Conheci a St Helen’s Bishopsgate por puro acaso, em minha última visita a Londres. Marcamos um papo com um amigo cientista que frequentara a nossa igreja em Belo Horizonte, e que trabalhava nos arredores da City. Depois do pub, ele insistiu para que o acompanhássemos até sua paróquia londrina, onde ele participaria de um estudo bíblico semanal.
A velha igreja, cujas origens remontam ao século 12, é a paróquia mais antiga na City of London, destruída no grande incêndio de 1666, e atualmente um moderno centro financeiro da capital. Engastada no meio dos ousados e modernos arranha-céus da City, compõe uma visão realmente pitoresca: a bela e pequena anciã de pedras claras contrastando com o famoso “pepino” (the Gherkin).
Mas não foi só esse contraste o que me chamou a atenção. A veneranda capela anglicana tem peso histórico – Shakespeare, por exemplo, a frequentava quando morou na região; e, para a minha surpresa, o não muito pio Richard Hooker, descobridor dos microorganismos e companheiro de Newton na Royal Society, fora enterrado lá. Ao mesmo tempo, reúne-se nela uma igreja multigeracional, multiétnica e tipicamente evangélica, com suas ênfases na autoridade teológica e moral das Escrituras, na conversão pessoal e na evangelização – no anglicanismo temos correntes liberais, high church, mais próximas do romanismo, low church, reformadas, carismáticas e evangelicais.
A decisão da Igreja Anglicana de rejeitar o casamento gay, mas conceder bênçãos a casais gays legalmente unidos, deixou progressistas e conservadores igualmente insatisfeitos
St Helen’s era uma minúscula congregação anglicana tradicional até 1961, quando o reverendo Dick Lucas assumiu sua liderança e a transformou em um exemplo de igreja anglicana evangelicista. A congregação cresceu em tamanho e influência – sob o atual reitor, William Taylor, a paróquia tem mais de 1,2 mil membros, muitos deles jovens, e já ajudou a fundar mais de uma dúzia de novas igrejas.
Manter uma congregação de pé e ainda florescendo num lugar como a City of London não é qualquer coisa; os sinais de descristianização e os índices de abandono eclesiástico são altíssimos no país. St Helen’s e outras como Holy Trinity Brompton são, em Londres, o que a Redeemer Presbyterian Church de Tim Keller é em Manhattan. Isso eleva o peso da paróquia entre seus pares na igreja do rei Charles III, bem como o contraste com seu entorno secularizado.
E, ao que tudo indica, esse contraste deve subir tanto quanto as torres da City.
A “solução” impossível
Uma decisão recente da House of Bishops (a “Casa dos Bispos”) e do Colégio dos Bispos da Igreja Anglicana sobre comportamento sexual fez St Helen’s tomar a decisão radical de romper a comunhão com o bispo de Londres e com a Igreja da Inglaterra.
Depois de seis anos de debates, o Colégio apresentou uma decisão sobre os temas de identidade, sexualidade e casamento no dia 17 de janeiro de 2023. Concluindo uma longa discussão conduzida sob o lema “Vivendo em Amor e Fé” (LLF), os bispos rejeitaram o casamento de pessoas do mesmo sexo (legal no Reino Unido desde 2013), mas aprovaram uma novidade: a possibilidade de ministrar uma bênção especial a casais legalmente unidos.
A decisão, anunciada na quarta-feira, 18 de janeiro, deixou progressistas e conservadores igualmente insatisfeitos. Em vez de solucionar a disputa, agravou-a.
A recomendação do Colégio dos Bispos foi encaminhada para discussão no Sínodo Geral da Igreja, de 6 a 9 de fevereiro. Na quinta-feira, dia 9, depois de oito horas de debate, o Sínodo tomou sua decisão, adotando as recomendações mediatórias do Colégio, confirmando a rejeição do casamento gay, mas admitindo uma bênção a casais do mesmo sexo.
O anglicanismo atravessa há anos uma crise ao redor do tema. No Brasil, o falecido bispo Robinson Cavalcanti, antigo líder entre evangélicos progressistas, chegou a ser expulso da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil em junho de 2005 por rejeitar a agenda gay. Ele se manteve como bispo em Recife com a ajuda do Gafcon, um movimento conservador global dentro da denominação, mas a igreja de Recife ficou fora da comunhão anglicana. Livre do peso do progressismo da IEAB, no entanto, o anglicanismo evangélico vem florescendo no país.
Segundo o arcebispo Justin Welby, emergiu uma “nova moralidade” que não acredita em pecado humano, nem em perdão, nem em esperança, e que foi desenhada para “os ricos, os poderosos e os bem-educados”
Já se vão mais de 20 anos de profunda tensão na comunhão anglicana global, desde que os anglicanos canadenses permitiram a bênção de uniões gays e abriram a controvérsia. O impasse nunca se desfez, com os defensores da união gay pressionando cada vez mais os bispos, e a maioria dos anglicanos resistindo à ideia. Mas agora, as decisões do Colégio e do Sínodo abriram outra ferida dentro da ferida.
Igrejas sob pressão política
Poucos dias depois do Sínodo de fevereiro, Justin Welby, o arcebispo de Cantuária (a maior autoridade da Igreja Anglicana) estava em uma Consulta Global da Igreja Anglicana em Gana, e de algum modo teve de se explicar sobre o que os anglicanos conservadores viram como uma inaceitável concessão. Welby admitiu que o crescimento do ateísmo e do individualismo no ocidente gerou várias tensões com a ética da igreja, enfraquecendo a dimensão comunitária, a ética do corpo e da vida. Emergiu uma “nova moralidade” que não acredita em pecado humano, nem em perdão, nem em esperança, e que foi desenhada para “os ricos, os poderosos e os bem-educados”. E, no tocante ao casamento gay, ele entregou uma informação surpreendente:
“O resultado é claro. Nas últimas semanas, como parte das nossas discussões sobre sexualidade e as regras sobre sexualidade na Igreja da Inglaterra, eu falei sobre a nossa interdependência com todos os cristãos, não apenas anglicanos, e particularmente aqueles no sul global com outras maiorias de fé... como resultado, eu fui convocado duas vezes ao Parlamento, e ameaçado com ação parlamentar para forçar o casamento do mesmo sexo sobre nós, chamado na Inglaterra de ‘casamento igualitário’.”
Welby disse ao The Telegraph que não seriam os parlamentares que lhe diriam o que fazer sobre o casamento gay – o que foi uma posição corajosa e apropriada. Mas, a despeito de suas apologias, o “Sul Global” e os evangélicos anglicanos reagiram fortemente, questionando a consistência da decisão.
Ruptura
O Gafcon, que reúne anglicanos conservadores em todo o mundo, respondeu a Justin Welby com uma crítica dura no dia 17 de fevereiro: “Nenhuma unidade às expensas da verdade”. A Global South Fellowship of Anglican Churches (GSFA), uma reunião de dez primados que representaria 75% da membresia global da comunhão anglicana, publicou no dia 20 de fevereiro uma Declaração na qual anuncia não mais reconhecer Justin Welby como líder do anglicanismo, romper a comunhão com a Igreja da Inglaterra, e buscar uma alternativa organizacional com o Gafcon. O bispo Miguel Uchoa Cavalcanti, primaz da Igreja Anglicana em Recife, subscreveu o documento.
Mas não foi somente o Sul Global que reagiu a Welby. Algumas igrejas anglicanas vibrantes e influentes em território inglês estão se alinhando com a GSFA. Dois dias depois da Declaração, em 22 de fevereiro, a St Helen’s Bishopsgate se pronunciou rompendo com a House of Bishops, com a bispa de Londres e com Cantuária. Não é a primeira vez que a igreja usa seu peso para pressionar a comunhão anglicana, mas o posicionamento assumiu tons mais drásticos.
O futuro das igrejas em jogo
Em um vídeo postado no YouTube, nessa semana, o reverendo William Taylor acusou a House of Bishops de ser diretamente responsável por quebrar a comunhão anglicana ao admitir um ensinamento frontalmente contrário ao ensino bíblico sobre sexo e casamento, e ao priorizar a acomodação política e o consenso humano sobre a autoridade de Jesus Cristo – algo que, de fato, parece transparecer das justificativas de Welby em Gana. Destacou os contornos imperialistas da decisão: uma minoria de brancos ricos e ocidentais se impondo sobre uma maioria global conservadora. Lembrou que a hesitação da igreja deixaria os muitos membros da igreja sem assistência espiritual. Avisou que não iria mais contribuir financeiramente com a diocese de Londres. E anunciou sua prioridade: assegurar o futuro do anglicanismo evangélico em Londres.
Há todo um movimento político e uma militância de “direitos humanos” sedenta por criminalizar a evangelização e a ética sexual cristã no Brasil
Os vídeos da igreja costumam ter poucas dezenas ou centenas de visualizações, mas esse vídeo alcançou 17 mil visualizações em apenas dois dias. A reverberação interna do posicionamento foi significativa.
Reconheço a minha simpatia por Justin Welby, por seus esforços dialógicos e por sua coragem diante das ameaças do Estado inglês. Mas a declaração de prioridades anunciada pelo reitor William Taylor toca cordas profundas no coração de qualquer ministro evangélico. Welby está certo na sua visão dos problemas: é preciso reconhecer as responsabilidades nos maus-tratos a pessoas LGBTQIA+, e também é preciso resistir à “nova moralidade”, que apenas usa pessoas LGBTQIA+ como arma expansionista. Mas Taylor está ainda mais certo, sobre a única solução possível: a autoridade do evangelho está acima da autoridade política, e o futuro do testemunho evangélico está em jogo.
Esse mesmo dilema nos alcança simultaneamente no Brasil. Há todo um movimento político e uma militância de “direitos humanos” sedenta por criminalizar a evangelização e a ética sexual cristã. Eles pensam servir aos vulneráveis, mas na verdade os transformam em armas e ferramentas de uma elite cultural laicista. Uns precisam ser protegidos; outros, resistidos. Mas, acima de tudo, a ética do Evangelho precisa reinar nas igrejas.
Aqueles que se importam com o futuro do cristianismo brasileiro devem reconhecer os esforços de Cantuária, mas têm em St Helen’s Bishopsgate um exemplo encorajador.
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