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“Uma consciência viva da situação intelectual contemporânea se exprime unicamente pelo fato de sermos capazes de reconhecer no problema moral o problema fundamental de nossa época.” (Mario Vieira de Mello)
Fui apresentado às ideias de Mario Vieira de Mello há uns poucos anos, quando o professor Felipe Fontes, um colega calvinista do Mackenzie, mencionou o embaixador-filósofo numa conversa em seu gabinete. Eu fora convidado a dar algumas aulas sobre teologia política no Instituto Andrew Jumper e minhas ansiedades com respeito ao tema da “revolução afetiva” nos levaram diretamente ao problema do estetismo brasileiro.
Mas só recentemente me dispus a enfrentar Desenvolvimento e Cultura: O Problema do Estetismo no Brasil, de 1963, e sua crítica ao estetismo brasileiro; e as não poucas críticas às suas ideias e ao formato, às vezes, generalizante e pouco rigoroso de suas pinceladas. Mas o eixo de seu argumento me pareceu elucidador e impressionante, como a aparição súbita de uma nova paisagem, em uma viagem de automóvel: se a espinha dorsal de nossa organização cultural é estética e não ética – se padecemos de um estetismo cultural radical, de uma debilidade na paixão religiosa e no compromisso espiritual com a ideia de bem absoluto –, então nossos esforços por um desenvolvimento cultural estão inevitavelmente comprometidos.
No próprio título da obra há a afirmação e uma negativa implícita; a afirmação é a de que somos uma nação de estetas, absorvidos pela imanência e, numa linguagem não melliana, mas afim a ela, pela busca da felicidade temporal como bem máximo, como se fora o próprio bem transcendente. Vieira de Mello vai encontrar na psicologia filosófica de Søren Kierkegaard essas duas grandes categorias, na compreensão construída pelo teólogo dinamarquês a respeito do coração da crise espiritual moderna. Segundo ele, ela seria rasgada por uma tensão entre o princípio estético, da paixão infinita mergulhando na imanência, em busca de beleza, prazer e completude, e sem nunca tomar consciência do próprio Self e da própria finitude, e o princípio ético, da consciência do bem e de sua absolutidade, da aceitação da própria responsabilidade moral e da constituição de uma verdadeira consciência.
Se a espinha dorsal de nossa organização cultural é estética e não ética, então nossos esforços por um desenvolvimento cultural estão inevitavelmente comprometidos
Kierkegaard naturalmente buscava essas categorias na condição humana universal, lendo-os no âmago da fé abraâmica, e não meramente “na Europa”. Os méritos da Europa, grosso modo, residiriam na tomada de consciência dessa doença mortal, e no modo como ela se explicitou nas estruturas de sua cultura e em sua própria autorreflexão teológica, filosófica e literária – que é como o embaixador lerá, por exemplo, Dostoievski.
A negativa diz respeito às vãs paliçadas que a nossa intelectualidade construiu ao redor de si para ocultar de si mesma a consciência do problema humano universal. O nome principal para essa estratégia de autoengano é o “desenvolvimentismo”, uma ideologia, herdeira do marxismo e do espírito romântico, que vê o empréstimo de ideias estrangeiras – particularmente europeias – como um fenômeno de alienação cultural, na qual a nação perde a capacidade de se alimentar de seus próprios poços, de desenvolver a sua identidade essencial, e de tornar-se sujeito de seu próprio desenvolvimento.
O Brasil, que de início consistia de uma combinação de culturas caboclas e mulatas com um espírito religioso católico de contrarreforma, teve seus laços como a linha principal do progresso das ideias na Europa cortada com a intervenção pombalina, e só deixou essa primeira paralisia cultural com a enxurrada de ideias oriundas da França do período revolucionário e pós-revolucionário, e que eram a epítome do estetismo, a forma madura do espírito do renascimento italiano, embebida de rousseaunismo e refundida com o romantismo alemão. Nessa concepção romântica os seres humanos não estão separados de um bem transcendente, mas apenas alienados de seu próprio bem essencial, reprimido e desencaminhado pela sociedade; e a busca pela felicidade na imanência, e por meio da autenticidade e da autoexpressão, é plenamente normalizada. Essas ideias românticas foram a “cola” que sintetizou uma primeira versão de nossas estruturas culturais, e nossas estruturas espelharam esse estetismo romântico francês. Os franceses românticos nos ensinaram a pensar e construir a nossa própria cultura como estetas kierkegaardianos.
E então, com o século 20 e suas guerras, a força do pensamento francês se enfraquece, nos levando a outra paralisia temporária, e a modernidade brasileira precisa repensar suas estruturas culturais. Incapaz de se libertar do espírito do romantismo, no entanto, com sua obsessão pela originalidade nacional, pela representatividade e pela felicidade temporal; e armada com as ideias marxistas de ideologia, de colonialismo econômico e de alienação cultural, as quais radicalizam ainda mais o expressivismo romântico, nossa modernidade buscará o santo graal do desenvolvimento em um esforço neurótico por originalidade, autenticidade e independência em relação à cultura europeia e, na mesma toada, aos norte-americanos.
Ou seja: fincamos os pés em uma fase específica do desenvolvimento europeu e dali não saímos mais.
Nossa salvação estaria em uma elite acadêmica iluminada, messiânica, nos conduzindo por um êxodo do imperialismo econômico e cultural rumo à utopia imanente de felicidade temporal, através da independência, da autenticidade e da representatividade. E, em todo esse esforço, os desenvolvimentistas sempre manifestaram a “fé implícita na bondade natural do espírito brasileiro”. Essa incredulidade em um bem transcendente e objetivo, para além de nós, convenientemente associada a uma crença em nossa própria bondade essencial, torna a autenticidade e a representatividade o único “bem” – que, no entanto, não pode receber esse nome, pois isso seria “moralismo”.
Fincamos os pés em uma fase específica do desenvolvimento europeu e dali não saímos mais
E o que faltou à nossa intelectualidade moderna? Uma consciência ética, capaz de expor-se à luz do bem absoluto, e de empregar critérios substancialmente éticos, de bem, de mal, de erro e de verdade na compreensão da nação brasileira. Nossa intelectualidade abraçou o mais acabado historicismo, negando à nossa (e a qualquer outra cultura) o acesso a um bem transcendente. É claro que, com esse ponto de partida, o único bem que existe é a autoafirmação, a representatividade e a autenticidade, e o único mal que existe é abrir-se radicalmente a ideias “de fora”, que, não sendo “nossas”, só podem ser ferramentas de imperialismo e controle ideológico.
A ironia da coisa toda é que essa teoria de valor inteira, pressuposta pelo desenvolvimentismo, é ela mesma europeia, um blend de romantismo e marxismo. Mas ela consegue ser pior que outras ideias estrangeiras pelo fato de esconder de nós que são estrangeiras e, no mesmo golpe, nos fechar para outras ideias que poderiam nos libertar de nosso estetismo. Ela é a armadilha perfeita. Na linguagem de Vieira de Mello, um disfarce, que oculta um postulado ético torto e indefensável, um pseudovalor.
E o que é que estamos perdendo, andando em círculos sob o disfarce desenvolvimentista – ou, para todos os efeitos, da nossa ideologia nacional? A capacidade de compreender o fenômeno do estetismo romântico nacional dentro de um sistema de categorias muito maior, e que esclareceria a nossa condição espiritual. E aí residiria a importância de Kierkegaard e da Dinamarca:
“Nesse país, pela primeira vez na história cultural da Europa, se configurou a ideia de uma hostilidade, de uma inimizade irreconciliável entre o espírito que presidiu ao desenvolvimento do ideal renascentista e o espírito que tornou possível a realização da Reforma protestante. O Renascimento italiano com o seu ideal de Beleza autônoma, do Belo pelo Belo, criou um tipo de cultura que não podia deixar de entrar em conflito com a cultura ético-religiosa, inaugurada por Lutero.”
Essa teoria de valor inteira, pressuposta pelo desenvolvimentismo, é ela mesma europeia. Mas ela consegue ser pior que outras ideias estrangeiras pelo fato de esconder de nós que são estrangeiras e, no mesmo golpe, nos fechar para outras ideias que poderiam nos libertar de nosso estetismo
Há muito mais o que dizer sobre as ideias de Mario Vieira de Mello em Desenvolvimento e Cultura – saltamos aqui amplos trechos do seu argumento, e nem mesmo mencionamos algumas de suas ideias cruciais, como sua concepção de liberdade, sua tese sobre as origens da ruptura entre o ético e o estético na filosofia clássica, seu resgate de Sócrates e sua leitura de Dostoievski e de Nietzsche. Mas acima de tudo isso, em minha opinião, destaca-se sua aplicação criativa de Kierkegaard à leitura da realidade brasileira. Penso que ela é da mais alta importância.
Se Vieira de Mello estiver certo, e o Brasil for realmente portador de uma tibieza moral particular, resultante, como o filósofo argumenta, de uma religiosidade frágil e amoral, dois desafios estariam claramente diante de nós: o primeiro, uma ruptura crítica com a síntese estético-cientificista, incorporada na representação nacional construída pela elite intelectual brasileira, que escanteia nossas pobrezas espirituais fornecendo soluções formalistas e macroestruturais; o segundo, o de uma renovação ético-religiosa nacional que, naturalmente, não poderá ser implementada como projeto político top-down, mas apenas crescer organicamente da realidade comunitária e religiosa nacional.
Quanto a isso, é impossível não observar que Vieira de Mello associa essa força ético-religiosa histórica ao protestantismo – e, embora ele não o mencione, à revolução disciplinar que o calvinismo introduziu, associada à piedade protestante. Aqui, de um modo talvez não fortuito, nosso embaixador-filósofo se aproxima da interpretação crítica de Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil, sobre a natureza do Homem Cordial e seu contraste com o espírito do protestantismo, e que já discutimos noutro artigo dessa coluna. Talvez a “boa e honesta revolução” imaginada por Holanda não seja, enfim, uma revolução burguesa, mas um despertamento religioso com impactos de longo prazo nas estruturas da cultura brasileira.
Se o Brasil for realmente portador de uma tibieza moral particular, dois desafios estariam claramente diante de nós: uma ruptura crítica com a síntese estético-cientificista e uma renovação ético-religiosa nacional
Toco agora em nervos sensíveis: é possível que essa revolução ético-religiosa esteja de algum modo insinuada na nova direita? Talvez; mas vejo alguns de seus sinais também em setores da esquerda religiosa. Não creio que seja possível partidarizar o problema, reduzi-lo a jacobinos e girondinos. Até porque uma potência espiritual capaz de modificar o ethos brasileiro não poderia ser algo tão minúsculo, à mercê de caciques políticos. Além disso, não consigo evitar a sensação de que uma parcela importante da explosão religiosa evangélica é, também, um fenômeno estético, ligado à revolução afetiva moderna e à manipulação emocional midiática. Se a expectativa da busca religiosa se reduz a ganhos imanentes e sentimentais, não estamos ainda no terreno de uma revolução ético-religiosa.
Ao mesmo tempo, me parece absolutamente evidente que a antipatia da esquerda secular e da classe criativa, em geral, contra a religião e a moral, seu desprezo pelo combate à corrupção, seus heróis amorais, sua idolatria da classe artística, sua absorção acrítica do liberalismo expressivo moderno, são expressões claras de um entrincheiramento estetista contra o sentido de transcendência e contra a fé em um bem absoluto, para além de nosso engenho político, econômico e artístico. Essa reação estetizante, agressiva como é, é a negação de uma presença positiva; ou da sua negativa.
Talvez, em tempo oportuno, retornemos a essa obra clássica de leitura do Brasil; por hora concluo minha discussão citando a abertura de um velho artigo do colega Martim Vasques da Cunha, escrito há mais de dez anos para o Dicta & Contradicta: “E, de repente, Mario Vieira de Mello sumiu. Caiu no mais completo esquecimento”. Entender esse sumiço e, mais ainda, recuperar o embaixador-filósofo são trabalhos inacabados e inescusáveis.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos