Pouca gente se interessa por copos de plástico, à exceção da indústria que lucra com eles e dos ambientalistas que os combatem. São coisas muito úteis e tremendamente insignificantes. Mas, consultando a memória, quase todo mundo se lembrará da sensação de incômodo com essa pobre existência, o copo descartável. Esse ente comunica a impressão de algo que não deveria existir, diferentemente de outros seres inanimados como a pedra ou a folha seca. No fundo da consciência, algo se revolta contra esse frágil insulto contra a ordem natural.
O copo descartável nos lembra, é claro, da enorme capacidade humana de emporcalhar o mundo, mas tentação é grande demais – ontem mesmo tive a minha hipocrisia exposta na hora do cafezinho. Eu gostaria de ser um conservacionista consistente, mas as facilidades modernas são encantadoras demais. Nesses momentos preciso dar o braço a torcer: certas tomadas de posição têm de ser feitas coletivamente, como o combate ao cigarro. Nossas vontadezinhas individuais não dão conta do recado.
Não foram preocupações ambientalistas, no entanto, que me levaram a filosofar sobre o copo descartável; foram antes considerações sobre a moderna revolução afetiva, assunto recorrente nessa coluna. O argumento básico é que na primeira metade do século 20 uma aliança profana foi estabelecida entre a psicologia e o grande capitalismo nos EUA. O discurso psicológico, profundamente condicionado pelo epicurismo moral freudiano, popularizou a busca por autoentendimento emocional, e também levou a importantes avanços na compreensão do comportamento humano. A certa altura, grandes corporações começaram a usar a ciência psicológica na administração, e a financiar a pesquisa psicológica.
Consumir coisas e descartar seu resto é natural. A questão é a produção sistemática do descartável, calculado e planejado para ser descartado
Simultaneamente, a ascensão do capitalismo de consumo engendrou um ethos consumista que foi absorvido pelas relações afetivas em geral. Hollywood universalizou uma utopia romântica sentimentalista e a transformou em um objeto de consumo que invadiu a publicidade e o imaginário afetivo. Esse novo imaginário foi exportado para o mundo todo com a expansão da hegemonia cultural dos EUA. Numa citação livre de Eva Illouz, “o capitalismo se tornou afetivo, e a afetividade se tornou capitalista”.
Essa leitura me parece muito consistente: o liberalismo econômico e político alimenta o capitalismo emocional (ao menos foi assim, historicamente) e, ainda que de modo indireto, acaba alimentando a expansão do ethos terapêutico para a indústria cultural, a moralidade social e para o Judiciário. E foi assim que, com o passar dos anos, o individualismo expressivo se tornou a moralidade oficial das democracias liberais, e as antigas regras sobre sexualidade, casamento e família foram subvertidas para dar lugar a relações emocionais consumistas.
E isso nos leva de volta à questão do copo descartável. A leitura de An Ontology of Trash: the disposable and its problematic nature, pelo filósofo Greg Kennedy, abriu meus olhos para outra faceta da revolução afetiva: a criação do descartável como método produtivo. Consumir coisas e descartar seu resto é natural; nosso corpo faz isso com os alimentos, por exemplo. E aquilo que foi consumido e descartado sofre, é claro, um tipo de “violência”, que é, no entanto, moralmente neutra. Poderíamos falar de um “mal natural” aí, e não seria o caso de criminalizarmos burramente o consumo e o descarte. A questão é a produção sistemática do descartável, calculado e planejado para ser descartado:
“o ser de bens tecnológicos inclui, a priori, o seu descarte. Isso significa que o ser desses bens é, desde sempre, refugado (trashed)... Porque, em outras palavras, nós nos colocamos negativamente e destrutivamente em relação a essas coisas, necessariamente as manifestamos como deficientes no ser, como descartáveis. O lixo é, no mesmíssimo momento, o ser de entes descartáveis e o ser de bens ‘predispostos’, porque no fundo nosso próprio modo de ser como consumidores de tecnologia.”
Apesar da linguagem filosófica um pouco oblíqua, Kennedy consegue comunicar que há algo problemático em nossa forma de produzir e usar coisas. Nós criamos alguns bens cuja engenharia inclui a descartabilidade; esses bens são refugados desde a sua gênese, no projeto e nos fins, e não apenas a posteriori; e nós mesmos precisamos nos tornar um tipo de pessoa que se expressa refugando a existência. É por isso que o copo de plástico incomoda; é uma coisa realmente antinatural, um objeto que traz a deficiência incorporada em sua natureza, que é planejado para se tornar lixo.
No argumento de Kennedy, trata-se de uma falha fundamental; sob influência do pensamento existencialista – mas, nesse ponto, muito ressonante com o cristianismo –, ele afirma que o ser humano tem o dever de cuidar das coisas, como um “pastor do ser”, e isso não contradiz necessariamente a tecnologia. Entretanto, esse tipo de tecnologia que produzimos, que insere a deficiência na própria estrutura dos bens de forma intencional, e que assim não apenas enche o mundo de refugos, mas refuga a própria imaginação e invenção dos bens que constrói, revela um desrespeito pela existência; “uma dessacralização dos entes que contradiz nosso papel como mordomos e preservadores do ser”.
O ponto faz sentido. O lixo produzido pela indústria de plásticos e de tecidos, por exemplo, é um problema enorme. Nossos corpos já estão cheios de microplásticos, e não sabemos qual será o impacto disso no futuro da saúde pública, para não dizer do planeta. Mas, além de problematizar os efeitos do lixo, precisamos pensar em nossa produção de lixo.
Se a ética do individualismo expressivo é a transposição da ética consumista para o trato do corpo, as relações sexuais e a família, seria muito razoável que a nova ordem moral produza uma enorme quantidade de lixo afetivo. Tudo, é claro, em nome da felicidade
Haveria muito mais a dizer sobre a “ontologia do lixo”, mas o ponto acima é suficiente por ora: o copo descartável é isso, um ente construído para a destruição, e não apenas para o uso. Ele é constituído deficientemente, construído para perder valor em um único uso, para ser muito desejado e, num passe de mágica, converter-se na coisa mais desprezível de todas, que precisa sumir logo das nossas vistas.
Mas por que produzimos esse tipo de coisa? A motivação é uma combinação de epicurismo, que busca maximizar o prazer, e descuido, que não deseja se responsabilizar por nada. Claro, essas duas atitudes expressam o próprio espírito do consumismo moderno, “desfrutar e descartar”. E aqui chegamos ao nosso ponto central: se a ética do individualismo expressivo é, de fato, a transposição dessa ética consumista para o trato do corpo, as relações sexuais e a família, seria muito razoável que a nova ordem moral produza uma enorme quantidade de lixo afetivo. Tudo, é claro, em nome da felicidade.
A previsão se confirma a olhos vistos: simultaneamente à revolução sexual e à ascensão do individualismo expressivo, testemunhamos uma explosão global do isolamento social e da solidão. Ela foi recentemente descrita por Vivek Murty, cirurgião-geral dos EUA (o cabeça do sistema de saúde pública nacional), em um relatório publicado em maio deste ano, como “a nossa epidemia de solidão e isolamento”, com números assustadores. Um dos aspectos dessa crise é o afastamento das amizades e o aumento dos divórcios. Simultaneamente, a cultura do “hook-up” – “pegação” e sexo casual – se torna dominante, com altos custos emocionais. Em Why Love Hurts, Eva Illouz observou que o laissez-faire afetivo, resultante da revolução sexual, facilitou o sexo e tornou o envolvimento emocional muito mais superficial, em prejuízo das mulheres. Mark Regnerus apresenta um argumento muito mais completo, com base em uma extensiva pesquisa sociológica nos EUA, de que a flexibilização das regras de engajamento sexual trouxe pobreza emocional e econômica a mulheres e crianças, na obra Cheap Sex: The Transformation of Men, Marriage, and Monogamy. O “sexo barato” produz refugos emocionais.
Um dos refugos mais evidentes da revolução afetiva é, evidentemente, o aborto, diretamente ligado ao individualismo expressivo. Não apenas pessoas são descartadas depois de relações sexuais casuais ou relações afetivas efêmeras, mas fetos são descartados em nome da autonomia dos indivíduos e de sua busca da felicidade. Nesse caso o descarte assume contornos muito mais literais, com seres humanos terminando na lata de lixo.
Outra expressão evidente desse problema é a indústria da pornografia, que vende rios de obscenidades banalizando completamente o sexo, não apenas refugando a vida afetiva e sexual de centenas de milhares de atores sexuais profissionais ou amadores, mas principalmente dos usuários. É uma espécie de junk food que produz uma legião de abusadores potenciais e de homens sexualmente impotentes no sexo de verdade, pele-com-pele.
Um dos refugos mais evidentes da revolução afetiva é, evidentemente, o aborto. Fetos são descartados em nome da autonomia dos indivíduos e de sua busca da felicidade, e nesse caso o descarte assume contornos literais, com seres humanos terminando na lata de lixo
Mas podemos ir mais fundo nessa observação: como os copos descartáveis, que já trazem a marca da refugação em sua ontologia, os modernos não estão apenas descartando pessoas e relacionamentos em nome da felicidade, mas reconstruindo as estruturas da relação afetiva e da família em experimentos sociais cujo objetivo é torná-las as mais flexíveis possível. O ponto é que famílias e relações possam ser construídas e desmanchadas com a máxima facilidade, segundo os princípios do desfrute e do descarte. Ora, isso é nada menos que a lógica do copo de plástico, a lógica do consumismo. Coisas são feitas para serem rapidamente destruídas, com a violência incorporada em sua estrutura. Essa tem sido a obra do Judiciário há algumas décadas no campo do direito de família, refugando em sua gênese as relações humanas naturais e sociais, redefinindo casamento, família e mesmo identidade sexual de modo a elevar sua fragilidade e descartabilidade.
O problema, meus amigos, é que em relações humanas não há “biodegradáveis”. Pessoas estão ficando doentes da mente e do corpo, e o tecido social está se emporcalhando cada vez mais. A era do descartável precisa ser resistida com amor, comunidade e alianças que não sejam quebradas em nome da felicidade individual.
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