“A Era Ecumênica” era a designação de Eric Voegelin para esse período histórico em que grandes impérios forçaram a coexistência, sob as mesmas estruturas de controle político, de sociedades que haviam desenvolvido suas próprias expressões da unidade entre a vida humana e a ordem cósmica e divina. Nessa situação multicultural forçada, os sistemas espirituais, morais e sociais de povos diversos perdiam muito de sua transparência e autoridade, resultando num estado de profunda crise e desordem espiritual e moral.
Mas precisamente desse estado de crise generalizada é que emergiram as grandes contribuições filosóficas e proféticas de resistência à desordem, reconectando novamente largos setores das sociedades antigas, através de símbolos renovados, com a fonte divina do cosmo. E assim a experiência da ordem era restaurada. Aí se encontram figuras como as de Platão, Aristóteles, Moisés e Jesus. Ignorando por um momento o mérito das especulações metafísicas de Voegelin, seu insight sobre essa correlação entre crise civilizacional e fertilidade espiritual é salutar. Nas palavras de Ted McAllister, em Revolta contra a Modernidade: “Quando impérios multicivilizacionais enfraqueceram a fé de que sociedades eram portadoras de um sentido transcendental, a desordem existencial que se sucedeu precipitou uma explosão espiritual”. A ordem imperial forçada é o império da desordem espiritual; mas, ironicamente, ela pode conduzir a uma renovação da ordem.
Se o século 20 nos mostrou alguma coisa nesse campo, foi que Estados nacionais não podem ser largados sem vigilância; sua vontade de devorar os cidadãos dorme, mas não morre
A despeito da consciência de crise espiritual no ocidente, tão viva na mente de Voegelin, fantasio que ele arrancaria os poucos cabelos que restaram se presenciasse nosso momento imediato, no qual assistimos à radicalização de uma estrutura nitidamente imperial e, ao mesmo tempo, de uma fragmentação espiritual sem precedentes em largas parcelas do mundo contemporâneo.
A nova estruturação social
Um número de autores vem levantando esse problema, da formação de uma superelite econômica global que transgride as soberanias nacionais e as realidades comunitárias locais, enfraquecendo (por que não, “desempoderando”?) as classes médias e pessoas cujas lealdades religiosas, culturais e econômicas dependem de seu enraizamento local. Goste-se ou não da linguagem “antiglobalista”, o reconhecimento do fenômeno é algo razoavelmente bem-assentado. Não é por acaso que vimos uma grande revolta neopopulista e a ascensão de uma nova direita disparatadamente e sem coordenação central em diversos países do “centro”: França, Itália, Alemanha, Holanda, Suécia, Reino Unido e Estados Unidos. E em não poucos países periféricos ou semiperiféricos, como o Brasil.
Não me conto entre os neossoberanistas que desprezam, por exemplo, os sistemas internacionais de Direitos Humanos. É verdade que passamos raiva com eles, quando notamos agendas nitidamente ideológicas se passando por direitos humanos, mas, se o século 20 nos mostrou alguma coisa nesse campo, foi que Estados nacionais não podem ser largados sem vigilância; sua vontade de devorar os cidadãos dorme, mas não morre.
Mas meu assunto hoje não é o que está certo ou errado nos DH, mas esse fato da nova guerra de classes. O geógrafo francês Christophe Guilluy oferece uma apresentação muito clara e não técnica do problema em O Fim da Classe Média: A fragmentação das elites e o esgotamento de um modelo que já não constrói sociedades. A obra descreve esse processo de constituição de uma nova elite econômica e cultural, combinando a superelite liberal transnacional e as burguesias locais (a mesma “burguesia boêmia” referida por Richard Florida), ao mesmo tempo em que as classes médias (média-baixa e média-média) de diversos países, formadas de funcionários de escritórios, profissionais autônomos, pequenos produtores, aposentados e mesmo o operariado, se tornaram cada vez mais marginalizados economicamente e afastados dos centros de produção econômica e cultural.
Mas a alienação não foi apenas econômica; no caso da Europa, foi nítida a sensação de que a política trabalhava para interesses outros, de um grande capital internacional e uma burocracia administrativa supranacional, e não para os eleitores locais, do seu próprio país – daí coisas como o Brexit, por exemplo. Adicione-se o discurso multiculturalista, que colocou grandes porções da população sob um estresse econômico e identitário elevado, gerando o que foi chamado de “insegurança cultural”; e a contínua pregação identitarista, através dos “retransmissores” da mensagem dessa nova elite – a mídia e a academia –, e temos a tempestade perfeita: um sentimento de profunda alienação, que colocou essa faixa social em oposição a todo o discurso “de cima”. Afirma Guilluy:
“Essas evoluções de fundo confirmam a cristalização de uma nova estruturação social no Ocidente. A estagnação ou queda do nível de vida das categorias modestas, a polarização do emprego, o desenvolvimento de empregos precários e o envelhecimento da população fazem emergir um grupo majoritário: o das novas classes populares.
Em paralelo, forma-se um grupo importante, o das novas classes superiores. Essa nova burguesia representa em parte os ganhadores da globalização. Concentradas nas metrópoles globalizadas, as categorias superiores não se confundem com a superclasse, mas, como ela, sustentam o modelo econômico e social dominante. Quer sua renda seja modesta ou elevada, essa nova burguesia é parte integrante do mundo de cima e participa da dominação econômica e/ou cultural do mundo de baixo. Da mesma maneira, é menos o nível de renda e mais a relegação cultural e geográfica que molda as novas classes populares.”
No caso da Europa, foi nítida a sensação de que a política trabalhava para interesses outros, de um grande capital internacional e uma burocracia administrativa supranacional, e não para os eleitores locais, do seu próprio país
Guilluy estabelece uma forte conexão entre a crise econômica dessas ex-classes médias e o choque de cultura e valores morais dessas classes com o cosmopolitismo da nova burguesia boêmia, a classe criativa (segundo Richard Florida), associada com a produção simbólica moderna. Considerando o fato de que o geógrafo demonstrou uma relação entre a formação dessa nova classe, pendurada à superelite globalista, e a concentração e riqueza nas global cities, é inevitável relacionarmos os valores das classes “de cima” com a cultural W.E.I.R.D., de que já tratamos aqui. Essa nova elite fala muito em “bem comum”, mas não o pratica, desprezando as ralés conservadoras e religiosas. É multicultural, identitarista, secularizada, odeia tradições, exceto decorativamente. Se Jonathan Haidt descreve os conservadores como sociocêntricos, Guilluy descreve essa nova elite progressista como os associais.
Tenho minhas dúvidas sobre a aplicabilidade integral do modelo de Guilluy ao Brasil – os novos eleitores da direita não são necessariamente uma “ex-classe média”; embora muitos tenham se desiludido com a crise de representação política, a corrupção e o colapso econômico durante o governo Dilma, o setor que participou das manifestações de 2013 incluía muita gente firmemente ancorada na classe média. Mas não era a “classe média-alta”, assim como muitos antigos eleitores da esquerda que inclinaram os Legislativos e os Executivos para a direita pertenciam à classe C. Ainda assim, meu palpite é que os nossos descontentes são, na sua maioria, economicamente inferiores à classe criativa tupiniquim; e eles compõem um verdadeiro proletariado cultural, com valores contrários à classe criativa e à agenda da superelite.
O que querem os “de baixo” no Brasil? Não apenas maior inclusão e segurança econômica. Eles querem o fim da hegemonia cultural e política da classe criativa, e um Estado que seja menos subserviente às superelites liberais.
Dividir para conquistar
Uma das observações mais interessantes de Guilluy, no meu julgamento, diz respeito ao mecanismo da perda do sentido de bem comum e da fragmentação das agendas sociais, que deixam de ser locais e passam a ser, por assim dizer, transversais. “Os países ocidentais entraram na era das pequenas sociedades” e “pequenos mundos”. Mas isso tem tudo a ver com discursos; a superelite liberal e a classe criativa promovem narrativas identitárias desnacionalizadas, modeladas pela globalização e pelo multiculturalismo:
“Por exemplo, a história específica dos negros americanos se torna pouco a pouco a dos negros franceses e europeus, do mesmo modo que a história dos muçulmanos franceses se confunde com a dos muçulmanos britânicos. No Ocidente, a expressão minoritária se tornou a norma, uma norma mudializada.”
Essa nova elite fala muito em “bem comum”, mas não o pratica, desprezando as ralés conservadoras e religiosas. É multicultural, identitarista, secularizada, odeia tradições, exceto decorativamente
É assim que a derrubada antirracista ou anticolonialista de estátuas nos EUA levou à vandalização de monumentos em vários lugares do mundo. Equivalências forçadas sobre o significado de negritude e branquitude para os norte-americanos e os brasileiros, ou do genocídio indígena dos EUA e as políticas indigenistas históricas do Brasil, tornam-se ortodoxias. O tipo de coisa que ainda deixando o antropólogo Antonio Riserio exasperado.
Mas o ponto importante é que essas linhas de fratura, ao serem exageradas, rompem os laços locais de solidariedade das pequenas comunidades, das igrejas, das famílias, até mesmo em agremiações maiores, como partidos. Troca-se a conexão social concreta, historicamente enraizada, por uma afinidade abstrata na qual o sujeito muitas vezes não habita com o corpo, mas com as ideias, apenas. É uma desencarnação comunitária. E quem manipula das cordas dessas novas linhas de solidariedade virtual é a superelite liberal, com o auxílio das classes criativas. A famílias, igrejas e países desaparecem. O que surge no lugar são as tribos identitárias, sem pertencimentos locais, sem compromisso com o bem comum, e totalmente submetidas ao capitalismo emocional.
Evidentemente isso funciona “bem”, tanto mais o sujeito é, ele mesmo, desenraizado, individualista, associal, avesso a compromissos, autoridades, religião e regras morais. Sua nova experiência social é estetizada, eletiva, decorativa; o “banho de gente” de que fala Gilles Lipovetsky. Mas, para quem pertence ao grupo “de baixo”, nada disso funciona, e eles se recusarão a entrar no jogo nesses termos, mesmo nos momentos em que a turma “de cima” tiver alguma razão, como na questão da crise ambiental global.
Por irracional que pareça em muitos momentos, a revolta “de baixo” não vai cessar. As condenações ao negacionismo, ao fascismo e outras pechas seguirão inócuas. Na minha perspectiva, por exemplo, a balbúrdia que a direita brasileira faz ao redor da vacina é delirante. Mas as causas dessa reação são totalmente compreensíveis. Não adianta a elite falar sobre “bem comum”. Giully acerta na mosca: “Como seus ancestrais gloriosos, os novos burgueses continuam a erguer os punhos e a querer conduzir o povo na direção da luz e do progresso, mas, hoje, esses revolucionários de salão pregam no deserto”.
Tomando emprestadas algumas ideias de Voegelin: que estamos testemunhando a constituição de uma nova estrutura imperial, me parece claro; e isso está aumentando ainda mais a sensação de desordem espiritual que já é uma característica da nossa era. A ordem forçada, de cima para baixo, que os impérios sempre impõem não deve nos enganar: é puramente exterior, e não produz harmonia verdadeira. Por certo o novo império da desordem pode vir a fracassar, naturalmente; mas, à parte disso, o que me deixa intrigado: será possível que desse estado caótico novas explosões espirituais criativas venham a acontecer?
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