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Há algumas semanas levantamos nessa coluna um questionamento sobre o comercial do Burger King e o avanço do que chamei de “cultura LGBTQIA+”. Certamente não quanto ao direito de pessoas e empresas promoverem seus estilos de vida e de moralidades afetivo-sexuais particulares, mas quanto ao discurso obrigatório, normativo mesmo, do movimento, que pretende criminalizar toda e qualquer objeção moral à cultura LGBTQIA+ como se fosse um tipo de racismo, segundo a ficção inventada pelo STF.
E nessa semana fomos presenteados com um exemplo do que está em jogo. O pastor Jorge Linhares, presidente da Igreja Batista Getsêmani e do Colégio Batista Getsêmani, foi intimado pelo Ministério Público de Minas Gerais a depor sobre a publicação de um vídeo na conta de Instagram do colégio, no dia 28 de junho. A publicação, repostando o vídeo mais antigo, intitulado “O meu Deus nunca erra”, não promovia ódio a homossexuais ou transexuais; apenas mostrava crianças contradizendo ideias e valores ligados às “teorias de gênero”, e argumentando que Deus não erra ao criar meninos e meninas. Ou seja: expressava o ceticismo de pais cristãos sobre esses estilos de vida e a recusa religiosa em relação aos propagadores desses valores. Nada estranho ou fora de lugar para uma escola confessional ou uma igreja.
O assunto é grave. É “o princípio das dores”.
Por que não o pluralismo?
Segundo temos insistido nessa coluna, a visão das liberdades e direitos individuais defendida por expressivistas morais de várias matizes (liberais, socialistas e anarquistas) cria um conflito artificial entre o princípio antidiscriminatório e a liberdade religiosa, por classificar erroneamente essas minorias sexuais com grupos protegidos como grupos étnicos, mulheres ou negros.
O caso é que não há conflito natural entre a crença religiosa e esses grupos, dado que eles não representam componente credal ou comportamental distintivo. Ser negro, mulher, criança, idoso, deficiente ou nordestino não tem a ver com crenças. E a religião, por seu turno, focaliza esses elementos. Já a classe LGBTQIA+ tem todos os traços de uma comunidade de crença e comportamento, sem falar em práticas, linguagens, produção cultural interna, instituições e, acima de tudo, discursos morais alinhados com a revolução sexual do século 20, rejeitada pela maioria das igrejas cristãs. Apesar do estado de negação de alguns militantes, a existência de uma cultura LGBTQIA+ está além de qualquer dúvida.
O expressivismo moral deseja aceitação incondicional, criminalizando a divergência, e discriminação incondicional da posição religiosa
Em tempo: é claro que pessoas LGBTQIA+ não têm suas inclinações afetivo-sexuais e autopercepções identitárias meramente porque “escolheram” ser assim; reconhecemos a constituição multifatorial do desejo, que não há uma ciência psicológica, hoje, que dê conta de “fechar” essa explanação e, muito menos, que a psicologia seja capaz de mudar a orientação sexual de alguém. Não acredito em “cura gay”. Ainda assim, como alego, desejo não é destino, e por si só não determina a identidade de ninguém. Nossa identidade é constituída a partir de nossos mapas valorativos e de nosso sentido de bem supremo. Desejos e mesmo nossa orientação sexual podem ser nossos bens últimos ou apenas uma estação da nossa jornada, dependendo da cosmovisão e da fé moral de cada um.
Mas, se os estilos de vida LGBTQIA+ trazem um componente inelutavelmente moral e envolvem crenças sobre felicidade, autenticidade e liberdade, deveriam ser reconhecidos como crenças morais. Isso explica por que existem em concorrência com o cristianismo e outras religiões tradicionais. Admitir esse fato nos colocaria na direção de uma solução pluralista para o impasse: assim como crenças religiosas praticam uma discriminação moderada entre si, cultivando círculos internos iliberais e exclusivos, mas simultaneamente a tolerância religiosa, a cooperação e até a amizade entre si no espaço público, os estilos de vida LGBTQIA+ (e, na verdade, todos os estilos de vida do liberalismo expressivo) podem se relacionar com comunidades religiosas cristãs na mesma base: divergência, tolerância e pluralismo.
Na prática, no entanto, o expressivismo moral deseja aceitação incondicional, criminalizando a divergência, e discriminação incondicional da posição religiosa. Trata-se de um movimento antipluralista e adolescente na melhor das hipóteses, doente na pior delas, e perigoso em qualquer caso.
Vigiar, punir... e se vingar
Na prática estamos ainda muito distantes do pluralismo. Um exemplo triste é esse imbróglio causado pela campanha do Burger King Brasil. O vídeo promovia a moralidade afetivo-sexual liberal e a cultura LGBTQIA+. Não é preciso dizer que houve ampla reação negativa ao vídeo. Em contrarreação, e sem surpreender ninguém, diferentes OABs e integrantes do Ministério Público se mobilizaram para fiscalizar as reações país afora.
A ação do MPMG manifesta o estado degradado de nossa democracia, com pessoas e agentes públicos que compartilham do imaginário social secularista e da moralidade expressivista presumindo que a condenação dos valores LGBTQIA+ equivale ou implica homotransfobia e ameaça à dignidade e direitos de qualquer pessoa. Além da incompreensão quanto ao espírito do cristianismo, fica evidente uma ruptura social bastante profunda; um desconhecimento das realidades de uma igreja batista relativamente bem conhecida, e um estranhamento diante da visão religiosa de milhões de pessoas. Levado às últimas consequências, esse policiamento das ideias e da liberdade de expressão implicaria criminalizar e amordaçar igrejas, famílias e escolas no campo da moralidade afetivo-sexual.
A ação também nos faz perguntar se a extensão do princípio da liberdade religiosa é corretamente compreendida. Não se trata apenas da liberdade de manter crenças na própria consciência. Trata-se do direito de praticar as crenças, individual e coletivamente, de educar filhos segundo essa crença, e de promover a fé no grande mercado das crenças, como um estilo de vida possível e público, entre outros estilos de vida. É algo holístico. Não é possível, portanto, defender a liberdade de religião ou crença e, ao mesmo tempo, impedir a reprodução dessa crença na sociedade por meios litúrgicos e educacionais.
Enfim, tendo em vista que o vídeo foi publicação em reação ao comercial do Burger King, temos a insólita situação na qual a hamburgueria substitui a escola e a família na função de educador moral. Trata-se de um verdadeiro escândalo. A escola e sua direção caem sob suspeição por discordar da paideia do liberalismo expressivo, imposta por meio da publicidade mercadológica em associação com agentes públicos. A situação a que o MPMG se presta é a de legitimar o mercado e o “capitalismo emocional” como autoridade moral última e uma espécie de “religião civil” contemporânea.
Na prática, isso cria uma verdadeira injustiça no mercado das crenças, com uma forma de crença moral e estilo de vida particular sendo subsidiada pelo Estado. Cria-se uma espécie de monopólio dos valores do liberalismo expressivo em diversos campos, como o campo da educação. A classe LGBTQIA+ sai da injusta posição de minoria excluída para a injusta posição de hegemonia sustentada artificialmente por um aparato governamental.
A situação a que o MPMG se presta é a de legitimar o mercado e o “capitalismo emocional” como autoridade moral última e uma espécie de “religião civil” contemporânea
Considerando que o Colégio Batista Getsêmani faz parte de uma associação de escolas cristãs, a Aecep, que compartilha das mesmas perspectivas sobre moralidade afetivo-sexual, identidade e religião, vê-se com nitidez que grave risco pesa sobre o conjunto da atividade educacional cristã, com repercussões para outras redes de escolas evangélicas e católicas. Um eventual erro do MPMG pode gerar um estado de violação do artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos Humanos nunca visto na história recente do país. E muito mais grave do que perpetrações feitas por indivíduos isolados, já que, no caso, empregaria a força do Estado.
Finalmente, não poderíamos deixar de mencionar o espírito vingativo que se espraia pelas mídias sociais. Alguns perfis anônimos, mas outros tantos devidamente públicos, anunciam sem qualquer pejo que os cristãos e as igrejas, alegadamente responsáveis por todo o sofrimento LGBTQIA+, merecem mesmo receber o troco e “sentir na própria pele”. Às vezes citam a mesma narrativa fantasiosa de intensa perseguição a pessoas homoafetivas, usando números inflados, segundo estudo já discutido em um ótimo artigo aqui na Gazeta. A consideração por justiça e direitos humanos passa longe. Certamente a vingança não é o interesse do MPMG, mesmo que este se mostre bastante confuso sobre a liberdade religiosa. Mas o órgão deve saber ler o momento e os motivos da pressão cultural que vem sofrendo.
Fiscalizar os fiscais
A assessoria de imprensa e a assessoria jurídica da Anajure emitiram uma nota questionando a notificação do MPMG:
“Importante frisar que o posicionamento adotado por uma escola confessional em oposição às teorias de gênero está albergado pela liberdade de expressão e de consciência e crença, direitos que possibilitam a transmissão de ensino que esteja em conformidade com os valores que norteiam a instituição. Assim, a princípio, causa-nos estranheza a notificação encaminhada pelo Ministério Público, especialmente porque o vídeo em questão, ainda que expresse discordância quanto às teorias de gênero, não estimula qualquer conduta discriminatória.”
Não é possível defender a liberdade de religião ou crença e, ao mesmo tempo, impedir a reprodução dessa crença na sociedade por meios litúrgicos e educacionais
Na próxima segunda feira, 2 de agosto, às 15 horas, o pastor Jorge Linhares, presidente da Igreja Batista Getsêmani e representante legal do Colégio Batista Getsêmani, comparecerá em audiência on-line na qualidade de investigado, sobre “eventual discriminação de identidade de gênero”. A Anajure está em contato com o colégio e monitorando o caso. Mas é indispensável que toda a sociedade civil fiscalize a atuação do MPMG no tocante às liberdades de expressão, de consciência, e de religião ou crença.
Não só a democracia, mas todas as liberdades modernas morrem no escuro, incluindo a primeira delas: a liberdade religiosa.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos