“O desafio central para sociedades modernas e diversificadas é criar um novo e mais amplo sentido de ‘nós’.” (Robert Putnam, E Pluribus Unum)
A chamada de um artigo do New York Times, na última quarta feira, reza que o mundo aguardaria transfixado o desdobramento das eleições nos EUA. Não acho sábio reprovar esse interesse; os acontecimentos por lá certamente terão impacto global e enormes reverberações por aqui.
Os efeitos avançados da polarização e da perda de capitais sociais na América, por um lado, e a retomada do debate sobre o princípio da fraternidade, por outro, sinalizam a necessidade de outro olhar para os problemas de nossas modernas sociedades. Nesse sentido, a fragmentação da sociedade americana e suas tentativas de interpretar o fenômeno podem nos trazer ganhos de perspectiva.
As complexidades da guerra cultural
Com isso em mente, todo o processo eleitoral nos EUA levantou muitas questões intrigantes, e um dos maiores enigmas foi o aparente crescimento do eleitorado de Trump entre minorias, segundo as exit-polls. Biden cresceu entre homens brancos e idosos; enquanto isso, o eleitorado negro e hispânico de Trump aumentou significativamente, definindo as eleições em lugares como a Flórida. A esperança de uma migração radical do voto feminino para Biden não se concretizou e, segundo a pesquisa do New York Times, o apoio LGBTQIA+ a Trump teria dobrado, de 14% para 28%.
É inegável que Trump não opera como construtor de pontes; seu método é truculento e divisivo, e se alimenta do ressentimento de trabalhadores, religiosos e interioranos contra a elite cultural urbana. Mas enxergar o Partido Democrata e sua ponta-de-lança identitarista como um movimento reconciliatório seria pura autoilusão. O método standard dos democratas e da esquerda dos EUA, hoje, ainda é a psicopolítica identitária, do nós-contra-eles, dos expurgos ideológicos e do cultivo do ressentimento de minorias para energizar a política. Mark Lilla, em seu artigo “Quando meus colegas democratas vão aprender?”, no UnHerd, lamentou que seu argumento em O Progressista de Ontem e o de Amanhã tenha sido solenemente ignorado, e que os democratas tenham piorado, com uma abordagem identitária ainda mais agressiva.
A indignação pode ser recrutada para tocar uma guerra eleitoral, mas cria um enorme ônus para a governabilidade, e aliena pessoas que poderiam estar “do nosso lado”
Alguém pode retrucar que – evidentemente – eles ganharam o pleito de 2020; sim, Biden foi eleito. Mas um partido ainda mais radicalizado poderá unir a nação? Dificilmente.
Trump perdeu brancos idosos, e Biden perdeu negros! Isso poderia ser desconsiderado se essas identidades não fossem fatores tão salientes na imprensa e no debate político recente. O que as eleições americanas sugerem é que a retórica da diversidade tende a produzir maior alienação e conflitividade, e que o identitarismo exacerba o viés intragrupal. A indignação pode ser recrutada para tocar uma guerra eleitoral, mas cria um enorme ônus para a governabilidade, e aliena pessoas que poderiam estar “do nosso lado”.
A diversidade e “a tartaruga interior”
Em um artigo clássico, E Pluribus Unum: diversity and community in the twenty-first century, de 2007, o cientista político Robert Putnam apresentou sólidos resultados de uma pesquisa nacional sobre diversidade étnica e capitais sociais. Putnam mostrou que vizinhanças etnicamente diversas apresentariam níveis de capital social inferiores a comunidades etnicamente homogêneas. Áreas muito diversas apresentariam menos confiança inter-racial e também dentro de cada “raça”, menos altruísmo, menos cooperação, menos amizades, e índices menores em diversas outras variáveis. Esse seria, na verdade, um problema crônico da sociedade americana, segundo discutimos no artigo “Por que a fraternidade importa”, nessa coluna. Ainda segundo Putnam, “no curto e médio prazo... a imigração e a diversidade étnica desafiam a solidariedade social e inibem o capital social”. Vale uma citação maior:
Habitantes de comunidades diversificadas tendem a se retirar da vida coletiva, a desconfiar de seus vizinhos, independentemente da cor da pele, e a se evadir até de amigos próximos, a esperar o pior de sua comunidade e de seus líderes, a se voluntariar menos, a doar menos para caridade e a trabalhar menos frequentemente em projetos comunitários, a registrar-se menos para votar, a aderir mais a agitações por reforma social, mas têm menos fé de que seria possível fazer alguma diferença, e a sentar-se infelizes diante da televisão. Note que esse padrão cobre atitudes e comportamentos, capital social de coesão (bonding) e de mediação (bridging), conexões públicas e privadas. A diversidade, ao menos no curto prazo, parece despertar a nossa tartaruga interior.
O que ocorre, em termos muito simples, é que a diversidade quebra a naturalidade e o automatismo das redes de cooperação, criando “anomia ou isolamento social”; e as pessoas respondem com gestos de introversão. Se asiáticos chegam a uma área onde há negros e brancos, por exemplo, os dois grupos desconfiam dos asiáticos; mas além disso, a desconfiança entre os dois grupos aumenta e, surpreendentemente, os membros de cada grupo se tornam mais desconfiados e menos cooperativos entre eles mesmos! Aparentemente a ecologia social de uma comunidade apresenta uma lógica complexa e independente da boa vontade de agentes públicos.
Mas Putnam não para por aí. Ele apresenta também forte evidência de que sociedades de imigrantes, no médio e longo prazo, experimentariam diversos benefícios após vencer a fragmentação, como crescimento econômico, criatividade cultural e acadêmica e equilíbrio previdenciário, entre outros.
A evidência científica de Putnam é impressionante, mas ele não tira com isso a conclusão apressada e moralmente questionável de que comunidades homogêneas deveriam ser preferidas. Seu ponto, perfeitamente razoável, é o de que contramedidas ativas devem ser tomadas para atravessar as fases críticas do processo de incorporação da diversidade, de modo a compensar a perda de solidariedade e de capitais sociais.
Um remédio para a síndrome da tartaruga?
Putnam cita um surpreendente exemplo de como administrar bem a tartaruga interior: megaigrejas.
Os americanos, historicamente, se dividiam em comunidades religiosas segregadas: igrejas de negros e de brancos rigidamente homogêneas. A coisa começou a mudar com as megaigrejas evangélicas, pesquisadas pessoalmente por Putnam e outros colegas. Eles descobriram que os jovens em megaigrejas e em paróquias católicas reportavam maior integração racial que nas igrejas históricas menores. Como explicar o fenômeno?
É preciso descobrir de que modo, onde e quando eu e o outro diferente de mim estamos juntos
A hipótese de Putnam, que considero altamente plausível, é de que novas identidades religiosas foram construídas, não apagando, mas transcendendo as identidades raciais convencionais. Isso é realmente muito interessante: um círculo de conexão identitária mais amplo aparentemente tem o poder de relativizar e qualificar um círculo identitário mais estreito, criando outra base comum e compensando a perda de capitais sociais provocada naturalmente (dada a nossa psicologia moral) pela diversidade:
Sobre como administrar o desafio que a imigração e a diversidade colocam ao capital social e à solidariedade... a melhor forma de enfrentar o desafio não é tornando “eles” iguais a “nós”, mas criando um novo e mais espaçoso sentido de “nós”, uma reconstrução da diversidade que não apague nossas especificidades étnicas, mas que crie identidades abrangentes, que assegurem que aquelas especificidades não disparem a reação alérgica de introversão.
A proposta de Putnam é simples e elegante: é preciso descobrir de que modo, onde e quando eu e o outro diferente de mim estamos juntos. Talvez no campo X, da economia política, por exemplo, estejamos separados; mas no campo Y, da responsabilidade ambiental, estejamos juntos. Talvez tenhamos uma séria diferença religiosa, mas uma convergência na educação das crianças. É certo que, em alguns casos, como da cor da pele, temos apenas preconceitos a remover; já no caso da religião, as diferenças podem ser intransponíveis. Mesmo assim, se nos reconhecemos como coparticipantes de um círculo de identidade mais amplo, como homens, mulheres, trabalhadores, acadêmicos, vizinhos ou brasileiros, podemos encontrar ali as condições para um esforço de cooperação que pode reduzir a pressão aonde divergimos.
Os círculos do bem comum
Quase no fim de seu best-seller The Coddling of the American Mind, de 2018, Jonathan Haidt e Greg Lukianoff nos oferecem um conselho bastante alinhado com os argumentos de Putnam – que o próprio Haidt já havia citado em sua obra anterior de psicologia moral (The Righteous Mind):
Neste livro temos enfatizado um princípio básico de psicologia social: quanto mais separamos as pessoas apontando as diferenças entre elas, mais divididas e menos confiantes umas nas outras elas se tornarão. Alternativamente, quanto mais enfatizamos objetivos ou interesses comuns, compartilhamos destinos, e a humanidade comum, mais elas verão umas às outras como seres humanos como elas, tratarão bem umas às outras, e virão a apreciar duas diferentes contribuições à comunidade. Pauli Murray expressou o poder desse princípio quando escreveu, “Quando meus irmãos tentavam traçar um círculo para me excluir, eu traçava um círculo mais largo para incluí-los”.
Não é necessário perder a particularidade identitária; mas as saliências podem ser suavizadas, e o “eles” ser contrabalançado por um “nós”
Eu teria aqui uma proposta: que alinhemos esse princípio de psicologia social com a ideia de capitais morais e bem comum. Não precisamos, a essa altura, de uma teoria metafísica do bem; basta que as pessoas reconheçam bens comuns, materiais ou imateriais, e estabeleçam condições humildes e mínimas de cooperação. Talvez elas não concordem sobre teoria da literatura, mas podem concordar sobre a importância dos livros, e construir juntas uma biblioteca. Nesse processo de cuidado coletivo pelo bem comum, o que as une pode, eventualmente, avançar para o primeiro plano, e o que as divide regredir para o segundo plano. Não é necessário perder a particularidade identitária; mas nesse processo as saliências podem ser suavizadas, e o “eles” ser contrabalançado por um “nós”. O novo “nós” é um círculo de identificação coletiva construído ao redor de uma relação de cuidado com um bem comum.
Criando capitais sociais e capitais morais, a partir de práticas de cooperação pelo bem comum, poderemos manter sob controle nossas tartarugas interiores; e teremos melhores condições de retomar a conversação racional para renovar nossas democracias e sociedades modernas.
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