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Guilherme de Carvalho

Guilherme de Carvalho

Opinião

Não há sabedoria sem cultura compartilhada

A juventude tem cérebros rápidos e informação; mas circula espremida em um universo diminuto, um pequeno buraco-negro narcisista. (Foto: )

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O psicólogo alemão Paul Baltes (1939-2006) foi um dos grandes nomes da teoria do desenvolvimento humano, da psicologia do envelhecimento e de um tema que nos interessa de modo especial: estudo da sabedoria.

“Com exceção de trabalhos sobre o sentido comum da sabedoria, os esforços empíricos por psicólogos para estudar a sabedoria tem sido extremamente raros.”- Paul Baltes.

Enquanto foi diretor do Centro de Psicologia Lifespan no Instituto Max Planck para o Desenvolvimento Humano, em Berlim, o Dr. Baltes trouxe contribuições revolucionárias para a formalização científica da ideia de sabedoria como uma virtude e um bem distinto, com um processo definido de constituição ao longo da vida humana. No linguajar técnico, ele pesquisou a “ontogenia” da sabedoria: o modo como ela nasce e se forma.

O paradigma de Berlim

Baltes chegou a uma definição básica de sabedoria como “um sistema de expertise cognitivo a respeito da pragmática fundamental da vida, permitindo insight excepcional, julgamento e conselho sobre assuntos complexos e incertos da condição humana”. Parece difícil, mas o ponto de Baltes foi que a sabedoria é um conhecimento bastante prático e conectado às demandas reais da vida, distinto da imaginação ou do mero cálculo lógico.

Baltes ajudou a construir o que foi chamado de “Paradigma de Sabedoria de Berlim, envolvendo uma família de cinco critérios: conhecimento factual, e conhecimento estratégico sobre como a vida funciona, temperados por um reconhecimento dos contextos da vida e das mudanças sociais, das incertezas da vida, e da relatividade e correlação entre valores e propósitos de vida. Trata-se de um tipo de habilidade que possibilita lidar com o real, desde os limites biológicos até as possibilidades da cultura, e de forma articulada com o self:

“Essas pragmáticas fundamentais também incorporam conhecimento sobre o self, sobre as próprias forças e fraquezas, e sobre outras pessoas e a sociedade, mas também sobre estratégias de gerenciamento destinadas a otimizar a razão ganho/perda em relação ao desenvolvimento humano e a integrar passado, presente e futuro produtivamente.”

Baltes já foi criticado por, aparentemente, reduzir a sabedoria a um conjunto de “rotinas” ou “heurísticas” cognitivas estabelecidas para resolver problemas estereotipados, e que supostamente “rodariam” com eficiência se adequadamente programadas sem a necessidade de uma mente sábia por trás delas. Como se a sabedoria se reduzisse a um sistema ou máquina multitarefa, uma combinação de “expertises” sem centro.

Mas na síntese acima fica bastante claro que as “pragmáticas fundamentais”, esses expertises cognitivos que habilitam a pessoa a mediar ideias e relacionamentos, planejar com sucesso, estabelecer julgamentos de prioridades e análises de custo/benefício, etc, tem clara relação com a autocompreensão da pessoa; com um Self que entende o mundo e a si mesmo.

De certo modo, então, sabedoria envolve orientar-se na vida e no mundo; reconhecer as próprias forças e fraquezas, posicionar-se no tempo e no espaço social e histórico, assumir função na sociedade. É claro que sem autorreflexão não é realmente possível obter sabedoria e incorporar suas heurísticas.

A sabedoria, então, reside no self, na pessoa que ganha hábitos, virtudes e insights – e a psicologia da sabedoria de Baltes é compatível com uma visão não naturalista e personalista do ser humano. Mas ao mesmo tempo, a sabedoria é a respeito do que está além do self – a realidade do mundo; é sobre a presença do self no mundo.

O “hardware" e o software da inteligência

No âmbito de seus estudos sobre envelhecimento, Baltes postulou uma distinção entre dois modos de conhecimento: o mecânico e o pragmático. O mecânico diria respeito a habilidades cognitivas de base biológica, como a memória, a percepção, processos de “discriminação, categorização e coordenação”. Aqui se encontram, por exemplo, a capacidade para o cálculo matemático, para memorização de palavras e para “pensar rápido”.

O modo pragmático seria o expertise ligado à compreensão do mundo, envolvendo leitura de contexto, informação qualificada, equacionamento e valores, etc – habilidades de base cultural. É o saber de si, da vida, do mundo, das pessoas, construído aos poucos na caminhada da existência. Baltes ilustra a diferença com a metáfora do computador: a cognição mecânica seria o “hardware” psicobiológico, e a pragmática o “software” experiencial e cultural.

Baltes queria investigar a evolução dessas formas de cognição ao longo da vida e checar como pessoas idosas performam em testes controlados de ambas as modalidades cognitivas.

Os dados contaram uma história muitíssimo interessante. Via de regra, o avanço na idade significava perda de cognição mecânica. Nada além do esperado: o hardware tende a envelhecer e perder capacidades. A memória, por exemplo, é consistentemente melhor para jovens que para velhos, mesmo que sejam velhos cultos e estudados. Jovem pensa mais rápido.

Para um grupo de casos, no entanto, de pessoas expostas a contextos e experiências relevantes como conselheiros pastorais e psicólogos clínicos, o aumento da idade significava aumento de cognição pragmática. Em outras palavras, pessoas mais velhas mostraram nitidamente maior probabilidade de serem sábias. Era como se o software fosse aperfeiçoado e rodasse melhor do que a versão básica instalada no “hardware novo” dos jovens!

Raízes culturais da sabedoria

Que pessoas mais velhas têm maior possibilidade de se mostrar sábias parece uma trivialidade. Mas a pesquisa de Baltes mostrou que o aprendizado na velhice é um investimento válido, e que a troca e a introjeção de valores culturais fornece a pessoas idosas capacidades excepcionais e superiores à mera inteligência analítica.

Esse é um ponto muito importante: a sabedoria poderia ser, simultaneamente, uma posse individual e coletiva? Certamente. Ela residiria na consciência da pessoa, mas também num sistema civilizacional e cultural que oportuniza as experiências, perspectivas, valores e aprendizados que levam a uma cognição pragmática elevada; ou no ponto de encontro dos dois. A sabedoria seria um fenômeno singular e raro, emergindo na interação vital entre desenvolvimento pessoal e elementos disponibilizados por um sistema civilizacional. Suas raízes estariam na cultura e na civilização.

“O estudo da sabedoria envolve a busca por um mundo melhor” – Paul Baltes

Mas novamente a ciência da sabedoria nos faz levantar aquela questão momentosa, quanto à qualidade da formação humana em uma cultura WEIRD, voltada para uma ética do indivíduo, atomizada e refratária ao sentido de bem comum. O que ocorre em tal sistema de cultura, que temos chamado em nossa coluna de “liberalismo terapêutico”, é que valores e experiências de integração comunitária, intergeracional e transtradicional tendem a ser desprezados.

Isso fica muito claro na atitude contemporânea em relação à religião, à família, às autoridades escolares, à imprensa, às culturas locais e até mesmo aos grandes ícones históricos, como se vê no novo iconoclasmo contra estátuas de personagens históricos.

Esse pathos automutilatório da cultura liberal contemporânea, tanto progressista quanto libertária, é tão pronunciado que Patrick Deenen a chamou em Why Liberalism Failed de “anticultura”: uma permanente e incansável negação e dissolução de qualquer ordem de práticas, valores e instituições universais em nome do multiculturalismo e da autonomia do indivíduo. Essa pathos desengaja e aliena a pessoa das realidades da vida que podem torna-la sábia.

Em nosso último artigo mencionamos os estudos de Igor Grossmann mostrando que, em culturas sociocêntricas, os jovens obtêm índices de sabedoria mais próximos de seus idosos do que em culturas individualistas como os EUA. Sugerimos, a partir de uma interpretação da coisa por David Robson em The Intelligence Trap, que culturas WEIRD produziriam uma defasagem cognitiva, no sentido de estimular o pensamento computacional, por um lado, desprezando as dimensões contextuais da racionalidade, por outro, como as relações sociais, a moralidade, a experiência de vida, etc.

Na linguagem de G. K. Chesterton: lunáticos, que pensam de forma rápida e logicamente consistente, mas a partir de um círculo de experiência humana muito pobre e apequenado. Grossmann chama esses conhecimentos mais amplos de “metacognitivos”, enquanto Baltes os chama de “cognição pragmática”. Mas o ponto é razoavelmente claro: o tamanho do universo de sentido e de experiências dentro dos quais a inteligência se move.

A juventude contemporânea tem cérebros rápidos e informação abundante; mas circula espremida em um universo diminuto, um pequeno buraco-negro narcisista: o universo do liberalismo terapêutico moderno. É urgente arrancá-la de lá.

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