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Guilherme de Carvalho

Guilherme de Carvalho

Guilherme de Carvalho é teólogo público e cientista da religião, com foco na articulação entre cristianismo e cultura contemporânea. É Pastor da Igreja Esperança em Belo Horizonte e diretor de L’Abri Fellowship Brasil. Foi diretor de Promoção e Educação em Direitos Humanos no Governo Federal.

Relações descartáveis

A indústria da felicidade e seu lixo afetivo

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Pouca gente se interessa por copos de plástico, à exceção da indústria que lucra com eles e dos ambientalistas que os combatem. São coisas muito úteis e tremendamente insignificantes. Mas, consultando a memória, quase todo mundo se lembrará da sensação de incômodo com essa pobre existência, o copo descartável. Esse ente comunica a impressão de algo que não deveria existir, diferentemente de outros seres inanimados como a pedra ou a folha seca. No fundo da consciência, algo se revolta contra esse frágil insulto contra a ordem natural.

O copo descartável nos lembra, é claro, da enorme capacidade humana de emporcalhar o mundo, mas tentação é grande demais – ontem mesmo tive a minha hipocrisia exposta na hora do cafezinho. Eu gostaria de ser um conservacionista consistente, mas as facilidades modernas são encantadoras demais. Nesses momentos preciso dar o braço a torcer: certas tomadas de posição têm de ser feitas coletivamente, como o combate ao cigarro. Nossas vontadezinhas individuais não dão conta do recado.

Não foram preocupações ambientalistas, no entanto, que me levaram a filosofar sobre o copo descartável; foram antes considerações sobre a moderna revolução afetiva, assunto recorrente nessa coluna. O argumento básico é que na primeira metade do século 20 uma aliança profana foi estabelecida entre a psicologia e o grande capitalismo nos EUA. O discurso psicológico, profundamente condicionado pelo epicurismo moral freudiano, popularizou a busca por autoentendimento emocional, e também levou a importantes avanços na compreensão do comportamento humano. A certa altura, grandes corporações começaram a usar a ciência psicológica na administração, e a financiar a pesquisa psicológica.

Consumir coisas e descartar seu resto é natural. A questão é a produção sistemática do descartável, calculado e planejado para ser descartado

Simultaneamente, a ascensão do capitalismo de consumo engendrou um ethos consumista que foi absorvido pelas relações afetivas em geral. Hollywood universalizou uma utopia romântica sentimentalista e a transformou em um objeto de consumo que invadiu a publicidade e o imaginário afetivo. Esse novo imaginário foi exportado para o mundo todo com a expansão da hegemonia cultural dos EUA. Numa citação livre de Eva Illouz, “o capitalismo se tornou afetivo, e a afetividade se tornou capitalista”.

Essa leitura me parece muito consistente: o liberalismo econômico e político alimenta o capitalismo emocional (ao menos foi assim, historicamente) e, ainda que de modo indireto, acaba alimentando a expansão do ethos terapêutico para a indústria cultural, a moralidade social e para o Judiciário. E foi assim que, com o passar dos anos, o individualismo expressivo se tornou a moralidade oficial das democracias liberais, e as antigas regras sobre sexualidade, casamento e família foram subvertidas para dar lugar a relações emocionais consumistas.

E isso nos leva de volta à questão do copo descartável. A leitura de An Ontology of Trash: the disposable and its problematic nature, pelo filósofo Greg Kennedy, abriu meus olhos para outra faceta da revolução afetiva: a criação do descartável como método produtivo. Consumir coisas e descartar seu resto é natural; nosso corpo faz isso com os alimentos, por exemplo. E aquilo que foi consumido e descartado sofre, é claro, um tipo de “violência”, que é, no entanto, moralmente neutra. Poderíamos falar de um “mal natural” aí, e não seria o caso de criminalizarmos burramente o consumo e o descarte. A questão é a produção sistemática do descartável, calculado e planejado para ser descartado:

“o ser de bens tecnológicos inclui, a priori, o seu descarte. Isso significa que o ser desses bens é, desde sempre, refugado (trashed)... Porque, em outras palavras, nós nos colocamos negativamente e destrutivamente em relação a essas coisas, necessariamente as manifestamos como deficientes no ser, como descartáveis. O lixo é, no mesmíssimo momento, o ser de entes descartáveis e o ser de bens ‘predispostos’, porque no fundo nosso próprio modo de ser como consumidores de tecnologia.”

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Apesar da linguagem filosófica um pouco oblíqua, Kennedy consegue comunicar que há algo problemático em nossa forma de produzir e usar coisas. Nós criamos alguns bens cuja engenharia inclui a descartabilidade; esses bens são refugados desde a sua gênese, no projeto e nos fins, e não apenas a posteriori; e nós mesmos precisamos nos tornar um tipo de pessoa que se expressa refugando a existência. É por isso que o copo de plástico incomoda; é uma coisa realmente antinatural, um objeto que traz a deficiência incorporada em sua natureza, que é planejado para se tornar lixo.

No argumento de Kennedy, trata-se de uma falha fundamental; sob influência do pensamento existencialista – mas, nesse ponto, muito ressonante com o cristianismo –, ele afirma que o ser humano tem o dever de cuidar das coisas, como um “pastor do ser”, e isso não contradiz necessariamente a tecnologia. Entretanto, esse tipo de tecnologia que produzimos, que insere a deficiência na própria estrutura dos bens de forma intencional, e que assim não apenas enche o mundo de refugos, mas refuga a própria imaginação e invenção dos bens que constrói, revela um desrespeito pela existência; “uma dessacralização dos entes que contradiz nosso papel como mordomos e preservadores do ser”.

O ponto faz sentido. O lixo produzido pela indústria de plásticos e de tecidos, por exemplo, é um problema enorme. Nossos corpos já estão cheios de microplásticos, e não sabemos qual será o impacto disso no futuro da saúde pública, para não dizer do planeta. Mas, além de problematizar os efeitos do lixo, precisamos pensar em nossa produção de lixo.

Se a ética do individualismo expressivo é a transposição da ética consumista para o trato do corpo, as relações sexuais e a família, seria muito razoável que a nova ordem moral produza uma enorme quantidade de lixo afetivo. Tudo, é claro, em nome da felicidade

Haveria muito mais a dizer sobre a “ontologia do lixo”, mas o ponto acima é suficiente por ora: o copo descartável é isso, um ente construído para a destruição, e não apenas para o uso. Ele é constituído deficientemente, construído para perder valor em um único uso, para ser muito desejado e, num passe de mágica, converter-se na coisa mais desprezível de todas, que precisa sumir logo das nossas vistas.

Mas por que produzimos esse tipo de coisa? A motivação é uma combinação de epicurismo, que busca maximizar o prazer, e descuido, que não deseja se responsabilizar por nada. Claro, essas duas atitudes expressam o próprio espírito do consumismo moderno, “desfrutar e descartar”. E aqui chegamos ao nosso ponto central: se a ética do individualismo expressivo é, de fato, a transposição dessa ética consumista para o trato do corpo, as relações sexuais e a família, seria muito razoável que a nova ordem moral produza uma enorme quantidade de lixo afetivo. Tudo, é claro, em nome da felicidade.

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A previsão se confirma a olhos vistos: simultaneamente à revolução sexual e à ascensão do individualismo expressivo, testemunhamos uma explosão global do isolamento social e da solidão. Ela foi recentemente descrita por Vivek Murty, cirurgião-geral dos EUA (o cabeça do sistema de saúde pública nacional), em um relatório publicado em maio deste ano, como “a nossa epidemia de solidão e isolamento”, com números assustadores. Um dos aspectos dessa crise é o afastamento das amizades e o aumento dos divórcios. Simultaneamente, a cultura do “hook-up” – “pegação” e sexo casual – se torna dominante, com altos custos emocionais. Em Why Love Hurts, Eva Illouz observou que o laissez-faire afetivo, resultante da revolução sexual, facilitou o sexo e tornou o envolvimento emocional muito mais superficial, em prejuízo das mulheres. Mark Regnerus apresenta um argumento muito mais completo, com base em uma extensiva pesquisa sociológica nos EUA, de que a flexibilização das regras de engajamento sexual trouxe pobreza emocional e econômica a mulheres e crianças, na obra Cheap Sex: The Transformation of Men, Marriage, and Monogamy. O “sexo barato” produz refugos emocionais.

Um dos refugos mais evidentes da revolução afetiva é, evidentemente, o aborto, diretamente ligado ao individualismo expressivo. Não apenas pessoas são descartadas depois de relações sexuais casuais ou relações afetivas efêmeras, mas fetos são descartados em nome da autonomia dos indivíduos e de sua busca da felicidade. Nesse caso o descarte assume contornos muito mais literais, com seres humanos terminando na lata de lixo.

Outra expressão evidente desse problema é a indústria da pornografia, que vende rios de obscenidades banalizando completamente o sexo, não apenas refugando a vida afetiva e sexual de centenas de milhares de atores sexuais profissionais ou amadores, mas principalmente dos usuários. É uma espécie de junk food que produz uma legião de abusadores potenciais e de homens sexualmente impotentes no sexo de verdade, pele-com-pele.

Um dos refugos mais evidentes da revolução afetiva é, evidentemente, o aborto. Fetos são descartados em nome da autonomia dos indivíduos e de sua busca da felicidade, e nesse caso o descarte assume contornos literais, com seres humanos terminando na lata de lixo

Mas podemos ir mais fundo nessa observação: como os copos descartáveis, que já trazem a marca da refugação em sua ontologia, os modernos não estão apenas descartando pessoas e relacionamentos em nome da felicidade, mas reconstruindo as estruturas da relação afetiva e da família em experimentos sociais cujo objetivo é torná-las as mais flexíveis possível. O ponto é que famílias e relações possam ser construídas e desmanchadas com a máxima facilidade, segundo os princípios do desfrute e do descarte. Ora, isso é nada menos que a lógica do copo de plástico, a lógica do consumismo. Coisas são feitas para serem rapidamente destruídas, com a violência incorporada em sua estrutura. Essa tem sido a obra do Judiciário há algumas décadas no campo do direito de família, refugando em sua gênese as relações humanas naturais e sociais, redefinindo casamento, família e mesmo identidade sexual de modo a elevar sua fragilidade e descartabilidade.

O problema, meus amigos, é que em relações humanas não há “biodegradáveis”. Pessoas estão ficando doentes da mente e do corpo, e o tecido social está se emporcalhando cada vez mais. A era do descartável precisa ser resistida com amor, comunidade e alianças que não sejam quebradas em nome da felicidade individual.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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