Eu sempre gostei de acompanhar canais de notícias, como Globo News e CBN, mas nos últimos anos quase abandonei essas mídias, em parte por falta de tempo, em parte como método – a internet nos permite obter mais em menos tempo. Claro, o mérito de um grande jornal é a curadoria da informação e a qualidade da opinião, mas no segundo quesito a coisa anda triste.
Foi um amigo próximo, o escritor Rodolfo Amorim, quem me alertou sobre o comentário de Octávio Guedes – e eu gosto do sujeito – sobre os primeiros resultados da eleição de domingo passado na Central das Eleições. Pouco depois das 21h52, o jornalista lamentou “o derretimento do mundo político”. A análise é muito boa, e o trecho merece ser lido na íntegra:
“O que a gente viu agora, neste primeiro turno de 2022, é um derretimento total do mundo político. O Lula (PT), com 76 anos, é uma ilha cercada num oceano de extrema-direita e do conservadorismo. Tira o Lula da cena para combater Jair Bolsonaro (PL), a extrema-direita do bolsonarismo, o que sobra?”
Afirma-se o tempo todo a defesa da democracia, e o fato é que a democracia entrega na porta do jornalismo brasileiro um mundo que ele não quer aceitar
Perfeito; é exatamente isso. O progressismo, incluindo a extrema-esquerda, o lulopetismo e a social-democracia, se tornou uma ilha. Há algo de escatológico nisso, um sentimento de fim-do-mundo ou, ao menos, de um mundo. É o “derretimento total do mundo político”. E o jornalista observa que há um oceano à direita, no qual ele mistura sem qualificações a “extrema-direita” e o “conservadorismo”, quase como se fossem dois lados da mesma moeda.
Eu me sinto chocado, mas não com o resultado das eleições, e sim com o choque – chocado com o choque – do jornalista. Eu tentei, meus amigos, assistir com meus próprios olhos aos comentários globais sobre as eleições no dia seguinte, até que veio a gota d’água, no Em Pauta, da Globo News: dessa vez, da boca de Eliane Cantanhêde, que já havia falado em 2018 dos “ventos conservadores que assolam o Brasil”:
“O Brasil é maior do que essas ondas conservadoras. Elas vêm, elas vão, e o Brasil fica.”
De certo modo eu concordo; o Brasil é maior mesmo. Mas o problema dessa declaração também é maior; trata-se de um modo de imaginar o Brasil que vem sendo repetidamente falsificado nesse grande altar de validação dos sonhos políticos, que é a urna. Afirma-se o tempo todo a defesa da democracia, e o fato é que a democracia entrega na porta do jornalismo brasileiro um mundo que ele não quer aceitar. Esse mundo é um “oceano”, uma “tempestade”, uma “ventania” uma “onda”, mas nunca é admitido como o que é: uma estrutura constitutiva da nação.
O que é “o Brasil”? Penso ser essa uma das maiores interrogações implícitas na discussão contemporânea. Penso no importante trabalho publicado por Antônio Risério, Em Busca da Nação, que denuncia com erudição o domínio hegemônico de uma construção distorcida da história nacional, obra de uma esquerda programática, incapaz de pensar de modo genuninamente pluralista. Os ressentimentos cultivados pelo espírito do lulopetismo e, agora, pelo identitarismo abortam os processos de acomodação e fusão das diferenças nacionais, e corrompem a própria imaginação nacional. A prova está aí: o jornalismo brasileiro, dominado pela mentalidade de esquerda, não consegue imaginar um Brasil conservador.
Mas o problema vai ainda mais fundo: a ascensão de Bolsonaro dependeu, inegavelmente, do movimento evangélico brasileiro, em si mesmo extremamente diverso, mas majoritariamente conservador na compreensão da identidade, do sexo, do corpo e da família. Em termos de psicologia moral, esse grupo é vetor de uma mentalidade conservadora-moderada, diferente dos valores W.E.I.R.D., do progressismo liberal urbano, criativo, individualista e hedonista. Seu crescimento vinha sendo observado e tutelado havia décadas pela inteligência sociológica e política nacional, quase como um corpo estranho na formação nacional.
Pois o fato, óbvio ao olho atento, é que as grandes teorias de interpretação nacional nunca consideraram a possibilidade de um fenômeno como o evangelismo moderno. O mundo de Gilberto Freyre, de Sérgio Buarque de Holanda e de Caio Prado Jr. era aquela versão antiga do problema brasileiro, da dialética entre uma mente conservadora, católica, antimoderna, retrógrada, detentora da simbologia nacional, e o progressismo social, cultural e político que floresce na onda da urbanização e da industrialização. Depois disso o país viu se desenvolver, entre a ditadura e a redemocratização, uma segunda versão dessa dialética, de um conservadorismo neoliberal autoritário e uma esquerda renovada, democrática, jovem e mais defensora dos direitos humanos do que das “massas operárias”. Mas essas eram as cartas no jogo até poucos anos atrás. Quando Darcy Ribeiro lançou O Povo Brasileiro, em 1995, o jogo ainda era esse.
Se agora a universidade, o jornalismo, a produção cultural nacional e a política progressista se veem ilhados, é em parte por sua própria arrogância
E então chegaram os evangélicos. É verdade que o début evangélico como protagonista nacional foi profundamente desajeitado; deixou a ala progressista de cabelo em pé, e os católicos conservadores se mantêm em uma compreensível celebração desconfiada. Afinal, o espírito do evangelismo nacional é muito moderno, e não corresponde bem ao velho modelo “TFP”. Trata-se de um elemento estranho, por vezes conservador – diante dos identitarismos da esquerda – e por vezes progressista, como no lugar de importância dado à mulher e em seu poderoso impulso à liberdade individual e ao empreendedorismo. Pessoalmente, acho seu alinhamento quase incondicional com o bolsonarismo algo desastroso, mas não penso que o movimento inteiro possa ser julgado apenas por isso.
Mas vamos ao meu ponto principal: a ascensão dos evangélicos conservadores não é uma “onda”, ou uma “ventania”. Não se trata apenas de um “conservadorismo” – um recorte político-ideológico verossímil, mas insuficiente de um fenômeno muito mais espesso. Trata-se de um outro modo de imaginar a vida, a partir da fé, que reconfigura o que significa ser brasileiro. É outro Brasil, que nunca esteve nos livros, e acabou de chegar. Um Brasil cheio de pecados, assim como o Brasil freyereano e o Brasil de Florestan Fernandes; só que diferente.
A recusa teimosa de aceitar a existência desse Brasil está por trás da perda da comunicação política. A ilha liberal-progressista fingiu, para si mesma, que esse Brasil não existia, e o ignorou. E acabou acontecendo aqui o mesmo que se deu em outros países ocidentais: uma nova “luta de classes” que, por aqui, ainda não foi adequadamente analisada, com a ascensão de um novo proletariado cultural, aliado (ocasionalmente ou permanentemente? Não sei dizer) do antigo conservadorismo católico. Os grandes grupos jornalísticos nacionais não conseguem se comunicar com esse grupo; nem a antiga classe política. Por isso ela “derreteu”; ela vinha derretendo desde 2013. Se agora a universidade, o jornalismo, a produção cultural nacional e a política progressista se veem ilhados, é em parte por sua própria arrogância.
Mas há uma interrogação muito pertinente, que poderia ser levantada nesse momento: o quanto o espírito evangélico processa e adapta o antigo conservadorismo nacional? Será ele simplesmente isso, uma versão do conservadorismo católico, ou está em curso uma transformação dele? Será o evangelicismo brasileiro capaz, em algum momento, de amadurecer e contribuir substancialmente para a nação? Saberemos nos próximos anos se tudo foi mesmo apenas uma “onda”, uma “ventania” ou, para o bem ou para o mal, o nascimento de uma coisa nova.
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