“A civilização ocidental parece ter perdido a confiança em si mesma.” (Niall Ferguson)
O historiador britânico Niall Ferguson foi um dos pensadores de grande estatura a denunciar a união entre esquerda identitária e o radicalismo islâmico representado pelo Hamas. Como ele já havia escrito antes, “Jerusalém hoje às vezes parece o equivalente moderno de Viena em 1683 – uma cidade fortificada na fronteira da civilização ocidental”. A atual guerra na Faixa de Gaza confirma o gênio de sua percepção, e sinaliza algo ainda pior: o estranhamento generalizado entre a intelectualidade ocidental e a causa judaica. Parece que desta vez o Ocidente está disposto a entregar Viena. Mas por quê?
Para a felicidade geral, o historiador já se debruçou sobre o problema anos antes, publicando em 2011 a obra Civilização: Ocidente versus Oriente, que impõe atenta consideração. Segundo Ferguson, a ascensão da civilização ocidental seria “o fenômeno histórico mais importante da segunda metade do segundo milênio depois de Cristo”, e “a história no próprio cerne da história”. Essa civilização, com todos os seus problemas, teria subjugado todas as outras, como os impérios pré-colombianos, a China, o Japão, a Índia e o Islã, em razão de uma combinação muito específica de vantagens que ele descreve, criativamente, como os seis “aplicativos”: a livre competição econômica e política, a ciência moderna, o reconhecimento dos direitos de propriedade, a medicina moderna, a constituição de uma sociedade de consumo e a ética do trabalho.
As instituições do Ocidente
Essas vantagens não foram meras ideias; versões delas chegaram a brotar em outras civilizações, mas sem uma verdadeira institucionalização. No caso do Ocidente podemos falar em instituições poderosas e duráveis.
Segundo Niall Ferguson, a civilização ocidental teria subjugado todas as outras em razão de uma combinação muito específica de vantagens: livre competição, ciência moderna, direitos de propriedade, medicina moderna, sociedade de consumo e ética do trabalho
Assim a pluralidade política e o livre comércio europeu produziram inovação, trocas de conhecimento e tecnologia, fertilização mútua e riqueza. Na esteira da Reforma, a revolução científica varreu a Europa, enquanto os turcos e os chineses proibiam a tipografia e o comércio científico.
Os direitos de propriedade permitiram uma nova forma de governo no qual o poder permanece distribuído, não apenas no papel, mas efetivamente. O reconhecimento e a democratização da propriedade permitiram o Estado de Direito e o governo constitucional representativo, e a vitória do modelo colonial norte-americano sobre o modelo colonial hispânico.
A medicina ocidental também representa uma linha divisória clara em relação ao resto do mundo. Ao mesmo tempo em que se consolidaram os vários impérios coloniais ocidentais, como o britânico, o francês, o belga, o alemão, o espanhol e o norte-americano, cometendo desumanidades, exportando más ideias (como o ideal revolucionário francês) e uma terrível exploração de povos latinos, africanos e asiáticos, as numerosas “missões civilizatórias” ocidentais levaram a benefícios objetivos, incluindo o aumento da expectativa de vida e das populações em vários países, e especialmente no continente africano.
Um bom naco da obra de Ferguson trata da sociedade de consumo, e de sua universalização, começando com a indústria têxtil e as roupas – a produção de vestuário padronizado segundo o padrão ocidental desbancou as vestes tradicionais de vários povos criando uma linguagem estética comum, e um grande mercado globalizado, envolvendo todo tipo de produtos. O avanço nos transportes e na comunicação permitiu a aceleração e universalização da sociedade de consumo e, a despeito da vigorosa reação socialista, cujo clímax foi a União Soviética, o sistema finalmente se tornou hegemônico. No coração dessa vitória, argumenta Ferguson, estavam as roupas: “A disseminação do modo de vestir ocidental foi inseparável da disseminação do modo de vida ocidental, assim como a reação contra o modo de vestir ocidental no mundo islâmico é uma revivificação do islamismo no mundo”.
A grande obra dos missionários
O último e mais importante gadget dos ocidentais é, para Ferguson, a sua ética do trabalho, que nada mais é do que a mesma ética protestante estudada por Max Weber. Ferguson faz, no entanto, uma interessantíssima reformulação: não foi apenas uma ética de trabalho, mas de trabalho e educação. E aqui, diferentemente de muitos historiadores populares, ele reconhece o papel das missões evangélicas:
“Aonde quer que fossem os missionários protestantes, eles promoviam a alfabetização, com benefícios mensuráveis no longo prazo para as sociedades que procuraram educar; não se pode dizer a mesma coisa dos missionários católicos durante o período que vai da Contrarreforma às reformas do Concílio Vaticano II (1962-65). Foram os missionários protestantes os responsáveis pelo fato de as taxas de matriculados nas escolas das colônias britânicas serem, em média, quatro ou cinco vezes mais altas que as das colônias de outros países.”
Ferguson minimiza injustamente a importância do esforço educacional católico em diversas colônias; no Brasil os jesuítas constituíram o próprio fundamento do sistema escolar, e se dedicaram aos povos originários com um afinco que os protestantes só conheceriam posteriormente. Na América Latina, os católicos fundaram as primeiras universidades fora da Europa, bem antes dos protestantes. No entanto, a exigência da leitura bíblica individual, a nova concepção de educação pública que emergiu da Reforma, e o movimento missionário evangélico a partir do século 18 realmente aceleraram o impacto dos esforços educacionais protestantes, com resultados superiores nas colônias britânicas.
E essa é apenas uma das razões por que, na opinião de Ferguson, não é possível equiparar todos os impérios coloniais. Alguns, por exemplo, realizaram atos genocidas; outros não; de modo que “alguns impérios são piores que outros. É um aspecto simples que os críticos absolutos do imperialismo sempre ignoram”. Mas o elemento benigno, nesse caso, não era meramente do “império”, mas do elemento cristão e protestante dentro da civilização ocidental. Assim, o ateu Niall Ferguson admitirá abertamente:
“Talvez a maior contribuição da religião à história da civilização ocidental tenha sido esta. O protestantismo fez o Ocidente não só trabalhar, como também ler e economizar... Pensando melhor, mais do que uma ética do trabalho, seria mais adequado falar de uma ética da educação protestante.”
Na medida em que outros povos se apropriam dos valores e instituições ocidentais, o Ocidente se despede deles, e os entrega como povos originários entregaram terras por espelhos e bugigangas
Reconfortante, para um protestante como eu. Mas preocupante para o Ocidente, segundo a evidência amealhada por Ferguson. Ele mostra que o número de horas de trabalho dos ocidentais vem caindo drasticamente, acompanhando a secularização desses países, ao mesmo tempo em que as horas de trabalho aumentam em diversos países não ocidentais nos quais a fé protestante está crescendo. As comunidades religiosas funcionam, aparentemente, como “redes creditícias e, ao mesmo tempo, como cadeias de fornecimento”.
O resultado é que o Oriente poupa muito e o Ocidente gasta muito. O sistema de consumo parece se degradar em consumismo muito mais rapidamente no Ocidente do que no Oriente, porque a ética protestante está em dissolução do lado de cá: “o Ocidente hoje está de fato inundado de cultos pós-modernos, nenhum dos quais contribui de maneira tão efetiva para o vigor econômico ou a coesão social quanto a velha ética protestante”. E isso tornou a Europa vulnerável à ambiciosa colonização islâmica.
Há esperança para o Ocidente?
À pergunta sobre o futuro da civilização ocidental, Niall Ferguson evita vaticínios. Que ele se pergunta sobre a sua durabilidade e sobre a alta probabilidade de colapso, é muito claro ao longo de todo o argumento. O historiador nota diversos sinais de enfraquecimento do Ocidente, como a mudança nos padrões de trabalho, a superioridade oriental no campo educacional e a piora na situação econômica dos países ocidentais, com grande aumento da dívida pública. Ao mesmo tempo, os seis “aplicativos” que permitiram a superioridade ocidental estão sendo incorporados por vários países não ocidentais. Para ele não há dúvidas: “o que estamos vivendo agora é o fim de 500 anos de supremacia ocidental”.
Mas o crescimento do Oriente não é, para Ferguson, o maior risco. Na sua visão a doença é de outra natureza:
“Talvez a verdadeira ameaça seja imposta não pela ascensão da China, do Islã ou das emissões de carbono, e sim por nossa própria perda de fé na civilização que herdamos de nossos ancestrais... Hoje, como na época, a maior ameaça à civilização ocidental vem não de outras civilizações, e sim de nossa própria pusilanimidade.”
Faz todo o sentido; na medida em que outros povos se apropriam dos valores e instituições ocidentais, o Ocidente se despede deles, e os entrega como povos originários entregaram terras por espelhos e bugigangas. Uma civilização com tal disposição de espírito estaria, realmente, na estrada da decadência.
O coração do problema seria, então, de natureza espiritual; e por espiritual me refiro aqui às convicções, ou à “fé” do Ocidente. Ferguson fala sobre uma “fé na civilização que herdamos”, denotando a nossa capacidade de valorizar nossas instituições e, para além disso, de levar a sério nossos ancestrais. Mas crer nos ancestrais é, no fundo, crer no que eles criam. Não há como preservar e aperfeiçoar o que recebemos se consideramos essa herança um erro ou um mal-entendido. Ademais, não existe “fé em si mesmo”, pois a fé sempre tem uma direção transcendente. O Ocidente prevaleceu enquanto acreditava em algo maior do que “si mesmo”.
Nesse ponto, não consigo realmente entender como Ferguson pode equacionar seu ateísmo com a admissão de que a ética protestante do trabalho e da educação foi necessária para a criação do Ocidente, e que o Oriente ou “o resto” está crescendo, em parte, porque se abriu para o cristianismo.
Talvez a esperança do Ocidente esteja em pessoas não ocidentais que adotem, transmitam e revivam, no futuro, a sua herança
O fato é que, por importantes que sejam a pluralidade e a concorrência livre, a ciência moderna, a propriedade e o Estado de Direito, a medicina e a sociedade de consumo, e até mesmo a ética de trabalho, é a educação o que ensina a cultivar e transmitir o conhecimento e o amor por essas instituições e pelos bens que elas comerciam. É a educação o que faz acreditar ou desacreditar da herança dos ancestrais. E quem ensinou o Ocidente a fazer isso foi, como Ferguson admite, a religião cristã e, especialmente, protestante.
Mas sob esse ponto de vista, a questão sobre o Ocidente também perde uma parte da sua urgência. Se a contribuição ética da religião não puder ser totalmente separada da própria religião (como sugere a dissolução da ética do trabalho nos países ocidentais), o destino do Ocidente histórico está selado. A entrega de Jerusalém pela Ivy League seria uma parábola: “Viena” está condenada há muito tempo, desde que o cristianismo foi abandonado.
Mas o que fez o Ocidente grande talvez permaneça, absorvido por povos não ocidentais, e especialmente por aqueles que adotarem a fé cristã. Não seria nenhuma surpresa. Foi a Igreja quem preservou e transmitiu a herança clássica no fim da antiguidade e durante o medievo, como Thomas Cahill mostrou em Como os irlandeses salvaram a civilização. Talvez a esperança do Ocidente esteja em pessoas não ocidentais que adotem, transmitam e revivam, no futuro, a sua herança. Pessoas que confiem, e que saibam honrar seus pais.
Colunista em férias
A coluna terá uma pausa em janeiro; voltamos em 2 de fevereiro. A todos os leitores, os desejos de um ótimo ano novo!
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