Foi notícia durante a semana o vazamento de um relatório encaminhado para o Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana do Brasil, recomendando que pastores afastem os crentes da “nefasta influência do pensamento de esquerda”, e que as estruturas de comunicação e educação da denominação sejam mobilizadas para combater o progressismo e defender a cultura bíblica.
A mentira e a verdade
A turma da esquerda ficou tristíssima, horrorizada e, como sempre nesses casos, felizérrima com a chance de desautorizar uma instituição evangélica tão icônica. O Estadão acusou a Igreja Presbiteriana de “tentar barrar alinhados à esquerda” e de “abrir púlpitos para Bolsonaro”, e associou à acusação um vídeo no qual o pastor Osni Ferreira, relator da proposta, defende de púlpito a reeleição de Bolsonaro. De imediato formou-se ao redor da reportagem aquela conhecida nuvem de moscas, explorando ao máximo o “material” – vários lembraram o apoio da igreja à ditadura militar, outros o caso Milton Ribeiro, o Estado laico, o dízimo, “o dia em que saí do armário e larguei a igreja”, e etecetera.
Um resto de sanidade ainda levou alguém a consultar o reverendo Roberto Brasileiro, presidente do Supremo Concílio da IPB, a respeito do imbróglio. Suas respostas não deixam dúvidas: a denominação não tomou nenhuma decisão a esse respeito, trata-se de uma pauta para discussão na próxima reunião do Supremo Concílio, na semana que vem, e posições oficiais da IPB passam exclusivamente por sua pessoa.
A acusação disseminada nas mídias sociais e na imprensa é falsa, desconhece a estrutura da Igreja Presbiteriana e seus processos decisórios, e deliberadamente transforma medos e suspeitas de críticos da igreja em um fato consumado, alimentando o sensacionalismo
Ademais, como outros observaram, a discussão de quaisquer propostas é legítima no processo democrático e representativo de governança da IPB. É algo muito similar ao que ocorre em nosso Congresso Nacional – o fato de um movimento apresentar um projeto de lei, por exemplo, não prova que o país fez uma escolha. E, mesmo que a igreja seja dominada por uma ou outra inclinação ideológica, um posicionamento político-partidário oficial é proibido pela Confissão de Fé de Westminster, o documento de autoridade máxima para a IPB. A probabilidade de termos a IPB reproduzindo a postura do reverendo Osni em sua igreja é próxima de zero.
Em suma, a acusação disseminada em diversas mídias sociais e na teimosa chamada do Estadão é pura e simplesmente falsa. O Estadão não apenas laborou em erro, desconhecendo a estrutura da Igreja Presbiteriana e seus processos decisórios, mas deliberadamente transformou medos e suspeitas de críticos da igreja em um fato consumado, alimentando boatarias sensacionalistas. O propósito disso é evidente: interferir politicamente na discussão interna da igreja.
A verdade e o direito
Em resposta à campanha de difamação, a Anajure publicou ontem, dia 21, uma “Nota pública sobre notícias recentes quanto à posição da Igreja Presbiteriana do Brasil acerca de ideologias políticas” que, além de destacar a liberdade de consciência e de crença, e a independência interna da instituição, clareou a questão de mérito:
“Dessa forma, se, por um lado, é possível tecer críticas à posição da IPB quanto ao comunismo e ao pensamento de esquerda em geral, não é possível, por outro, rechaçar a visão doutrinária da instituição, uma vez que todas organizações e indivíduos religiosos possuem a liberdade de professar suas crenças por meio do ensino. Isso envolve a concepção da IPB de que o comunismo e o pensamento de esquerda são incompatíveis com sua própria cosmovisão, e lhes permite, como consequência, buscar orientar seus líderes e membros sobre a incongruência entre o respectivo pensamento político e a doutrina da instituição.”
Essa é uma questão crucial: ainda que a igreja não assuma uma posição político-partidária ou ideológica específica, nem pratique o “voto de cajado”, nem recomende a seus pastores promover uma candidatura política, nem se intrometa em assuntos do Estado, ela tem todo o direito de condenar ideologias políticas contrárias às suas doutrinas. Entre os católicos romanos, por exemplo, o papa Bento XVI deixou claro em um discurso de 2010 que os bispos têm, às vezes, a obrigação de denunciar certas plataformas políticas:
“Quando, porém, os direitos fundamentais da pessoa ou a salvação das almas o exigirem, os pastores têm o grave dever de emitir um juízo moral, mesmo em matérias políticas (…) seria totalmente falsa e ilusória qualquer defesa dos direitos humanos políticos, econômicos e sociais que não compreendesse a enérgica defesa do direito à vida desde a concepção até à morte natural (…) Quando os projetos políticos contemplam, aberta ou veladamente, a descriminalização do aborto ou da eutanásia, o ideal democrático – que só é verdadeiramente tal quando reconhece e tutela a dignidade de toda a pessoa humana – é atraiçoado nas suas bases. Portanto, caros irmãos no episcopado, ao defender a vida ‘não devemos temer a oposição e a impopularidade, recusando qualquer compromisso e ambiguidade que nos conformem com a mentalidade deste mundo’.”
O problema, aqui, não é da igreja; é do ideário político que deseja legislar sobre a fé e a moral das pessoas, dizendo-lhes o que é a felicidade, o que é ou não “pecado”, como suas prioridades morais devem ser organizadas, o que elas devem pensar de outras religiões, como elas devem viver sua sexualidade, suas ideias sobre justiça e sobre a relação entre igreja e Estado. Variando entre a ingenuidade e a hipocrisia, os críticos da igreja esperam que ela silencie sobre tudo o que importa para a existência humana. Francamente, é um disparate.
O caso é que não são poucos os discursos da esquerda brasileira abertamente contrários ao cristianismo e, especificamente, à teologia reformada confessada pela IPB. O que querem esses desprezadores cultos do conservadorismo religioso? Igrejas com sangue de barata? Ou perderam eles o juízo, ou tudo isso é calculado.
O problema não é da igreja; é do ideário político que deseja legislar sobre a fé e a moral das pessoas
O direito e os deveres... da igreja
Entretanto, se a igreja tem o direito e o dever de zelar por seus documentos de fé, sua teologia e sua proposta de formação humana, e o direito de dar uma banana para os heréticos e para seus desafetos laicistas, também tem, por outro lado, deveres religiosos e éticos para com a verdade.
E aqui, mesmo defendendo os direitos dessa importante comunidade evangélica, devo admitir que os termos do relatório enviado para apreciação do Supremo Concílio soam dolorosamente anacrônicos e até ignorantes. O texto fala em “incompatibilidade da Fé Cristã com o marxismo e derivados (ideologia de gênero, transexualidade, feminismo, agenda abortista)”, sintetiza tudo como “pós-modernidade” e, em seguida, resume novamente como “comunismo ateu”. Uma desordem conceitual horrorosa. Fere os ouvidos de quem tem um pingo de conhecimento do assunto.
Apenas para começar, o discurso de gênero, a transexualidade, o feminismo e a agenda abortista não são invenções marxistas, e são defendidos por muita gente cujo ideário é consistentemente liberal. Há tempos temos traçado nessa coluna as conexões desses discursos anticristãos com o capitalismo de hiperconsumo e com o que Robert George chama de “liberalismo expressivo”. E fontes não faltam, em português, para quem quiser se informar; a leitura de Por que o liberalismo fracassou, de Patrick Deneen, é o mínimo que o cristão conservador deveria ler para não ser um idiota nesses assuntos.
Mas, mesmo confundindo tudo, as igrejas cristãs têm, sim, o dever de condenar o marxismo, aquelas agendas morais supracitadas, alguns aspectos da pós-modernidade, modernidade tardia ou hipermodernidade – como queiram – e muitas coisas mais, de acordo com os princípios do cristianismo. E devem, sim, instruir seus membros, com toda a clareza e persuasão, contra essas ideias. Pois o fato é que a evidência de que boa parte da agenda progressista brasileira é incompatível com a fé cristã é abundante, robusta e pública.
E repito: os influenciadores, políticos e jornalistas que atacam a IPB não têm, nessa seara, nem um pingo de razão. A igreja tem de cumprir o seu papel. Se seus fiéis não forem persuadidos, é um problema da igreja: que encontre melhores argumentos. E, se eles forem persuadidos, é um problema do laicismo militante: ele que se vire. Vivemos em uma sociedade livre, democrática e plural.
O que a igreja deve fazer com seus membros progressistas? Ora, é evidente. Ela deve fazer com eles o mesmo que deve fazer com todos os outros: ajudá-los a serem verdadeiramente cristãos
Mas, dando a mão à palmatória, uma pergunta precisa ser feita – essa, sim, uma pergunta interna, de cristãos para cristãos: porque a obsessão bolsonarista de alguns evangélicos presbiterianos e até pastores, inclusive, não é problematizada como uma questão pastoral? E o que dizer do descuido com a infodemia e teorias conspiratórias, o desprezo pela ciência, a tolerância com o autoritarismo e o machismo entre homens evangélicos e até pastores (problema notado por presbiterianos importantes como a escritora Norma Braga), a difamação virulenta de políticos de esquerda, a violação de todas as regras de caridade nas mídias sociais, o negacionismo ambiental e climático, e a promoção de discursos políticos golpistas? E quanto ao liberalismo? Não vamos discutir os males que ele produziu e produz ainda hoje?
Essa pergunta nos leva à questão principal do artigo: o que a igreja deve fazer com seus membros progressistas? Ora, é evidente. Ela deve fazer com eles o mesmo que deve fazer com seus membros conservadores, liberais, nacionalistas, anarquistas, libertários, quadrados, redondos, verdes, minerais, vegetais, ou seja o que for: ajudá-los a serem verdadeiramente cristãos, no coração, no gesto, e também na mente, e persuadi-los a abandonar qualquer ideia incompatível com o cristianismo bíblico.
E, se isso os tornar infiéis às ideologias hegemônicas na política nacional, “barrando” seus planos maravilhosos, a igreja terá feito um excelente trabalho.
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