“Se... assumirmos (uma definição) segundo a qual um povo é uma assembleia de seres razoáveis unidos por comum acordo quanto aos objetos de seu amor, seguir-se-á que, a fim de descobrirmos o caráter de qualquer povo, teremos apenas que observar o que eles amam.” (Agostinho de Hipona, A Cidade de Deus)
O teólogo e filósofo reformado James K. A. Smith produziu recentemente um best-seller sobre ética e espiritualidade intitulado Você é o que você ama, adotando uma compreensão consistentemente agostiniana sobre a centralidade dos afetos e dos hábitos para o progresso da alma. E se adotarmos essa mesma perspectiva para compreender a ordem social e o progresso civilizatório como um todo?
Haveria muitíssimo o que dizer a respeito, mas eu citaria, entre as mais importantes, que nossos amores governam as nossas sociedades por meio de nossas noções de bem comum. E a compreensão do bem comum é uma condição e uma etapa incontornável para qualquer projeto cultural e político.
Nosso sistema político, com seu liberalismo procedimental, nega-se a falar claramente sobre os bens que preenchem a vida comunitária
No últimos dois artigos desta coluna falamos sobre o emprego de recursos de pesquisa social e da moderna economia comportamental para tirar do papel o princípio da fraternidade; e mencionei especificamente que precisamos revisar métodos e fins em todos os âmbitos de liderança, da família ao governo, passando pelas igrejas, escolas, mercado, universidade, e onde mais houver círculos de solidariedade.
Na coluna de hoje vamos aplicar a nossa lupa à questão dos fins, ou dos propósitos de nossa atividade coletiva: não apenas “você é o que você ama”, mas nós somos o que nós amamos.
A música e o ruído
A afirmação soa bem, mas não é autoevidente. Nossas sociedades plurais e democráticas nos dão a impressão de uma cacofonia irreconciliável de concepções de felicidade e de escolhas pessoais. Mas penso que, sob esse ruído de disparidades, operamos ainda a partir de acordos tácitos a respeito do que é importante e do que tem valor. Esses acordos são os acordes harmônicos da vida social. O problema é que o ruído individualista dificulta o reconhecimento desses acordos/acordes, e mais: os coloca em risco.
Uma das fontes de ruído é certa visão bidimensional da sociedade, como se fosse constituída apenas de indivíduos e coletividade total, usualmente representada no Estado – assunto a que já nos referimos nessa coluna, discutindo as críticas de Robert Nisbet e Patrick Deneen ao modelo de Estado contratual liberal. Assim, no direito internacional dos Direitos Humanos, é comum o pensamento polarizado entre “Estado soberano” e “liberdade individual”. Esse dualismo resulta da história do desenvolvimento do moderno sistema de Estado-nação e do pensamento liberal sobre os direitos individuais, como observa o filósofo Manfred Svensson, da Universidade dos Andes, em sua discussão sobre ordopluralismo:
Em questão está a dificuldade que adquirimos para conceber obrigações que surgem da família, da raça, da religião, da nação, obrigações que não podem racionalmente ser reduzidas a deveres universais nem tampouco a deveres adquiridos contratualmente.
Em outros termos: nosso sistema político, com seu liberalismo procedimental, nega-se a falar claramente sobre os bens que preenchem a vida comunitária, e substitui esse diálogo por discussões a respeito da emancipação de indivíduos, e da efetivação dos direitos necessários para que eles vivam suas vidas como quiserem. Ora, isso é evidentemente muito pouco, se desejamos viver em comunidade.
Também já defendemos nessa coluna que a linguagem da fraternidade precisa dispor de uma riqueza maior de categorias. Quais são os modos pelos quais as pessoas se solidarizam e atuam em conjunto? Existem regras e estruturas objetivas para isso? Poderíamos falar, nesse sentido, de uma arquitetônica social, ou de uma “música das esferas”... sociais?
Penso que sim; e – previsivelmente, para os que me conhecem – entendo que o pulo do gato está em uma concepção plural da sociedade civil. As ideias de subsidiariedade, de esferas de soberania, ou do que chamamos de ordopluralismo, em geral, sustentam que a sociedade é constituída, em sua ecologia interna, de uma rede de associações naturais ou voluntárias nas quais os bens humanos são reconhecidos e cultivados como fins coletivos, e a vida humana tem o seu curso. É a partir desses bens que distinguimos a música social do ruído individualista.
Daí se segue uma compreensão da sociedade como uma rede policêntrica de comunidades de propósito com responsabilidades compartilhadas.
Os “objetos comuns de amor”
O teólogo moral britânico Oliver O’Donovan tomou essa expressão emprestada de Santo Agostinho (a mesma em nossa epígrafe) para dar título a seu livro de 2009, no qual defende que os agentes humanos se unem em comunidades de ação e experiência conjunta, sustentando isso ao longo do tempo, identificando e cuidando juntos de objetos comuns de amor. As coisas que amamos, e a nossa articulação e sincronia ao redor delas, é o que cria comunidades.
Esse é um traço interessante das mais diversas formas de associação humana: famílias, partidos, igrejas, universidades, coletivos artísticos, associações de bairro, sociedades profissionais etc.: todas elas têm centros de gravidade que nos fazem orbitar a seu redor. Esses centros de gravidade são bens humanos reconhecidos coletivamente, que podem ser o afeto, os filhos, a fé e as tradições religiosas, a ciência, a poesia, o meio ambiente, tradições culinárias, a educação de crianças, uma profissão, e assim por diante. Poderíamos também dizer que esses bens amados por suas comunidades correspondentes constituem os fins dessas comunidades; elas existem por causa deles. Assim, comunidades de amor são também comunidades de propósito.
Policentrismo
Além dessa distinção “horizontal”, entre tipos de associação lidando com diferentes bens humanos, há uma distinção “vertical”, de níveis de responsabilidade. Essa tradição, das “ordens graduais” de poder, tem uma das suas fontes em Tomás de Aquino, encontrando seu caminho modernamente através da encíclica Rerum Novarum, do papa Leão XIII (1891). Outra fonte é Johannes Althusius, pensador político do século 16, e um dos precursores do federalismo moderno. As ideias de Althusius foram renovadas pelo estadista holandês Abraham Kuyper, que também escreveu em 1891 sobre o enfrentamento das questões sociais por meio de uma visão pluralista e simbiótica da sociedade.
Segundo as visões ordopluralistas, tais esferas ou campos da vida social têm, por força de suas capacidades, artes e técnicas de cultivo de seus bens internos, uma autonomia própria, uma soberania particular. São espaços subsidiários, com autoridades subsidiárias. Essa soberania garante, por exemplo, o direito dos pais de orientar seus filhos moralmente, como estabelece o Artigo 12, inciso 4 da Convenção Americana de Direitos Humanos, ou a soberania do campo das artes contra o controle estatal, ou a autonomia das universidades e a liberdade de cátedra dos professores, ou a autonomia relativa dos estados no sistema federativo.
A função do Estado seria suplementar e regulatória, medida pela capacidade de estimular e preservar a vitalidade da sociedade civil
As diversas formas de associação comunitária, ou esferas de vida social, que se distribuem entre o indivíduo e o Estado compondo a “sociedade civil” (tendo em mente o insight hegeliano sobre o assunto), não devem ser vistas como submetidas nem ao Estado, nem ao indivíduo, mas como sistemas de ordem espontânea, que emergem a partir de necessidades humanas naturais e de práticas otimizadas e reconhecidamente eficientes de cultivo de bens humanos distintos, como o amor conjugal e familiar, a criação de filhos, a arte, a ciência, o comércio e o livre empreendimento. A contribuição do cientista e filósofo Michael Polanyi a esse respeito em A Lógica da Liberdade é muito fértil:
Quando a ordem é conseguida entre seres humanos deixando que eles interajam uns com os outros por iniciativa própria – sujeitos apenas às leis que se aplicam uniformemente a todos eles – temos um sistema de ordem espontânea na sociedade. Podemos, então, dizer que os esforços desses indivíduos são coordenados pelo exercício da iniciativa de cada um, e que essa autocoordenação justifica sua liberdade em termos públicos.
A sociedade civil seria, portanto, uma rede simbiótica de comunidades e campos, com responsabilidades compartilhadas, com uma estrutura que Polanyi chama de policêntrica. Nessa perspectiva, o avanço civilizatório seria marcado por um processo de diversificação, integração e complexificação, na qual as autoridades subsidiárias nos vários campos e níveis de governança aprendessem a se coordenar respeitando limites e competências e contribuindo para o bem comum. Quanto ao Estado, sua função seria suplementar e regulatória, medida pela capacidade de estimular e preservar a vitalidade da sociedade civil.
Evidentemente, uma sociedade rica do ponto de vista simbiótico, plural verticalmente e horizontalmente, é uma sociedade democrática e rica de capitais sociais e morais. O princípio da subsidiariedade e das responsabilidades compartilhadas é o hábito de governança com a maior capacidade de manifestar e cultivar capitais sociais e morais, e de efetivar o princípio da fraternidade sem violentar a liberdade.
Essa lógica social se contrapõe tanto a processos absolutamente horizontalizados de “democracia direta”, que não respeitam a sabedoria interna dos campos subsidiários, quanto a processos absolutamente centralizados, sem delegação, cooperação e fertilidade. Tal lógica implica uma política de autogovernança e responsabilidades compartilhadas.
Responsabilidades compartilhadas
A expressão é emprestada do reverendo Davi Charles Gomes, ex-chanceler do Mackenzie e presidente da Aliança Reformada Mundial, que a emprega para se referir ao princípio das esferas de soberania, de Abraham Kuyper. Em minha própria definição, “responsabilidades compartilhadas” significa reconhecer que, de modos diferentes, todos têm autoridade para cuidar de algo que importa a todos; e todos são responsáveis diante de todos.
Consideremos, por exemplo, a estrutura do Estado brasileiro: governo federal, estados, municípios e órgãos diversos do Estado em diferentes níveis devem buscar sincronia, não no sentido de substituir, mas de facilitar processos subsidiários, sendo que, na medida do possível, políticas públicas deveriam também ocorrer segundo a lógica das responsabilidades compartilhadas, de modo que os méritos de suas ações resultem da mente cooperativista. Atingir o sucesso na integração simbiótica pelo bem comum é o melhor prêmio histórico que um governo pode receber.
Consideremos, ainda, a relação do Estado com a sociedade como um todo: o Estado deve buscar estimular os diversos campos sociais, comunidades e instituições, de modo que eles desenvolvam estruturas de autogoverno. Cidadãos precisam aprender a consciência cívica e a proatividade, e cultivar a prática do associativismo para a solução de seus problemas, em vez de esperar tudo de governos centrais. Segundo a lógica do paternalismo libertário (de Thaler e Sunstein, que vimos semana passada), significa prover incentivos e nudges no sentido de disparar e ajudar a sustentar tais processos autônomos e, na maior medida possível, autorregulados de solução de problemas.
O Estado nunca substituirá um marido e um pai dentro de casa
Ou seja, cada gesto da autoridade política deve ser calculado de modo a não provocar, mesmo que involuntariamente, o risco de substituir um processo viável de autogoverno. Eu poderia dar um exemplo muito prático aqui: o quanto políticas estatais substituíram o papel do homem e da pequena comunidade nas famílias negras dos Estados Unidos e contribuíram de modos diversos para o aumento da pobreza entre negros? Como se sabe, esse problema foi fartamente examinado pelo economista Thomas Sowell, e ilustra o perigo de não compartilhar responsabilidades.
O que ocorre é que, para cada tipo de bem humano, há a comunidade apropriada para cuidar dele. E diferentes formas do mesmo bem demandarão diferentes formas de articulação comunitária. Em nossas sociedades complexas precisamos de diversos círculos comunitários. Quando roubamos da família o direito e o dever de praticar a forma de cuidado que lhe é própria, criamos novos problemas sociais e novas formas de desamor – vide o aumento histórico dos índices de criminalidade entre negros dos EUA, acompanhando diversas políticas sociais que supostamente elevariam sua dignidade e sua qualidade de vida. O fato é que o Estado nunca substituirá um marido e um pai dentro de casa.
O mesmo se aplicaria a qualquer esfera de liderança: sempre que se instituírem sistemas de controle, é essencial cultivar intencionalmente a virtude e a confiança mútua, de modo a desonerar as redundâncias de acompanhamento e fiscalização e promover o máximo possível de autogestão. Delegar é importante; fomentar a criatividade e a responsabilidade é importante.
Quando roubamos da família o direito e o dever de praticar a forma de cuidado que lhe é própria, criamos novos problemas sociais e novas formas de desamor
Naturalmente isso introduz a pergunta de muitos líderes, seja no setor público, ou privado, ou na religião: posso confiar nessas pessoas? Esse é o próprio âmago de nosso desafio pedagógico, e mesmo que admitamos ser difícil construir uma comunidade de pessoas confiáveis, é preciso admitir também que, se abrirmos mão disso, abrimos mão de investir na comunidade. Não há outro caminho.
Certamente não podemos abolir a prestação de contas, a transparência e a liderança positiva; daí que as responsabilidades devem ser compartilhadas. Cada um cuida do outro em sentidos diferentes, e a esfera de competência de cada um deve ser respeitada: a soberania da família, da escola, da igreja, do mercado, da empresa, da universidade, da imprensa devem ser tratadas com o máximo respeito e o máximo cuidado; e as que melhor demonstrarem capacidade de promover seus bens internos, os nossos objetos comuns de amor, devem receber honras públicas e o reconhecimento de autoridade moral.
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