O vice-presidente, General Hamilton Mourão, publicou nessa quinta-feira (14), no Estadão, o artigo “Limites e Responsabilidades” no qual afirmou que, entre os vários países do mundo, “nenhum vem causando tanto mal a si mesmo como o Brasil”. E apresentou quatro atitudes que o país tem assumido para seu próprio prejuízo: polarização impulsionada pela imprensa, desrespeito ao pacto federativo, desarmonia entre os poderes e usurpação das funções do executivo, e a destruição da imagem internacional do país por ex-membros da administração.
Concordo com o General, em princípio; o Brasil anda agredindo a si mesmo. Há uma culpa nacional pelo atual estado de coisas, envolvendo a todos em proporções diferentes. Há, sim, um subterrâneo “demônico”, na linguagem do teólogo Paul Tillich, em movimentação nesse momento, uma angústia autodestrutiva que contamina todos os esforços políticos. E se não estou errado sobre o foco edificante de seu texto, o vice-presidente pede mais espírito patriótico, mas amor pela nação.
Não penso que ele esteja nos oferecendo apenas outra versão do “ame-o ou deixe-o”, como foi ventilado por alguns; mas temo que o vice-presidente não compreenda o porquê de seu pedido ser, nas atuais condições, algo praticamente impossível de se obter.
Estaria o vice-presidente lançando um apelo ao sentimento nacional, para que mantenhamos a peteca no ar, independentemente do que diz e faz o chefe da nação?
A narrativa oficial
O General reproduz em seu artigo, de forma respeitosa, clara e acessível, a narrativa central da presidência da República sobre a origem das dificuldades que ele vem enfrentando na condução do país. Trata-se de uma crise de autoridade, basicamente. A imprensa não respeita o executivo e não colabora; os estados não respeitam o governo federal; o legislativo e o judiciário não respeitam o executivo, e os antigos administradores não respeitam a presente administração. E enquanto ninguém pensa no país, exceto a presidência Bolsonaro, aproximam-se terríveis consequências. O Brasil faz mal a si mesmo porque não colabora com a presidência, ponto final.
Confesso que leitura do artigo me fez hesitar por um momento; será que o General realmente acredita nisso, desconhecendo a quinta e maior de todas as dificuldades do país nesse momento, que é, naturalmente, o comportamento do presidente Bolsonaro? Estaria o vice-presidente lançando um apelo ao sentimento nacional, para que mantenhamos a peteca no ar, independentemente do que diz e faz o chefe da nação?
Apesar da hesitação simpática, me parece que o General realmente acredita no que diz, e que pedindo coisas impossíveis como o fim de “estatísticas seletivas, discórdia, corrupção e oportunismo”, procura na verdade transferir a responsabilidade pelo desastre em curso para esses quatro grupos de pessoas que não respeitam “os limites e as responsabilidades”.
A presente crise de autoridade
O diagnóstico do General seria totalmente correto, se não estivesse invertido como um negativo fotográfico. É verdade que imprensa, poderes, estados e ex-autoridades estão agora em estado de rebelião. Vivemos uma espécie de anomia política e caminhamos para uma anomia institucional. Essa anomia não se deve, no entanto, ao onipresente oportunismo da classe política ou da proverbial antipatia gratuita da imprensa, mas à falta de liderança da presidência da República.
Certamente que se todos respeitarem e obedecerem às autoridades, como pede o General tudo ficará mais fácil, incluindo, por exemplo, um suicídio coletivo. Ironias à parte, em havendo dissenso cabe à autoridade construir a unidade coletiva e, num sistema democrático, fazer convergir sentimentos e agendas coletivas em um foco, um único ponto central. Se ela não é capaz de fazer isso, e precisa apelar progressivamente para o uso da força, temos claro sinal de dissolução da autoridade. Sendo mais direto: a autoridade não nasce da força, do cano do fuzil, mas da ascendência moral, da capacidade de síntese do espírito coletivo em nome do bem comum.
Em favor da atual presidência, poderíamos mencionar que ela não tem usado a força nem cometido ilegalidades para garantir a obediência nacional, e eu mesmo já celebrei esse fato em outros artigos. Infelizmente, no entanto, esse “mérito” vem se mostrando cada vez mais ambíguo, ofuscado pela omissão sistemática do diálogo nacional e da tarefa de construção de consenso, e pela ausência de liderança moral. Essa estratégia (?) de omissão é o que tem estimulado o caos de pequenos autoritarismos, os atos desencontrados e confusos, às vezes oportunistas, sim, as às vezes bem-intencionados e às vezes até desesperados de governadores, prefeitos e outras autoridades, no sentido de oferecer à sociedade uma resposta à altura da ameaça que agora nos alcança.
Não vamos nos esquecer de que a presidência, tão tarde quanto no dia 22 de março, ainda afirmava que teríamos menos que 800 mortes ao longo de toda a pandemia, preocupando-se muito mais, ao menos em suas declarações públicas, com o extermínio de empregos do que de pessoas. Seu famoso “e daí”, com toda a sua espontaneidade, expressou de fato o espírito do presidente diante das fatalidades. Aqueles minimamente informados sobre os melhores modelos científicos – ainda que falíveis – e consensos dominantes nos sistemas de saúde dos países mais eficientes sentiram-se, naturalmente, insultados e exasperados.
Com um discurso claramente negacionista, que a pôs em conflito com o seu próprio Ministro da Saúde, a presidência segue afirmando que o pior já passou e que é tempo de retomar a normalidade, mesmo enquanto nos aproximamos de 14.000 mortos e tendência de piora da pandemia em todos os estados do país. Eventualmente, Bolsonaro atribuiu aos governadores a responsabilidade pelo número elevado de mortes e o colapso econômico, e disse que, por ele, estaria “tudo aberto” e funcionando. Ou seja, não apenas nenhum lockdown, mas nenhuma quarentena.
Essa atitude acirrou o processo de conflito, que já estava em curso, entre a presidência e todos os quatro blocos de autoridade citados pelo General Mourão – os entes da federação, os outros dois poderes da República, a imprensa e autoridades antigas ou demitidas pelo atual governo. Não se pode, de modo algum, minimizar o impacto da atitude omissa, negacionista e conflituosa da presidência no despertamento de resistências extraordinárias contra o executivo federal vindo de todos esses campos.
O General Mourão pede que limites e responsabilidades das autoridades constituídas sejam respeitados. Formalmente ele está absolutamente certo. Certo como um círculo perfeito. Mas o mundo real é feito de elipses e circunferências irregulares. Não há bom sistema constitucional que suporte frequentes e indiscriminados desmandos das autoridades. Pelo contrário, é fato que uma autoridade legalmente constituída pode usar seu poder para destruir o próprio sistema, se por suas decisões e comportamentos tresloucados torna a vida dos cidadãos e o trabalho das outras autoridades uma tarefa impossível.
Nessas condições, se processos de dessincronia, desarticulação, sobreposição e até desobediência começam a se multiplicar, não faz sentido lançar a culpa sobre entes políticos em tal estado de perturbação assim, sem mais nem menos. O General Mourão parece pensar que está lidando com um quartel, e não com uma nação. Cidadãos não são soldados. A governança democrática não é o sistema da caserna. O presidente deve ser um líder, e não pode exigir obediência a qualquer custo, como um exército em batalha.
Certamente, para evitar uma quarentena excessivamente longa, minimizar um eventual lockdown, e administrar melhor o colapso econômico, a presidência deveria desde o início ter proposto tréguas políticas temporárias, se reunido com líderes dos outros poderes, transmitido mensagens de esperança à nação, e investido pesadamente na construção de um consenso quanto às medidas de proteção e prevenção ao contágio. Tais medidas poderiam ter ajudado a reduzir nossos números iniciais na evolução da doença, e facilitado uma retomada mais consensual das atividades econômicas. Essa era a única coisa que Jair Messias Bolsonaro poderia e deveria fazer, da cadeira da presidência, mas não o fez. Acusando a oposição de espalhar o pânico, o homem deixou todos em pânico.
Com sua atitude omissa, negacionista e conflituosa, a presidência da República, de modo sutil, provoca a desordem e a rebelião para em seguida denunciá-la cinicamente como autoritarismo, legitimando progressivamente o discurso radical da revolta popular contra os traidores da nação.
O que falta à Presidência Bolsonaro?
Passo a uma discussão ética e teológica da questão, não apenas por ser teólogo, mas porque o atual governo insiste no mote “Deus acima de todos”. Quem apoia Bolsonaro tem a obrigação de ouvir sermões. Ademais, como concordo com essa afirmação, quero invocar aqui a voz do autor sagrado: o profeta Bíblico Isaías, anunciando a vinda futura do verdadeiro Messias:
“1Um ramo brotará do tronco de Jessé, e um renovo frutificará das suas raízes.
2O Espírito do SENHOR repousará sobre ele, o espírito de sabedoria e de entendimento, o espírito de conselho e de fortaleza, o espírito de conhecimento e de temor do SENHOR.
3"Ele se inspirará no temor do SENHOR; e não julgará pela aparência, nem decidirá pelo que ouvir dizer;"
4"mas julgará os pobres com justiça e defenderá os humildes da terra sem parcialidade; ferirá a terra com palavras de juízo e matará o ímpio com o seu sopro."
5A justiça será o cinto do seu peito, e a fidelidade, o cinto de sua cintura.
6"O lobo habitará com o cordeiro, e o leopardo se deitará com o cabrito. O bezerro, o leão e o animal de engorda viverão juntos; e um menino pequeno os conduzirá."
7"A vaca e a ursa pastarão juntas, e as suas crias se deitarão juntas; e o leão comerá palha como o boi."
8A criança de peito brincará sobre a toca da cobra, e a desmamada porá a mão na cova da víbora.
9Não se fará mal nem dano algum em todo o meu santo monte, porque a terra se encherá do conhecimento do SENHOR, como as águas cobrem o mar.”
Isaías 11:1-9
Escrevendo sobre o futuro descendente do rei Davi, da família de Jessé, mais de 700 anos antes de Cristo, o profeta anuncia que esse ente terá a sabedoria divina, sendo capaz, com isso, de julgar com justiça e imparcialidade em favor dos pobres. Mas de modo muitíssimo interessante, a situação a ser trazida pelo futuro rei-sábio é uma situação de paz, na qual leões, bois, cobras, e crianças de peito viverão juntos! Trata-se, naturalmente, de linguagem metafórica, descrevendo de modo imagético aquilo que os hebreus chamavam de “Shalom”: uma situação de integridade, saúde, completude, paz e ausência de conflito.
Na tradição sapiencial bíblica a sabedoria está diretamente associada à justiça, à paz, e à governança. Sabedoria é mais do que informação de qualidade, gênio e até mesmo “esperteza” política. O sábio não é o indivíduo de grande inteligência analítica, tão somente, ou o sujeito ladino, habilidoso na manipulação, astuto. O sábio cria condições para que o mal não seja feito, para que o poder disponível não seja usado para trucidar o mais fraco. Em outras palavras, a sabedoria é a ciência da Shalom.
O leitor seja talvez rápido em me lembrar que tais termos são religiosos e que dizem respeito a um messias bíblico, e não à moderna autoridade política. Respondo que não há autoridade política sem dimensão teológica, e que toda a ideia de autoridade política é impossível de legitimar sem pressupor transcendência, sacralidade, e uma ordem moral anterior à atividade cultural humana. Mesmo que esses pressupostos sejam uma paródia do Cristianismo, como encontramos em religiões seculares como o marxismo.
O “ramo de Jessé” viria a ser chamado pelos judeus de Mashiah ou “messias”, que significa “ungido”; ou christos, em grego. Os cristãos entendem que Jesus Cristo seria esse ramo de Jessé. Cristo foi denominado “Rei dos reis” pelas Escrituras Cristãs, e isso significa que o modelo crístico é a régua definitiva para todas as autoridades. Daí dizermos que autoridades que fazem o contrário de Cristo, sacrificando o seu povo para a sua própria sobrevivência, são anticristos.
O líder político que não deseja ser visto como um anticristo, um falso messias por seus “súditos” cristãos, precisa se ajoelhar diante do Cristo e aspirar o mesmo sopro de “conhecimento”, de “entendimento” e de “conselho” que inspirou o Filho de Deus; e isso significa comprometer-se com a promoção da shalom. Isso é sabedoria. Evidentemente, uma presidência que nega o melhor conhecimento científico disponível, o conselho dos melhores chefes de estado do mundo, que deliberadamente desautoriza instituições e outras autoridades inferiores, que não assume a liderança no enfrentamento da ameaça social, que despreza entendimentos e que cultiva sistematicamente o conflito verbal em suas comunicações carece de sabedoria. E não seria exagero dizer que a “sabedoria” promovida pelo núcleo ideológico do governo e por sua mídia chapa-branca não tem uma fonte, digamos, muito elevada. Para discuti-la, volto-me aos leitores Cristãos.
O que falta aos cristãos para entender Bolsonaro?
“Quem entre vós é sábio e tem conhecimento? Mostre suas obras pelo seu bom procedimento, em humildade de sabedoria.
Mas não vos orgulheis, nem mintais contra a verdade, se tendes inveja amarga e sentimento ambicioso no coração. Essa não é a sabedoria que vem do alto, mas é terrena, animal e demoníaca. Pois onde há inveja e sentimento ambicioso, aí há confusão e todo tipo de práticas nocivas.
Mas a sabedoria que vem do alto é, em primeiro lugar, pura, depois pacífica, moderada, tratável, cheia de misericórdia e de bons frutos, imparcial e sem hipocrisia. O fruto da justiça semeia-se em paz para aqueles que promovem a paz.”
Epístola de Tiago 3:13-18
Ressalto, aos que insistem no Bolsonarismo: a sabedoria é pacífica, moderada, tratável, cheia de misericórdia, imparcial, e sem hipocrisia. É difícil pensar em uma lista mais impressionante de qualidades que a presidência da República atualmente não tem, e aparentemente não deseja ter. Como se obtém justiça? Não semeando conflito e revolução popular, mas promovendo a paz. Shalom é a meta e a regra da moralidade política, em uma cosmovisão Cristã.
É verdade que o atual governo leva a sério a liberdade religiosa (ao menos em seu discurso, pois o orçamento para essa área é baixíssimo), que se preocupa com liberdades civis fundamentais, e que tem agendas conservadoras para os campos da família, da educação, e da proteção à vida? Sim. No entanto, nada ganharemos, como Cristãos, se as nossas caras e divinas agendas são defendidas por métodos demoníacos, como o da contínua produção e reprodução do desrespeito e do conflito.
Porquê tantos Cristãos minimizam esse problema, como se o enunciado da agenda ideológica “correta” fosse suficiente para legitimar um projeto de poder? Só por ser contra a ideologia de gênero o presidente pode insultar jornalistas à vontade? Se considerarmos, como critérios fundamentais para o voto e o apoio político, a agenda ideológica, a competência técnica, e a moralidade política, temo que, a essa altura, a nossa presidência não seja capaz de preencher nenhum dos requisitos, e especialmente o último.
Temo, mais ainda, que a razão por que alguns Cristãos não pensam ser necessária à presidência a sabedoria para governar, seja que, para os mesmos, a hierarquia está acima de todos. O líder já tem o cargo e o poder, então não precisa ter autoridade moral. Nesse sentido, penso que a culpa é realmente de todos nós, como nação.
Vivemos em uma sociedade autoritária, na qual pais, maridos, professores, chefes, gerentes, prefeitos, governadores, pastores e padres se excedem em seus limites e se omitem em suas responsabilidades, pisando as ovelhas magras como ovelhas gordas e distraídas, quando não devorando suas ovelhas como lobos, abusando do poder e alimentando traumas e ressentimentos, que se tornam, nas mãos da esquerda, em gasolina para a anomia e o processo revolucionário. Como cristão conservador, defendo com unhas e dentes a origem divina das autoridades, mas pela mesma razão, defendo que elas operam pelo bem comum, e não para si mesmas.
O General Mourão poderá sempre apontar a constituição e as leis, e ignorar completamente tais reclames. Mas a realidade é mais sólida que o diamante, e no mundo real, nenhum sistema político pode sobreviver a governantes que enfraquecem o tecido social e a fibra moral do país.
Se eu pudesse recomendar algo aos ministros e ao Vice-Presidente, eu diria que eles deveriam largar de mão essa tarefa impossível de tirar o cisco dos olhos da imprensa, dos outros poderes, dos governadores e de ex-ministros, dedicando-se à remoção da trave no olho do executivo. E que como magistrados inferiores que são, segundo a melhor tradição política protestante, deveriam confrontar diretamente a presidência, para que cumpra suas responsabilidades, respeite os seus limites, que leve a sério a sua reivindicação de cristianismo, buscando a sabedoria do alto para pacificar e unir o país.
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