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Detalhe de O Casamento Camponês, de Pieter Bruegel o Velho.
Detalhe de O Casamento Camponês, de Pieter Bruegel o Velho.| Foto: Google Art Project/Wikimedia Commons

“Os conflitos locais e o desinteresse pelo bem comum são instrumentalizados pela economia global para impor um modelo cultural único. Esta cultura unifica o mundo, mas divide as pessoas e as nações, porque ‘a sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos’. Encontramo-nos mais sozinhos do que nunca neste mundo massificado, que privilegia os interesses individuais e debilita a dimensão comunitária da existência.” (Papa Francisco, encíclica Fratelli tutti)

Estamos imersos numa cultura global de subjetivismo e individualismo, que é alérgica à vivência comunitária. Essa cultura é sustentada, de modos diferentes, tanto pela esquerda quanto pela direita. Ambas estão comprometidas com o “capitalismo emocional”, com a felicidade e a emancipação moral do indivíduo.

Os excessos da busca por liberdade e igualdade nos levaram à polarização radical e a um impasse moral e político na sociedade contemporânea. Alguns reconheceram que esse impasse civilizacional se deve ao esquecimento, por socialistas e liberais, do terceiro princípio do movimento moderno dos Direitos Humanos: o princípio da fraternidade.

Precisamos reconhecer a nossa pobreza de capitais sociais e morais para efetivar a fraternidade, e começar a pensar em como obter essas riquezas espirituais

Embora não seja incomum a suspeita de que esses princípios, exaltados pela Revolução Francesa, representariam uma fundamentação secularizada e frágil demais para sustentar o bem comum, o fato é que o papa Francisco escolheu exatamente esse princípio como saída para o impasse. Creio que a escolha foi acertada, e que esse princípio oferece uma base comum entre a mensagem do cristianismo e as necessidades de nossas modernas sociedades liberais. Mas, se concordarmos sobre isso com a encíclica Fratelli tutti, ainda teremos de responder a questões práticas: como tirar esse belo princípio do papel?

Tendo em mente a tese de Eva Illouz sobre o capitalismo de consumo ter se desdobrado em um capitalismo emocional individualista e exploratório, desregulamentando, comodificando e refugando os laços comunitários, eu sugeriria que precisamos de uma nova economia afetiva e também moral. Precisamos reconhecer a nossa pobreza de capitais sociais e morais para efetivar a fraternidade, e começar a pensar em como obter essas riquezas espirituais.

Depois de nossa avaliação preliminar da encíclica papal Fratelli tutti, apresentamos mais dois artigos em nossa coluna ao redor do tema. No primeiro discutimos o problema da crise da confiança entre as pessoas e da perda de capitais sociais, que torna a cooperação pelo bem comum muito difícil; no segundo, colocamos a lupa sobre a singularidade do princípio da fraternidade e sua dependência da comunidade e da prossocialidade. No artigo de hoje vamos aprofundar um pouco mais na busca de ferramentas para o cultivo do princípio da fraternidade. E propor uma ferramenta específica: o conceito de “capital moral”.

Capitais sociais

Em nosso artigo sobre a crise de confiança na sociedade brasileira mencionamos ideias de Robert Putnam e Francis Fukuyama sobre “capitais sociais” e sobre como a confiança entre as pessoas acentua o capital social numa comunidade.

Pense no capital social como outro tipo de capital: tendo dinheiro, você pode fazer coisas com ele, como comprar, negociar, investir com outras pessoas, e com isso criar coisas. Por analogia, temos capital social quando temos elevada capacidade de cooperar e de resolver problemas juntos. Ou seja: sinergia.

Mas de que é “feito” esse capital social? Onde ele é “guardado”, por assim dizer? Segundo Robert Putnam, em seu clássico Comunidade e Democracia, “o capital social diz respeito a características da organização social, como confiança, normas e sistemas que contribuam para aumentar a eficiência da sociedade, facilitando as ações coordenadas”. Confiança, normas compartilhadas e sistemas (como procedimentos e instituições): um belo resumo, que se tornou uma definição standard.

Quero chamar a atenção aqui para a questão das normas compartilhadas. Esse é um ponto delicado, pois uma parte importante da vida intelectual brasileira é avessa a discutir cultura e comportamento a partir de categorias morais. Ela tende a buscar as causas do sucesso e do fracasso das comunidades em fatores independentes da moralidade pessoal; fatores “estruturais” como sistema econômico, organização política, padrões de distribuição de renda e de discriminação. Relacionar crenças morais particulares com o fracasso seria preconceituoso e discriminatório, e uma tentativa ideológica de impor uma moralidade de elite. Como se combater atitudes alegadamente “discriminatórias” usadas para promover certo sistema moral não fosse também um ato de discriminação de certas atitudes a partir de uma moralidade de elite – ou seja, precisamente a mesma coisa.

Mas há boas razões para crer que certos valores morais específicos realmente favorecem o florescimento humano e o bom funcionamento de sociedades democráticas. Sobre isso Francis Fukuyama vai direto ao ponto em seu texto “Capital social”, no livro A cultura importa:

As normas que produzem o capital social (...) Precisam incluir, substantivamente, virtudes como falar a verdade, cumprir obrigações e exercer a reciprocidade. Previsivelmente, essas normas coincidem, em um grau importante, com os valores que Max Weber considerou vitais para o desenvolvimento do capitalismo ocidental em seu livro A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (...) Apesar de todos os grupos necessitarem de capital social para operar, alguns criam laços de confiança (e por consequência capital social) fora do seu próprio âmbito de filiação. Como indicou Weber, o puritanismo exigia honestidade não só para com os outros membros da comunidade religiosa, mas para com todos os seres humanos.

As normas e valores certos, quando compartilhados, elevam a confiança entre as pessoas e tornam “naturais” certos comportamentos prossociais. Elas confiam mais umas nas outras, cooperam mais, e isso favorece a democracia, a economia e a vida comum. De certa forma não há mistério aqui: os valores certos são os que favorecem o florescimento comunitário.

O capital moral

O historiador, filósofo e ex-senador holandês Roel Kuiper publicou em 2009 sua tese Moreel Kapitaal, publicada no Brasil em 2019 sob o título Capital Moral: o poder de conexão da sociedade, na qual expõe o que poderíamos considerar uma especificação do conceito de “capital social”.

Para Kuiper, a sociedade não é exatamente um organismo, nem um sistema lógico fechado, mas uma equação de relacionamentos e de estruturas sociais, e a qualidade do tecido social depende do sucesso das relações de interdependência.

As normas e valores certos, quando compartilhados, elevam a confiança entre as pessoas e tornam “naturais” certos comportamentos prossociais. Elas cooperam mais, e isso favorece a democracia, a economia e a vida comum

Poderíamos falar, de modo lato, num sistema de redes simbióticas. Essas redes simbióticas teriam seu nascedouro em relações de confiança e cuidado coletivo. Kuiper aprofundou o conceito de “capital moral” desenvolvido por Michele Lamont, aluna de Pierre Bourdieu, para estudar a formação desses laços simbióticos, e o definiu como se segue:

Como capital moral entendo a capacidade (individual e coletiva) de estar junto ao próximo e ao mundo de forma preocupada (...) no comportamento preocupado do qual estou falando se expressam valores centrais como amor e lealdade – em diversas modalidades e de acordo com contextos. A capacidade de estar junto ao próximo de uma forma preocupada é expressa em padrões de responsabilidade social e, portanto, tem por definição bases e características sociais.

O capital moral está ancorado nas práticas sociais cotidianas como a da educação, mas também de atividade econômica e política, gestão do meio ambiente e o empenho por um time de futebol, por exemplo. Quando pessoas desenvolvem atividades orientadas em conjunto, falamos de práticas sociais. Práticas sociais são carregadas normativamente, e são um convite ao comportamento moral.

Por que falo aqui de “capital”? Simplificando, o que me importa é a capacidade individual e coletiva de estabelecer relações morais. Aqui, portanto, traduzo a palavra “capacidade” como “capital” (...) Trata-se do que acontece na rede de relacionamentos da sociedade. O capital moral aponta para a força de conexão de uma sociedade, a capacidade de permitir que as pessoas e seus laços se satisfaçam completamente e se voltem para a cooperação mútua e o bem-estar público.

Poderíamos estender a linguagem analógica e dizer que os capitais morais são o excedente e a riqueza social necessária para o cultivo da fraternidade.

Em sua análise do desenvolvimento da sociedade moderna, Kuiper mostra que os estilos de pensamento e padrões de agir modernos causaram uma degradação dos capitais morais necessários para o funcionamento da sociedade (observação similar foi feita por Jonathan Haidt). Isso se deveu ao processo de individualização característico da modernidade, e a reconfiguração das relações sociais como relações de contrato, baseadas em interesses eletivos.

Segundo Kuiper, contratos protegem áreas limitadas de acordo de interesses, não envolvendo uma responsabilidade moral pela pessoa do outro, sendo uma categoria oriunda das relações comerciais, e intrinsecamente instrumental. Com a modernidade, a metáfora contratual foi elevada a categoria abrangente para as relações políticas e sociais, substituindo progressivamente o modelo de pacto ou aliança, segundo o qual o compromisso moral entre as pessoas não seria condicional e não se reduziria a um círculo de interesses convergentes.

Hardware e software social

Kuiper usa a analogia de “hardware” social para referir-se ao sistema de distribuição de bens e de governo, e “software” social para referir-se ao imaginário das pessoas operando naquele sistema. À medida que capitalismo de consumo e Estado Contratual Liberal se impuseram como o novo hardware social, desenvolveu-se também um novo software social, por meio do imaginário artístico, da cultura pop, pela psicologia moderna e os “campos afetivos” (Eva Illouz) e, acima de tudo, pela educação construtivista.

Esse software seria uma gramática moral contratualista, instrumental, centrada nos ganhos do indivíduo, e incapaz de articular claramente sentimentos morais comunitários, deveres cívicos, lealdades comunitárias e religião. Essa mudança de gramática social refletiu, segundo Kuiper, o esquecimento da categoria da confiança entre as pessoas:

De onde veio essa preferência pela sociedade como contrato? Tanto Hobbes quanto Locke partem de uma sociedade em que as pessoas não confiam mais umas nas outras. Essa constatação tem tudo a ver com experiências durante as guerras civis do século 17 na Inglaterra. Numa situação em que os cidadãos estão profundamente divididos e a confiança social é insuficiente, uma relação contratual é suficiente para criar uma ordem social. Por meio do contrato, tenta-se criar uma nova situação, uma situação de confiança institucional para compensar a perda de confiança social. Um pacto é o epítome da confiança social.

A invisibilidade dos temas de capitais sociais, capitais morais, da confiança social e da fraternidade tem origem numa concepção falsa da sociedade como um sistema de contratos

Kuiper fala sobre relações “espessas” (thick) e relações “delgadas” (thin). Alianças são relações espessas; contratos e encontros casuais, relações delgadas. Capitais morais seriam um produto de difícil constituição, criados principalmente em contextos nos quais promessas, lealdade e fidelidade são as categorias dominantes – ou seja, em contextos de relações espessas e de alta confiança entre as pessoas. Para entendermos esse ponto vale outra citação de nosso filósofo:

A gramática social aqui adaptada é a do compromisso por amor ou da fidelidade comunitária. Esta não é condicional, como no contrato, mas incondicional. Não se abandona o outro, seja lá o que aconteça ou seja lá o que custar. Isso implica em que as pessoas deixam prevalecer o interesse ou o bem-estar do outro. A fidelidade comunitária requer formas de altruísmo forte.

O exemplo mais claro é o da família nuclear em que a gramática de fidelidade comunitária está nas relações entre pais e filhos. O chamado para se estar disponível um para o outro está implícito na estrutura da família como tal. As crianças dependem dessa fidelidade comunitária que se baseia em relações morais fortemente construídas.

(...) o capital moral primário da sociedade é formado pela sociedade nas estruturas sociais mais duradouras e inclusivas.

Para uma sociedade bem conectada, é crucial que se realizem os processos dialógicos da reciprocidade e que neles ocorra a proliferação de capital moral. Esse intercâmbio dialógico precisa ser dominado por uma noção de bem-estar público em um forte contraste com a noção do interesse próprio. Por definição, não é possível o surgimento de afinidade se indivíduos e sistemas sociais permanecerem focados em si mesmos.

O filósofo fornece, assim, o que poderia ser considerado uma plausível explanação histórica para os resultados da pesquisa de psicologia social de Jonathan Haidt, e um esclarecimento do contexto ideológico que favoreceu a emergência da mente W.E.I.R.D. – assunto de que tratamos frequentemente nessa coluna. A partir dos centros de poder da sociedade moderna, pratica-se uma paideia com menos sentido de coletividade e comunidade, com os fundamentos morais mais associados ao protagonismo individual supervalorizados, e os fundamentos morais mais associados à coesão social subvalorizados.

Quais seriam as formas de vínculo social capazes de gerar capitais morais? Já citamos a família, quando esta é minimamente funcional; devemos citar ainda as comunidades religiosas e os vínculos educacionais, sendo, portanto, a escola um dos mais importantes contextos geradores de capitais morais. Incluem-se também aqui associações nas quais bens comuns são reconhecidos e cultivados colaborativamente, como sociedades de cuidado ambiental, de assistência, caridade e desenvolvimento comunitário, e ajuda humanitária em geral, criando oportunidades para as relações de cuidado e lealdade.

Dada a importância dessas instituições, por que elas recebem tão pouca importância da parte do Estado e das políticas públicas? Por que os direitos dos indivíduos são buscados principalmente por judicialização e movimentos sociais de pressão sobre o Estado? A invisibilidade dos temas de capitais sociais, capitais morais, da confiança social e da fraternidade tem origem numa concepção falsa da sociedade como um sistema de contratos.

Os estilos de pensamento e padrões de agir modernos causaram uma degradação dos capitais morais necessários para o funcionamento da sociedade

O problema com a concepção da sociedade como contrato é que ela não mais se ocupará com determinadas estruturas sociais (com as práticas morais correspondentes) das quais ela é dependente. Ela não pode mais incluí-as no universo simbólico que ela estabelece.

Temos aqui a causa-raiz do “dialeto” liberal-progressista que controla boa parte do discurso e das políticas públicas de direitos humanos na atualidade. Trata-se de uma gramática social que não consegue articular o princípio da fraternidade, exceto como abstração. Ou, em outros termos, de uma economia moral pobre e injusta. Essa é a “cultura global” denunciada pelo papa Francisco na epígrafe de nosso artigo.

Capitais morais são, por assim dizer, o “tutano” dos capitais sociais, e a chave para a implementação do princípio da fraternidade. Mas o que podemos fazer concretamente para promover a sua produção?

Hive switch” e bem comum

Uma das criativas contribuições de Jonathan Haidt é o que ele chama de Hive switch, ou “seletor de colmeia”. Na sua metáfora, os seres humanos, enquanto Homo duplex (Durkheim), seriam uma mistura de “chimpanzés” com “abelhas”. Na maior parte do tempo operam como indivíduos, mas em certas situações sincronizam sua atividade e se tornam um só:

Minha hipótese (...) é que os seres humanos são criaturas de colmeia condicionais. Temos a habilidade (sob condições especiais) de transcender o autointeresse e perder a nós mesmos (temporariamente e estaticamente) em algo maior que nós mesmos. Essa habilidade é o que chamo de seletor de colmeia.

Sabemos que grupos de indivíduos podem entrar em ressonância e agir coletivamente por fins pouco louváveis ou até deploráveis, como se vê por exemplo na violência de algumas torcidas organizadas, de grupos integristas, ou de agitadores black blocs. Mas muitas são experiências positivas, como o êxtase religioso, a execução musical coletiva, a dança, a competição esportiva em grupo, e esforços de cuidado do meio ambiente. O desafio em questão é, portanto, o de promover intencionalmente e mesmo pedagogicamente situações nas quais indivíduos sejam motivados a deixar o modo individualista de funcionamento e se associar por coisas maiores do que si mesmos, mas que tenham significado moral positivo.

Reunindo comunidades ao redor do que possa ser reconhecido como o bem comum, os laços simbióticos poderiam ser construídos ou reforçados pelo trabalho coletivo de cuidar desses bens

Está claro que o capital moral surge em contextos de cuidado. Desse modo, é preciso promover e facilitar tais situações de cuidado. Isso pode ser feito, em primeiro lugar, preservando e potencializando contextos naturais de cuidado, como a família e a religião. Além disso, incentivos podem ser dados para articulações simbióticas, nas quais grupos de pessoas se reúnam com propósitos altruístas na construção do bem comum. Vale relembrar um trecho da encíclica:

Fixemos o modelo do bom samaritano. É um texto que nos convida a fazer ressurgir a nossa vocação de cidadãos do próprio país e do mundo inteiro, construtores dum novo vínculo social. Embora esteja inscrito como lei fundamental do nosso ser, é um apelo sempre novo: que a sociedade se oriente para a prossecução do bem comum e, a partir deste objetivo, reconstrua incessantemente a sua ordem política e social, o tecido das suas relações, o seu projeto humano.

Para os contextos eclesiais, escolares, familiares e comunitários em geral nosso desafio encontra-se no desenvolvimento de estratégicas de aceleração de simbiose e de oportunidades de cuidado. Nesse sentido, a política pública não se voltaria, em primeiro lugar, para a provisão de recursos, mas para a construção de cenários de oportunidade e incentivos com vistas ao disparo do hive switch. Além disso, ela deve atuar na identificação de fenômenos que possam ser reconhecidos como bens comuns e potenciais objetos de cuidado colaborativo; o hive switch deve ser vinculado a situações criativas e construtivas.

Desse modo, reunindo comunidades ao redor do que possa ser reconhecido como o bem comum, os laços simbióticos poderiam ser construídos ou reforçados pelo trabalho coletivo de cuidar desses bens, utilizando-se essa situação de sensibilidade socioafetiva “aquecida” para articular o princípio da fraternidade e estimular uma ética de responsabilidade comunitária.

Esperamos que, com tais esforços, hábitos de confiança e confiabilidade possam ser constituídos, alimentando o princípio da fraternidade e uma economia moral do bem comum.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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