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“Multiplicação de templos no Brasil” é resultado de liberdade religiosa e trabalho duro
| Foto: JF/Pixabay

Causou-me preocupação o teor da matéria “O que explica multiplicação de templos evangélicos no Brasil”, veiculada pela BBC Brasil na última quarta-feira. É claro que semelhante assunto é do maior interesse de todos os estudiosos da religião, dos próprios evangélicos e da sociedade como um todo. Mas sente-se um aroma pornográfico no ar.

O mistério

O ponto da matéria é a nova abordagem dos dados a respeito do crescimento evangélico, que estaria em torno de 30% segundo os dados do Datafolha para 2022 – os mais recentes, por causa do atraso nos resultados do IBGE. Números tão imensos balançam o barco da política nacional, tornando os evangélicos um grupo altamente visado – e, agora, cada vez mais fiscalizado por cientistas políticos, políticos, estrategistas e, naturalmente, pela elite cultural nacional.

Mas não vamos passar o carro na frente dos bois: primeiro, a novidade científica. O pesquisador Victor Augusto Araújo Silva, que vem realizando um trabalho do mais alto nível no levantamento e interpretação do crescimento evangélico no país, propôs uma abordagem inovadora: recorrer aos dados da Receita Federal para rastrear o padrão de crescimento. Victor Silva se pôs a investigar as taxas de abertura de templos no país, empregando dados do Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ) ao longo de um período de 100 anos, o que revelou um crescimento dramático: de um primeiro templo em 1922 a 110 mil templos em 2019. Apenas de 1990 a 2019 o aumento foi de 543%.

Os evangélicos se tornaram um grupo altamente visado – e, agora, cada vez mais fiscalizado por cientistas políticos, políticos, estrategistas e, naturalmente, pela elite cultural nacional

Pensou-se, por um tempo, que o crescimento seria capitaneado pelas grandes igrejas neopentecostais e as novas “megaigrejas”, mas a pesquisa recente mostrou que as pequenas igrejas pentecostais e uma pletora de novas igrejas sem denominação determinada puxaram o processo. Em suma, não há um planejamento central nesse processo.

A verdade “nua”

Pois bem: qual seria o caminho para explicar o crescimento? Segundo Victor Silva, as explicações principais, ao menos de 2000 para cá, seriam basicamente jurídicas e econômicas: primeiro, o presidente Lula teria facilitado a abertura de organizações religiosas e partidos políticos como pessoas jurídicas de direito privado. Vale citar o texto do parágrafo 1.º da Lei 10.825/2003:

§ 1.º São livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento.”

Lula, por sinal, andou dizendo por aí que foi ele – e o PT – quem “criou” a liberdade religiosa no Brasil, mas ele apenas sancionou a lei, derivada de um projeto de lei da autoria de Paulo Gouveia, à época deputado do PL. Ademais, o que a lei faz é garantir de modo explícito a liberdade religiosa exigida pela Constituição de 1988 e pelos tratados internacionais de direitos humanos que o Brasil subscreve.

A outra explicação de Victor Silva é mais explicitamente econômica: o ciclo de crescimento econômico tornou a abertura de templos um bom negócio, ou, segundo a pesquisadora Nina Rosas, um “modelo de negócio”. E dali a reportagem já salta para uma contribuição absolutamente oportuna do bispo Antônio Esteves, de que no Brasil qualquer pessoa pode abrir templos, e algumas pessoas se aproveitam disso em benefício próprio. Ou seja, Lula teria, inadvertidamente, aberto um nicho de exploração econômica, que uma série de fatores, como o êxodo rural e a ausência do Estado, ajudaram a alimentar.

Mas o artigo não é tão unilateral; coletando as opiniões de religiosos e especialistas, ele menciona corretamente a capacidade das igrejas de se adaptar ao contexto, de trazer organização social e moral para o entorno dos indivíduos, especialmente em contextos de vulnerabilidade, fornecendo uma rede de apoio, a atratividade dos cultos etc. Mas, ao redor de tudo, a “base material” do fenômeno transparece indiscutivelmente: a facilidade de abertura dos templos e a retroalimentação econômica.

O artigo fecha, por fim, citando a pastora progressista Romi Bencke, e aqui uma citação do artigo da BBC se faz necessária:

“Bencke defende que seria necessário haver no país uma maior fiscalização por parte do Estado no trâmite de abertura de igrejas e templos religiosos. ‘Deveria haver ao menos alguns requisitos para abertura de novos templos no país, como averiguação do número mínimo de fiéis, finalidade de abertura da igreja, com o objetivo de evitar que a imagem do movimento evangélico seja manchada por uma minoria’, diz a pastora.’”

Algum grau de fiscalização, para filtrar mercadores da religião, tem certa plausibilidade. Mas, como sempre ou quase sempre no Brasil, a enorme e sempre muito visível mão do Estado, uma vez permitida, levaria certamente a uma fiscalização ideológica

E assim se encerra o artigo da BBC: com uma proposta de fiscalização e controle estatal da abertura de templos.

Medo ou gula?

Não posso dizer que discordo totalmente da pastora. Algum grau de fiscalização, para filtrar mercadores da religião, tem certa plausibilidade. Mas, como sempre ou quase sempre no Brasil, a enorme e sempre muito visível mão do Estado, uma vez permitida, levaria certamente a uma fiscalização ideológica, e por uma razão muito simples, uma verdade elementar desse nosso mundo precário: tudo o que o poder puder fazer, ele fará, mais cedo ou mais tarde. É por isso que ele tem de ser limitado.

O campo religioso não pode correr o risco de ser artificialmente regulamentado em um Estado colonizado pelo laicismo como é o nosso, e já sabemos o que aconteceria se isso fosse permitido: para garantir a “diversidade” e a “igualdade”, as religiões minoritárias receberiam incentivos especiais, em vez de sobreviver por seus próprios méritos internos, e as religiões politicamente inconvenientes seriam obstaculizadas.

Cabe ao Estado promover a tolerância e a liberdade religiosa; cabe até mesmo promover a literacia religiosa, e facilitar o diálogo e a cooperação entre religiões. Mas não cabe ao Estado regular processos de crescimento ou decrescimento, nem praticar qualquer interferência no proselitismo religioso – coisa que, como sabemos e como já denunciei nessa coluna, parte da esquerda nacional fará se tiver a oportunidade. E, se não puder fazê-lo, tentará ao menos arrancar das igrejas uma casquinha fiscal.

Os evangélicos sabem há muito tempo que a abertura de novas congregações religiosas – o que é chamado, na linguagem da missiologia evangélica, de “plantação de igrejas” – é o melhor método de evangelização. Novas igrejas significam mais gente cantando músicas cristãs, mais capilaridade no cuidado espiritual das pessoas, mais colaboradores leigos, mais espaços de leitura das Escrituras, mais formação de liderança, mais serviços diaconais. Trata-se de uma dimensão inerente à espiritualidade cristã protestante e evangélica, e que lhe traz um grande poder social. Ademais, as igrejas não fazem isso para arrastar pessoas para militâncias politiqueiras, mas como verdadeiros espaços de ajuda e vida comunitária, que o mundo “laico” não consegue emular de jeito nenhum. Nesse sentido, a “descoberta” de que a abertura de templos está por trás do crescimento evangélico não descobriu nada.

Ou melhor: descobriu que a alma tem corpo. É evidente que uma fé vibrante e uma cultura estabelecida teriam necessariamente uma dimensão “material” – institucional, financeira e sociológica. De resto, a sociologia brasileira não inova muito: sua explicação do comportamento religioso insiste na descrição fisiológica e anatômica da coisa, como um médico meio psicopata examinando o ato sexual dos amantes. Afinal, coito é coito. De modo que o que explica a multiplicação de templos evangélicos no Brasil é... qualquer coisa, menos a religião.

Some-se a isso o voyeurismo jornalístico, sempre à procura de “fatos brutos”, teremos o tedioso feijão-com-arroz da cobertura dos assuntos religiosos nacionais: quem-fez-o-quê-com-quem, muito ruído político e pouca compreensão.

Os evangélicos sabem há muito tempo que a abertura de novas congregações religiosas – o que é chamado, na linguagem da missiologia evangélica, de “plantação de igrejas” – é o melhor método de evangelização

A utilidade dessas informações para os círculos educados e laicos da nossa elite cultural nacional é basicamente o cálculo político: medo e gula. Para muitos, trata-se de descobrir por qual buraco o rato entrou. Não posso afirmar que essa tenha sido a intenção consciente do autor do artigo da BBC, mas a conclusão da matéria não ajuda. Ademais, não é difícil imaginar progressistas gulosos, preocupadíssimos com o “problema evangélico”, trabalhando para endurecer as regras de abertura de templos e minimizar a tragédia.

Reações

A problematização do artigo soou ambígua na percepção de vários líderes evangélicos, e tomei a iniciativa de coletar algumas impressões. O pastor Sérgio Queiroz, fundador da Igreja Cidade Viva em João Pessoa, procurador da Fazenda Nacional e ex-secretário especial do Ministério da Cidadania, se expressa como religioso e como estudioso do Direito:

“A liberdade religiosa implica não só a expressão privada, mas também pública da fé. A criação de requisitos outros para se qualificar e aprovar a abertura de um templo religioso de qualquer que seja a confissão é uma interferência perigosa do estado em uma esfera da vida humana onde não cabe a imposição de regras para a sua existência.”

Caminhando na seara propriamente legal, juristas ligados à Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure) notaram falhas importantes na reportagem. A imunidade a templos não foi estabelecida na Constituição de 1988, como diz a matéria, mas já era prevista no artigo 31 da Constituição de 1946. Quanto à sugestão de regulações pela pastora Romi Bencke, elas criariam claros embaraços ao funcionamento de organizações religiosas, e especialmente de expressões religiosas menos institucionalizadas, contradizendo o artigo 19 da Constituição e o artigo 44 do Código Civil. Esse risco não poderia ter sido ignorado na matéria, que parece juridicamente desinformada sobre o direito religioso brasileiro.

Sidney Costa, pastor titular da Igreja Batista Memorial de Alphaville, uma das maiores na cidade de São Paulo, e presidente da ONG Foco, apontou a qualidade materialista da análise:

“Analisar e sugerir políticas para esse grupo a partir do olhar político e econômico não me parece ser um caminho de respeito e equidade para o que está acontecendo. O maior benefício que o crescimento dos evangélicos traz para uma pessoa é a mudança de perspectiva de vida e sonhos com futuro que ela pode ter. Isso deveria ser apoiado e valorizado em todas as esferas da liderança da nação.”

E o que diriam pastores evangélicos diretamente envolvidos com a “abertura de templos”? Há várias redes de fomento à plantação de igrejas, como a Acts29 Network, uma rede global que atua no Brasil. O pastor Cristiano Gaspar, um dos líderes da rede no país, foi taxativo:

“Qualquer tentativa do governo de regular o surgimento de novas igrejas ameaça seriamente a liberdade religiosa, um princípio inalienável essencial em nossa democracia. Esta ação poderia não só sufocar a diversidade espiritual que caracteriza a nossa nação, mas também pode suprimir a expressão da fé individual e comunitária. As igrejas desempenham um papel vital no Brasil, servindo não apenas como casas de adoração, mas também como centros de comunidade e solidariedade. Elas fortalecem nossos laços sociais, proporcionam apoio material e espiritual aos necessitados e cultivam em nossos corações a compaixão, o amor e a ética. Restringir o florescimento desses espaços sagrados é, portanto, não apenas uma violação da liberdade religiosa, mas uma afronta ao espírito de união e fraternidade que permeia a alma brasileira.”

O ponto do pastor Cristiano, sobre pluralismo religioso e a contribuição social das igrejas, está presente no artigo da BBC, mas como um ponto secundário; a narrativa principal é a do nicho de negócios.

Não é difícil imaginar progressistas gulosos, preocupadíssimos com o “problema evangélico”, trabalhando para endurecer as regras de abertura de templos e minimizar a tragédia

O bispo Miguel Uchoa, primaz da Igreja Anglicana no Brasil e líder da diocese anglicana de Recife, expressa preocupações diametralmente opostas às dos progressistas: para ele, o que temos de igrejas ainda é pouco:

“Segundo o movimento ‘Finishing the task’, que procura cumprir a Grande Comissão (Mt 28,18-19), a meta é que tenhamos uma igreja para cada mil habitantes. Assim, as 110 mil de 2019 precisariam dobrar até 2033, ano em que completaremos 2 mil anos da Grande Comissão.”

No que depender dele, os pastores deveriam trabalhar ainda mais duro. E, quanto à possibilidade de interferência estatal, o religioso é inequívoco: “entregar ao Estado o direito de regular isso é seguir por um caminho tenebroso”.

O que explica a multiplicação de templos evangélicos no Brasil? Ora, a liberdade religiosa, que não é mérito nem erro do Estado brasileiro. Ou melhor: é o trabalho de milhares de pastores e de milhões de evangélicos leigos que amam e vivem a sua fé sob a proteção das liberdades fundamentais.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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