funciona, caros leitores: a solidariedade “tribal” natural e simpatias e antipatias naturais não podem ser superadas sem esforço intencional para a construção de uma atitude universalista e cosmopolita. Pois tal aprendizado exige a mobilização do Sistema 2, e isso é sempre mais custoso.
Aqui a moderna economia comportamental pode ajudar. Nudges que evidenciem a universalidade da pessoa humana e o cultivo conjunto de bens e valores reconhecidos por todos serão especialmente eficientes no sentido de baixar a guarda e garantir reconhecimento mútuo e inclusão. Seriam meios comportamentais de “traçar círculos mais amplos”.
Pode-se, assim, construir um círculo virtuoso de aprendizado comportamental, sincronizando Sistema 1 e Sistema 2 de tal modo que experiências de pensamento lento e reflexivo sejam pitstops, paradas de revisão e ajustamento da consciência coletiva, para retomadas da atividade prática que possam progressivamente incorporar novas atitudes morais como hábitos mentais e comportamentais incorporadas ao Sistema 1 – ou seja, como virtudes.
A chave de tudo isso será, naturalmente, reunir as pessoas ao redor do bem comum. Cuidando juntos de coisas que importam, teremos boas oportunidades para nos descobrir como semelhantes e estabelecer os laços morais e sociais para preservar a nossa civilização. E os líderes dessas iniciativas poderão atuar como arquitetos de escolhas altamente eficientes, se aproveitarem a chave do paternalismo libertário. Políticas institucionais, sejam públicas, privadas ou em qualquer campo na sociedade civil, orientadas por influenciadores sábios e não coercivos, e que empreguem sistematicamente esse processo de expansão dos círculos da fraternidade, poderiam operar como grandes nudges para a fraternidade e a amizade social.
Inteligência americana pode ter colaborado com governo brasileiro em casos de censura no Brasil
Lula encontra brecha na catástrofe gaúcha e mira nas eleições de 2026
Barroso adota “política do pensamento” e reclama de liberdade de expressão na internet
Paulo Pimenta: O Salvador Apolítico das Enchentes no RS