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Guilherme de Carvalho

Guilherme de Carvalho

Guilherme de Carvalho é teólogo público e cientista da religião, com foco na articulação entre cristianismo e cultura contemporânea. É Pastor da Igreja Esperança em Belo Horizonte e diretor de L’Abri Fellowship Brasil. Foi diretor de Promoção e Educação em Direitos Humanos no Governo Federal.

Um sermão de Quinta-Feira Santa contra o otimismo secular em Cambridge

Detalhe de "Jesus lava os pés dos apóstolos", de Tintoretto. (Foto: Wikimedia Commons/Domínio público)

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“O otimismo secular, com sua retórica de direitos humanos, vem tentando obter os resultados da mensagem de Páscoa enquanto mantém Jesus fora do quadro, para alcançar a nova criação se esquecendo do criador que lava os pés.” (bispo N. T. Wright, Wycliffe Hall, Oxford)

Essa deve ser a minha sexta visita a Cambridge, revendo amigos e, dessa vez, acompanhando o programa de Páscoa. Trata-se de uma cidade pequena, muito charmosa e espiritualmente paradoxal; sua história cristã é algo muito visível, inevitável mesmo, dos nomes de ruas e parques às tantas igrejas antigas e capelas de Colleges, assim como é notória a presença da... incredulidade.

Um bom amigo que coordenou por alguns anos os trabalhos de Christian Heritage, na Round Church, uma velha igreja normanda no centro histórico, observou – talvez com algum exagero – que há provavelmente mais igrejas atuantes em Cambridge, proporcionalmente, do que em qualquer lugar da Inglaterra. E há, claro, a história. A Reforma começou, na Inglaterra, no White Horse Inn, uma taverna cambrigense na qual se discutiam ideias “luteranas”, pelos idos de 1521. Antes disso, Erasmo de Rotterdam veio a Cambridge trabalhar em sua pioneira tradução do Novo Testamento. Os puritanos foram fortes aqui – Cromwell estudou no Sidney-Sussex College; os evangélicos abolicionistas também; Clarkson e Wilberforce estudaram no St. John’s College, e Olaudah Equiano morava na região. Importantes nomes das missões cristãs mundiais, nos séculos 19 e 20, saíram de Cambridge.

E mesmo no campo científico a influência foi marcante; na porta de madeira dos Cavendish Labs há uma citação em latim do Salmo 111,2 (“Grandes são as obras do Senhor, e dignas de estudo por todos os que as admiram”). As inscrições foram postas no primeiro laboratório por obra de James Clark Maxwell (o pai, evidentemente, das equações de Maxwell), que era um crente fiel, e repetidas na entrada dos novos laboratórios inaugurados em 1973 por solicitação de outro cristão evangélico, Andrew Briggs, que já esteve no Brasil em eventos da Associação Brasileira de Cristãos na Ciência. Briggs é hoje professor de Nanomateriais em Oxford. Nos anos 2010 foi fundado o Faraday Institute for Science and Religion em Cambridge, tendo entre seus membros diversos fellows da Royal Society e que são cristãos praticantes. O pai do Big Bang, o padre católico Georges Lemaître, foi pesquisador, sob a orientação de Arthur Eddington, na St. Edmund’s House, hoje St. Edmund’s College.

Watson & Crick, os descobridores da dupla hélice do DNA, não ganharam o Nobel por seu ateísmo, mas por sua ciência. No entanto, sua ciência floresceu num berço historicamente religioso

Mas, então, há o paradoxo; Cambridge tem também uma história de descrença bastante importante. Aqui já foi o reino da antiga teologia natural de William Paley, destronada pelo darwinismo, e na Biblioteca de Cambridge estão os cadernos de Darwin. Fred Hoyle, o grande astrônomo e ateísta de carteirinha, trabalhou em Cambridge. Assim como James Watson e Francis Crick, descobridores da dupla-hélice do DNA e notórios ateístas, que levaram o Nobel pela descoberta.

Não foi senão nessa sexta visita que finalmente visitei o famoso The Eagle, o pub no qual os dois supostamente anunciaram sua descoberta científica em 28 de fevereiro de 1953. Ao menos é o que diz a placa indicando o historical site e as lendas. Mas, enquanto provávamos os fish & chips do lugar ontem à tarde, quase me engasguei ouvindo outra versão de um amigo que foi recentemente orientado por um orientando de Watson: eles teriam inventado a coisa toda!

Pouco depois estaríamos todos na pequena capela do Clare College para um evento especial de arte e teologia, com a presença de alguns grandes, como Jeremy Begbie e Richard Hays (Duke) e o antigo bispo de Durham, N. T. Wright. Entre execuções de Bach, Brahms e Handel, fomos lembrados da relação entre Deus e beleza, e do paralelo entre a performance artística e o rito pascal, e seguimos para o chá no refeitório do College. E lá estava meu amigo Leland, sorridente, apontando para um dos vitrais, bem no alto da sala: nada menos que a dupla hélice do DNA e o nome do ateísta Francis Crick, fellow honorário do College. Cambridge é assim: há vitrais de santos, de cientistas e de artistas, e os discursos por Deus e pela ciência coexistem.

Mesmo assim, não vejo simetria, e não penso que deveria haver. Parte da elite intelectual do mundo ensina ou estuda aqui, e inúmeros grandes cientistas que passaram pelos Colleges de Cambridge, passaram por suas igrejas e capelas, e se maravilharam com seus vitrais, que lá estavam antes de eles nascerem. Com certeza ouviram sermões dos capelães e a música sacra cantada por seus corais de 400 ou 500 anos de existência, mesmo que com ouvidos moucos. Inúmeros pesquisadores atravessaram as portas dos Cavendish Laboratories, mesmo que nem todos tenham lido as inscrições bíblicas ali talhadas por seus fundadores.

O fato é que Watson & Crick não ganharam o Nobel por seu ateísmo, mas por sua ciência. No entanto, sua ciência floresceu num berço historicamente religioso. Cambridge não negou honras a seus incrédulos ilustres, mas, pela mesma razão, as honras ao cristianismo que fundou Cambridge deveriam ser ainda maiores.

Mas, seguindo a procissão, fomos do chá a um evento maior, com grande público: a Maundy Thursday na capela do King’s College, aberta para a Páscoa depois de três anos sem celebrações. A capela estava lotada, ou tão lotada quando era possível, para lembrar a última ceia de Jesus e seus últimos momentos antes da crucificação. Além dos visitantes, gente importante do college, e o bispo Tom Wright escalado para o sermão. Seu tema: “A Música da Nova Criação”.

Foi um belo sermão, feito ainda mais cativante pela voz profunda e afável do Reverendo Wright. Ele começou descrevendo a cena emocionante e que rodou o mundo, de uma pianista ucraniana tocando seu piano branco em um apartamento destruído pelos russos, como um “ato de nova criação”. E, partindo dessa analogia, ele traçou em poucos minutos conexão entre as leituras bíblicas do dia, sobre a primeira Páscoa bíblica e o êxodo de Israel do Egito, e o lava-pés, com a Páscoa de Jesus.

O ponto, segundo ele, é que, no êxodo e na Páscoa de Jesus, Deus anunciou o seu juízo sobre os poderosos do mundo. Esse juízo se mostra na destruição de sua capacidade de intimidação e de controle, que chega ao clímax com a morte e ressurreição do Filho de Deus. Ali ficou manifesta a impotência da força bruta do Império Romano, que nada poderia fazer contra o ressurreto e contra a coragem da Igreja primitiva. E assim, o novo modo de ser humano no mundo, introduzido por Jesus performaticamente no lava-pés, no amor e no serviço, se tornou uma norma permanente para todos os homens, incluindo os poderosos de hoje. De agora em diante eles não teriam mais legitimidade, a não ser ajoelhando-se para servir aos menores e aos mais necessitados. Jesus virou do avesso a ordem do poder. Isso seria um ato de “nova criação”, e “nessa nova criação, o amor autodoador, o amor redentivo, o amor que lava os pés, são a ordem do dia”.

Tom Wright chama isso de “música” porque, como a música tocada pela pianista ucraniana, ela é uma performance apresentada no meio do caos, como resistência e como esperança; é uma demonstração representativa do futuro que Deus tem para o mundo e para os seus. Não é, já, uma solução imediata, nem uma utopia. Mas nem por isso deixa de ser real e histórica. O fato é que o lava-pés de Jesus foi uma performance para representar uma vida e uma existência vitoriosamente dedicada ao amor, e vindicada historicamente por Deus na ressurreição. E com isso o mundo mudou para sempre. Diz Wright:

“Essa sequência de eventos – da intimidade do lava-pés à horrível violência da crucificação, até à nova vida da manhã de Páscoa – tudo isso é o fulcro ao redor do qual a história do mundo agora gira, a régua pela qual os governantes desse mundo serão julgados. A maioria das pessoas no mundo hoje sabem, em seus ossos, que a tirania brutal não é apenas errada, mas também teve seu destino selado.”

O outro problema do mundo moderno é a nova religião secular dos direitos humanos. É uma doença no lado democrático do mundo

Aqui pensaríamos logo nos algozes da Ucrânia e em Putin, dada a ilustração apresentada pelo reverendo no início de sua fala. E em todos os tiranos e bullies do mundo moderno. Mas, então, surpreendentemente, Wright complementa seu argumento com um giro de 180 graus na crítica do establishment democrático:

“A visão da Páscoa do povo judeu, recebendo um foco renovado através da morte e ressurreição de Jesus, se estabeleceu firmemente na consciência global. O otimismo secular, com a sua retórica dos direitos humanos, vem tentando obter os resultados da mensagem de Páscoa enquanto mantém Jesus fora do quadro, para alcançar a nova criação se esquecendo do criador que lava os pés.”

Até esse ponto o bispo Wright se comportara como um perfeitamente aceitável e inofensivo clérigo anglicano em um rito de high church, mas, enfim, ninguém esperaria outra coisa do homem, conhecendo a sua obra. Deixando a mera conformidade com os sentimentos antiautoritários hoje compartilhados em todo o mundo democrático, ele observa que nós temos outro grande problema com o qual nos preocupar.

E o outro problema do mundo moderno é a nova religião secular dos direitos humanos. É uma doença no lado democrático do mundo. Não seria o caso em um sermão como esse, mas Tom Wright, o bispo anglicano, poderia ter citado aqui Tom Holland, o historiador britânico, cuja recente obra Dominion mostrou o quanto todos esses valores caros ao ocidente moderno, incluindo nossa visão elevada da pessoa humana e dos direitos humanos, são heranças diretas do cristianismo. O problema do individualismo expressivo, à medida em que se apropria do discurso dos direitos humanos e se assenta na cadeira de Moisés, é que ele quer o lava-pés sem o Deus que lava os pés. Não quer confessar o paradigma de Jesus Cristo, nem a vitória de Jesus Cristo, e nem mesmo o exemplo histórico de Jesus Cristo. Pois isso o faria ceder à religião e à tradição, coisa que a mente liberal e progressista não pode fazer. O dilema, no entanto, é evidente: têm o liberalismo e o progressismo recursos espirituais e morais para manter a sua versão antropocêntrica, judicializada e individualista do lava-pés?

É claro que não tem. O rei está nu há muito tempo, e o bispo Wright apenas cumpriu o seu dever de lembrar a elite universitária sobre essa obviedade. E assim eu testemunhei mais uma vez essa tensão espiritual em Cambridge, com humanistas seculares tendo suas consciências agora mesmo desafiadas pela mensagem cristã. O lugar da dúvida, do questionamento e do antropocentrismo ainda é um lugar de fé, de esperança e de testemunho.

Quando aos cristãos, Tom Wright admite que nada temos a oferecer além de demonstrações antecipatórias: “Os seguidores de Jesus receberam então esse mandato, de serem artistas performáticos da nova criação em um mundo encurralado entre as ruínas do velho e o nascimento do novo”. É para isso que celebramos a Páscoa: para afinar nossos instrumentos e ensaiar juntos a nossa demonstração das coisas novas de Deus, para trazer ao mundo a Esperança. Seria pouco, se Jesus fosse apenas um bom exemplo moral; mas sua ressurreição nos faz saber que essas coisas novas já estão entre nós.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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