![O inimigo da democracia Lula em um encontro com evangélicos no Rio de Janeiro, durante a campanha de 2022.](https://media.gazetadopovo.com.br/2024/03/22165601/lula-evangelicos-900x540.jpg)
Rodou a internet uma pequena sequência de comentários de Andréia Sadi e Octavio Guedes no programa Estúdio i, veiculado na Globo News em 18 de março, comentando a primeira reunião ministerial do ano e as falas do presidente Lula. No bate-papo, a certa altura, o grupo entra na discussão sobre a alegada defesa do fim do Estado laico por Michelle Bolsonaro, sobre a qual Octavio Guedes pontifica:
“Que pra mim vai ser o maior problema da democracia nos próximos anos... não vai ser direita e esquerda, não vai ser estatização, vai ser a luta de um segmento que acredita que a igreja tem de tomar o Estado, que foi uma distração do satanás dizer que política e religião não se misturam, isso é um fato que as forças democráticas do país vão ter de debater e enfrentar sem medo dos líderes evangélicos.”
Eu mal pude acreditar. A atitude proposta pelo jornalista é de enfrentamento total: uma disputa entre “as forças democráticas deste país” e os líderes evangélicos, a essa altura caracterizados como inimigos da democracia.
“Comer, beber, dormir e pagar contas”. Não se trata só disso; o evangélico quer plena representação política e pública
No mesmo programa, a jornalista e apresentadora Andréia Sadi cobra do presidente maior atenção à vida real do brasileiro, e propõe algum diálogo com os evangélicos:
“É você olhar, sentar e conversar. Por exemplo, quando a gente fala de interlocução com evangélicos, não é se converter, a religião é livre, cada um faz o que quiser... Mas é você ouvir o evangélico, é você ouvir o segmento e tentar achar uma pauta convergente. Porque o evangélico, antes de tudo, por óbvio, come, bebe, dorme e precisa pagar as contas...”
“Pautas convergentes”: faz muito sentido. Cobeligerâncias, traçar círculos de cooperação; o cientista político Robert Putnam argumenta que a nossa “tartaruga interior” se ressente de lidar com a diferença, e que precisamos buscar o sentido mais amplo de “nós” de forma muito intencional.
Mas o final soa mal, não é? “comer, beber, dormir e pagar contas”. Não se trata só disso; o evangélico quer plena representação política e pública. Mas na sequência a conversa piora, com outra pérola dele, sim, o genial Octavio Guedes:
“Como é que o Paes ganhou com os evangélicos? Dizendo o seguinte: o ônibus está ruim, o posto de saúde está ruim, é... a escola está ruim, o asfalto tá cheio de buracos, a luz não está acendendo, Crivella um desastre, vamos voltar a cuidar da cidade, aí vale o quê? Vale mais o voto do morador do que o voto da fé. Desculpa, tô te cortando...”
Ao que a apresentadora respondeu: “não, você não está me cortando, está complementando, é exatamente isso, você nunca vai encontrar uma pauta convergente com alguém que não acredita numa pauta progressista”. E os outros painelistas assentiam com tudo.
Como evangélico, sinto-me consternado com essa conversa inteira; é degradante. Trata-se de conhecida postura laicista e antidemocrática, que nega à pessoa de fé a condição de sujeito político. O evangélico quer, como mencionamos em outra coluna recente, que os pilares sociopolíticos da religião – a família e a liberdade religiosa – sejam maximamente respeitados e protegidos, e que o governo se abstenha de promover qualquer projeto espiritual alternativo, incluindo religiões seculares como o identitarismo.
Se é verdade que muitos deles têm passado por um momento de radicalização? Sem dúvida. Mas isso resulta em grande medida do atual regime de poder, no qual a elite cultural nacional exclui sistematicamente as massas religiosas de qualquer participação significativa, como temos insistido por aqui.
Na nova guerra de classes, o PT seria um círculo de militância religiosa paracristã que promove, com fervor religioso, uma fé e uma esperança no progresso brasileiro através do Estado
Na semana passada examinamos nesta coluna a entrevista de Gleisi Hoffmann, deputada federal e presidente do PT, ao programa DR com Demori. No artigo eu chamei a atenção para a estratégia defendida por Gleisi para o enfrentamento do antipetismo evangélico. A posição de Gleisi, que não é consensual dentro do partido, mas domina no momento, é a de que o governo e a esquerda devem evitar a todo custo entrar numa discussão de mérito sobre as reivindicações evangélicas: “Não dá para tratar os evangélicos como uma categoria religiosa; tem que tratar como uma categoria social”.
Isso seria, como argumentei, nada menos que o apagamento político da fé e da própria comunidade evangélica. Trata-se de uma postura hipócrita, de uma laicidade de fachada, uma vez que, como se deu com boa parte da esquerda boomer e da própria Gleisi, o PT nasceu e foi aleitado pelos seios da Teologia da Libertação. O progressismo católico foi, sem dúvida, superado por um espírito laicista e pós-cristão, especialmente com a emergência das gerações X e millennial e seu identitarismo, e entrou em recessão; ainda assim, o substrato religioso permaneceu no partido com um páthos messiânico e traços de ética cristã.
Daí meu palpite de que, na nova guerra de classes, o PT seria um círculo de militância religiosa paracristã que promove, com fervor religioso, uma fé e uma esperança no progresso brasileiro através do Estado. Paradoxalmente, no entanto, essa religiosidade se oculta sob um discurso laicista, que precisa remover o excesso de religião da praça pública. A farsa cola porque, de fato, as raízes teológicas do PT estão muito profundamente enraizadas. Sua religiosidade é implícita.
O que ocorre agora é que o paracristianismo petista tem um competidor explicitamente religioso: o campo evangélico. E a estratégia de resposta atualmente sobre a mesa é laicizar o campo político, negar a legitimidade da influência religiosa nesse campo e, se possível, apagar do voto o elemento de fé.
Isso não significa que a esquerda tenha se alinhado de forma consistente com a solução hoffmanniana. Como reportei aqui, desde o ano passado a esquerda cristã se queixa veementemente de abandono pelo governo, advertindo a cúpula petista de que ignorar os evangélicos sairia caro. O problema é que a capacidade dessa esquerda cristã de engajar o povo evangélico é perto de nula. Sob um ponto de vista estratégico, promover ícones evangélicos de esquerda seria um suicídio político.
Mas nem o presidente parece totalmente consistente com a estratégia. Na referida reunião ministerial da última segunda-feira, Lula, explicando o tipo de democracia que almeja, defendeu “um país em que a religião não seja instrumentalizada como instrumento político de um partido ou de um governo; que a fé seja exercitada na mais plena liberdade das pessoas que queiram exercê-la... a gente não pode compreender a religião sendo manipulada da forma vil e baixa da forma com tá sendo neste país”. Implícito na afirmação está o desgosto com a influência principalmente evangélica na política nacional, que engrossa a resistência conservadora. Nesse sentido, Lula e Gleisi estão alinhados.
Entretanto, na mesma reunião Lula disse, referindo-se a Jorge Messias, advogado-geral da União, que o “Deus do Malafaia não é o mesmo que o nosso”. Malafaia retrucou, bem ao seu estilo, que o deus do presidente seria o pai-da-mentira. Contorno o mérito da discussão para destacar o detalhe embaraçoso: em mais um de seus honestíssimos e indispensáveis improvisos, Lula deixa escapar a verdade secreta do PT: no seu peito mora uma teologia política. O caso é que a teologia implícita do PT tem hoje poucos pontos de contato com a religiosidade evangélica.
A nossa elite cultural segue em guerra contra o proletariado nacional e contra os seus valores religiosos, e não pretende negociar nem um centímetro do país
Tudo isso torna ainda mais grave a conversa dos jornalistas da Globo News. A esquerda nacional vende uma farsa, de que seu projeto em nada interfere na religião e que, pelo contrário, o voto de fé é que resulta da manipulação política. Transmite-se a impressão de que os religiosos é que estão se metendo onde não devem, ao promover suas pautas conservadoras. Caberia ao jornalismo tirar as máscaras, e não reproduzir a estratégia do lulopetismo e de Gleisi Hoffmann; mas ali estão eles, confabulando em público sobre como dobrar os evangélicos, como manipulá-los sem ter de levar a sério nenhuma de suas preocupações, e como derrotar a liderança evangélica.
Esse tipo de discurso sugere que há, mesmo, um consórcio das elites contra as massas. A nossa elite cultural segue em guerra contra o proletariado nacional e contra os seus valores religiosos, e não pretende negociar nem um centímetro do país. E o novo inimigo público, o inimigo da democracia, já tem um retrato falado: é o líder evangélico.
-
Novo embate entre Musk e Moraes expõe caso de censura sobre a esquerda
-
Biden da Silva ofende Bolsonaro, opositores e antecipa eleições de 2026; acompanhe o Sem Rodeios
-
Qual o impacto da descriminalização da maconha para os municípios
-
Qual seria o melhor adversário democrata para concorrer com Donald Trump? Participe da enquete
Inteligência americana pode ter colaborado com governo brasileiro em casos de censura no Brasil
Lula encontra brecha na catástrofe gaúcha e mira nas eleições de 2026
Barroso adota “política do pensamento” e reclama de liberdade de expressão na internet
Paulo Pimenta: O Salvador Apolítico das Enchentes no RS
Deixe sua opinião