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Fui procurado por um jornal na semana passada, e questionado sobre o interesse de Lula em dialogar com os evangélicos. A pergunta foi lançada pelo próprio presidente em 2 de dezembro, na Conferência Eleitoral do PT, diante da constatação de que pessoas com renda maior que dois salários mínimos não votam na legenda.
Duas semanas depois, no dia 17, Lula chamou Alexandre de Moraes para uma grande festa no Palácio do Planalto. A plateia gritava “vai, Xandão!” Riram, como se noticiou, Sílvio Almeida, Janja e Fabiano Contarato. A atividade político-jurídica de Alexandre de Moraes, é claro, não tem nada a ver com a questão evangélica. Ao menos não diretamente. Mas a vontade de punir o lavajatismo, o bolsonarismo e a direita em geral é compartilhada por todos ali, com risos e sorrisos. Essa conexão, sim, atinge os evangélicos.
Esclareço: Sílvio, Janja e Contarato, os risonhos, com suas notórias identidades representativas e agendas, ilustram muito bem o campo e o discurso de “diversidade” identitarista. Esse campo detém a hegemonia ideológica na esquerda contemporânea, e faz a cabeça da elite nacional. Ao mesmo tempo, ele é notoriamente hostil ao movimento evangélico, visto como reacionário e fascista. Não vamos nos esquecer da associação explícita que Lula fez à pauta da família, por exemplo, no seu discurso de abertura do Foro de São Paulo, neste ano: “Aqui, no Brasil, enfrentamos o discurso do costume, da família e do patriotismo. Ou seja, enfrentamos o discurso que a gente aprendeu a historicamente combater”. Lula classificou esse discurso como “fascismo”.
O PT sabe muito bem o que precisa fazer para dialogar com os evangélicos: precisa respeitar a sua pauta de costumes. Não há nada difícil de entender; é apenas isso
Os evangélicos já tiveram algum respeito por Lula, quando ele era só o Lula. Mas não agora, depois da ascensão do identitarismo, que o metamorfoseou em “Lule”. Mesmo o evangélico que votou em Lula para não dar a vitória a Bolsonaro não quer saber do Lule.
O mais significativo na festa do dia 17 é essa parceria alegre entre a elite, com seus valores cosmopolitas e identitários, e um STF cada vez mais militante e autoritário, em nome da salvação da democracia. As provas desse convênio são variadas, e não é o caso de repeti-las aqui; elite e Judiciário se uniram para apoiar a esquerda e redimir Lula, a “kriptonita” de Bolsonaro, mas com isso caracterizaram todas as agendas que, por circunstâncias históricas, favoreceram Bolsonaro, como inimigas da democracia.
Alguém poderia retrucar, é claro, que os evangélicos jamais deveriam ter apoiado o bolsonarismo, por seu elemento populista e demagógico; eu mesmo me inclino a essa opinião. Mas me abstenho de julgar pessoalmente os evangélicos que mantiveram seu apoio, por uma razão muito simples: o sistema político não lhes deu outra alternativa para expressar seu conservadorismo. A elite nacional nunca abriu espaço para os valores e a mente evangélica, porque essa mente é uma alternativa ameaçadora a seus próprios valores.
Nessas condições, diante de tal convênio entre elite nacional, lulopetismo e Judiciário, com o propósito de reprimir a interferência conservadora e largamente popular no avanço nacional, é difícil esperar qualquer cooperação evangélica. Os fatos são conhecidos: segundo mencionamos em uma coluna anterior, a pesquisa do cientista político Victor Araújo mostra claramente duas coisas: primeiro, que os evangélicos não vendem sua pauta de costumes em troca de políticas de distribuição de renda. Segundo, que a população evangélica cresceu e continua crescendo a partir das bases. De forma que o crescimento evangélico é a nêmesis do PT.
Não é que a pergunta de Lula não seja irracional; o problema reside em seu cinismo. O PT sabe muito bem o que precisa fazer para dialogar com os evangélicos: precisa respeitar a sua pauta de costumes. Não há nada difícil de entender; é apenas isso.
Se Lula e o PT respeitassem os evangélicos, veríamos o ministro Sílvio Almeida, por exemplo, professor licenciado do Mackenzie e conhecedor do conservadorismo evangélico, dizendo publicamente que sua defesa de pautas identitárias pode coexistir com comunidades evangélicas cujos valores são contrários aos seus. Ele estaria engajado em algum tipo de pacificação social. Mas não vemos nada disso, nem nos ministros de Lula, nem em Lula, nem no partido de Lula: nada.
Os evangélicos devem oferecer ao PT e à esquerda um não, claro, grave e corajoso, até que Lula venha dizer em público que a pauta de costumes dos evangélicos não é fascista, e que o petismo errou
E agora temos essa campanha sem-vergonha, “O Brasil é um só povo”. Porque depois de tudo o que o lulopetismo fez para dividir o país, não há outro nome para ela. É parte da identidade evangélica ver-se como o “povo de Deus”, os membros da igreja de Cristo etc. “Povo de Deus” é o título do livro de Juliano Spyer sobre os evangélicos, por sinal. Ver-se como parte do Brasil é difícil para os evangélicos, uma vez que sua fé foi por décadas tratada como uma invasão externa, tanto por católicos quanto pela elite secularizada.
Isso não será fácil assim. Não estamos divididos apenas politicamente. Estamos divididos espiritualmente, como estão hoje divididas as democracias ocidentais. E há, além do fator religioso, o fator de classe: existe o povo, onde prevalece cada vez mais o imaginário evangélico, e existe a elite secularista que quer ver o Brasil unido ao redor de si. Essa divisão entre elite cosmopolita e proletariado cultural, que constitui a subestrutura de classe da guerra cultural, não será dissipada com propagandas governamentais.
Diante disso, a viabilidade de unir os evangélicos ao redor de Lula é nula. Lula não é o ponto de integração da identidade nacional. Lule, então, nem se fale. A campanha inteira é uma grande picaretagem midiática, porque não tem qualquer correspondência com diálogos ou projetos efetivos de integração do universo evangélico por parte da elite nacional.
Os evangélicos devem oferecer ao PT e à esquerda um não, claro, grave e corajoso, até que Lula venha dizer em público que a pauta de costumes dos evangélicos não é fascista, que o petismo errou, e que os identitaristas precisam abandonar sua postura supremacista em nome do pluralismo.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos