“Quando alguém fala sobre o bem comum, faz sempre sentido inquirir: o bem comum de quem? Como o bem comum é demarcado não é assunto de pequena importância para quaisquer reivindicações feitas em seu nome. Pois essas reivindicações desabam tão logo se torne claro que o bem referido é na verdade compartilhado apenas por alguns membros da assumida coletividade e não pelo resto...” (William Barbieri Jr.)
Lembro-me de que, em certa ocasião, ao apresentar um projeto que vínhamos desenvolvendo no governo, provisoriamente intitulado “Escola do Bem Comum” numa reunião de controladores-gerais de vários estados brasileiros, um deles mostrou-se incomodadíssimo, sorrindo nervosamente e cochichando sem parar; mas, para seu crédito, ele não queria disfarçar nada. Assim que se abriu a oportunidade para perguntas sobre a iniciativa, ele meteu o dedo sem pensar duas vezes na parte dolorida: “o que é o bem comum? Quem pode dizer o que é isso?”
Sabendo que o senhor se inclinava para a esquerda, constatei sem surpresa que a ideia de bem comum não interessa a quem quer fazer oposição. Encontrei à esquerda exatamente o mesmo mal-estar para com a ideia de bem comum que já havia encontrado dentro do governo, entre liberais e ultraconservadores. Lembro-me de que, noutra reunião, um cargo elevado no MEC ficou surpreso com o emprego da expressão “bem comum” em nosso projeto. Riu e disse algo parecido com “a esquerda vai cair direitinho”.
Encontrei à esquerda exatamente o mesmo mal-estar para com a ideia de bem comum que já havia encontrado dentro do governo, entre liberais e ultraconservadores
Mas voltando ao primeiro caso: respondi que nosso projeto não dependia de uma visão totalizante de bem comum. No caso, o “bem comum” seria descoberto pelos estudantes buscando o que fazer para melhorar as instalações, a qualidade do ambiente e a experiência escolar. Ele seria descoberto “empiricamente”, de baixo-para-cima.
O dignitário não se convenceu, e não quis participar da iniciativa àquela altura. De certo modo não o culpo: embora o interesse do nosso projeto fosse realmente o bem comum, o governo como um todo não era especialmente interessado nessas categorias. Seu foco era a guerra cultural.
É importante?
A questão legítima do agente público era: “bem-comum de quem?” Mas antes de lidarmos com ela precisamos recuperar os fatos básicos sobre essa noção e por que ela é tão importante.
As raízes do conceito de bem comum são antigas, remontando ao mundo grego, e aparecem de forma já sofisticada em Aristóteles, para designar o que seria aquilo que concretiza o aperfeiçoamento da “comunidade completa”, na qual os vários bens e relacionamentos estão coordenados para dar expressão a tudo o que o ser humano deve ser: a polis. Na Idade Média o conceito foi incorporado por Tomás de Aquino em sua teoria social e política, e teve papel importante em todo o pensamento moderno. No caso da Igreja Católica, o tema nunca caiu; está no próprio Catecismo da Igreja Católica:
“A doutrina da Igreja elaborou o princípio dito da subsidiariedade. Segundo ele, ‘uma sociedade de ordem superior não deve interferir na vida interna duma sociedade de ordem inferior, privando-a das suas competências, mas deve antes apoiá-la, em caso de necessidade, e ajudá-la a coordenar a sua ação com a dos demais componentes sociais, com vista ao bem comum’” (Parte III, seção 1, capítulo 2, artigo 1)
Depois de algum tempo esquecida, a expressão “bem comum” está voltando com força significativa. Mas o que voltou, juntamente com o estresse e crise das democracias liberais, não foi apenas a expressão; foi a séria reflexão a respeito. O título do artigo de Jonathan Chaplin na última segunda-feira, no portal do think tank Theos, me parece sintomático: “Uma política do bem comum vem ganhando tração: mas o que isso significa?”
Mark Lilla, como todos sabem, acusou a perda do sentido de bem comum como o principal efeito combinado da política neoliberal da era Reagan e da pseudopolítica identitária democrata. Robert Putnam, Yuval Levin, o ensaísta do New York Times David Brooks e o cientista Jonathan Haidt têm feito críticas similares. Jean Tirole, Prêmio Nobel de Economia de 2014, por exemplo, lançou a obra Economia do bem comum em 2016, publicada no Brasil em 2020; e Michael Sandel lançou, em setembro de 2020, A tirania do mérito: O que aconteceu com o bem comum? Do lado cristão evangélico, Jack Meador publicou recentemente o livro In search of the common Good: Christian Fidelity in a Fractured World, destacando o mesmo problema: a crise do sentido de comunidade e do bem comum.
Nesse sentido, sem negar alguns erros teológicos e a divergência natural que posso ter como protestante, devemos aqui pagar nossos respeitos: a encíclica Fratelli Tutti do papa Francisco se moveu na direção certa, ao destacar que sem fraternidade e amizade social não poderemos resolver nossos problemas globais e locais. E o tema do bem comum é uma das avenidas para a construção da amizade entre pessoas e comunidades.
A despeito do acordo sobre a importância do tema, não existem definições consensuais de “bem comum”, embora existam grandes veios de tradição. Há a concepção clássica aristotélica, a católica romana, e as definições da ciência política moderna, como a de John Rawls ou as definições socialistas. Pensadores sociais protestantes têm também feito o dever de casa; eu mesmo tenho grandes dívidas com o trabalho de Roel Kuiper.
Minha própria concepção é devedora de três fontes principais: o filósofo católico do direito de Oxford John Finnis, em seu livro Natural Law & Natural Rights; os trabalhos do teólogo moral de Oxford Oliver O’Donovan; e a concepção do filósofo holandês Roel Kuiper, em Capital Moral: o Poder de Conexão da Sociedade. Aqui não há nada de estranho pra os que me conhecem – tenho proposto há tempos uma “frente ampla” combinando convergências do pensamento neocalvinista, do evangelicismo britânico e da tradição tomista.
Por que um “bem comum”?
Para estabelecer as coordenadas básicas recorro às Stob Lectures ministradas por Oliver O’Donovan no Calvin College, em 2001: “Os Objetos Comuns de Amor: Reflexão Moral e a Modelagem da Comunidade”. Trata-se de um daqueles livrinhos cuja leitura me encheu de gratidão.
O argumento de O’Donovan é, de ponta a ponta, uma discussão do sentido para o pensamento moral moderno da compreensão agostiniana de “povo”, uma discussão que o autor localiza na esfera da ética política. Tudo gira em torno de um trecho da obra A Cidade de Deus, de Agostinho de Hipona (354-430), que citaremos abaixo:
“Um povo, podemos dizer, é a reunião de uma multidão de seres racionais, unidos pela concordância em compartilhar daquilo que amam. Pode haver tantos tipos diferentes de pessoas quanto há diferentes coisas para que elas amem. Sejam quais forem essas coisas, nada há de absurdo em chamá-las de povo se elas são uma multidão reunida, não de bestas, mas de criaturas racionais, unidas pelo acordo em compartilhar as coisas que amam. Quanto melhores essas coisas, melhor o povo; quando piores as coisas, pior sua concordância em compartilhá-las.” (A Cidade de Deus, 19.24)
Comunidades funcionam conhecendo e amando. Não exatamente como pessoas amando umas às outras, mas simplesmente amando coisas conhecidas e reconhecidas como boas para todos
Seguindo de perto a epistemologia de Agostinho, O’Donovan sustenta que conhecimento e amor são inseparáveis; nós conhecemos as coisas porque elas nos atraem, e apenas quando as amamos é que de alguma forma as compreendemos. “Nossa experiência de conhecer é a de discernir o bem e lhe dar boas-vindas como algo bom.” E, assim como o amor tem um lado cognitivo, todo saber teria igualmente um lado “afetivo”.
O’Donovan argumenta que comunidades funcionam precisamente assim: conhecendo e amando. Não exatamente como pessoas amando umas às outras (isso seria um passo para frente e para cima), mas simplesmente amando coisas conhecidas e reconhecidas como boas para todos. Na própria raiz do que podemos chamar de comunidade ou povo está um tipo de julgamento moral coletivo:
“Amar, como conhecer, são coisas que só podemos fazer com os outros. Juntos, e não sozinhos, adquirimos nossas capacidades de nos engajar com o mundo em cognição afetiva. Os bens que nós amamos, criados e incriados, são bens comuns a todos, e nós os amamos apropriadamente como nossos bens apenas na medida em que os compreendemos como bens de todos os outros. Simplesmente amando-os, nos tornamos parte de uma comunidade que não é construída para realizar alguma tarefa, mas que é dada no próprio fato de que não podemos senão amá-los.”
“... a reflexão moral, a identificação de objetos de amor, tem efeito na comunidade organizada. O valor do empreendimento reflexivo é visto na forma corporativa que ele confere a nossas coletividades, no milagre criativo de que, por compartilhar uma visão comum do bem, deixamos de ser uma ‘multidão’ e nos tornamos um ‘povo’, capaz de ação comum, suscetível de sofrimento comum, e participante de uma identidade comum.”
A tese neoagostiniana de O’Donovan implica, antes de tudo, que a categoria primária de análise sociopolítica não é o poder, mas o amor, no sentido das afeições fundamentais ou do pathos de uma cultura. E, nesse caso, quando falamos sobre “bem comum” não lidamos com uma tentativa de moralizar a presença social e política, mas como uma realidade fundante da própria vida social. Ou seja, de uma metassociologia, ou de uma sociologia teológica, por assim dizer.
Admito o meu prazer diante da heresia de O’Donovan. Enfim, até mesmo a obsessão pelos sistemas econômicos de distribuição de bens, em certas práticas políticas, ou por estruturas de poder, como no pensamento pós-estruturalista, seriam, elas mesmas, expressões ideológicas dos amores humanos, e nada mais. Se são expressões boas ou saudáveis, é o ponto chave: segundo a concepção agostiniana, um povo se torna melhor ou pior na medida em que estabelece suas prioridades, e sua hierarquia de bens pode, realmente, corrompê-lo até próximo da animalidade. E é aí que se insere a tese principal do grande teólogo africano n’A Cidade de Deus. Ainda citando O’Donovan:
“Cada comunidade concreta, então, é definida igualmente pelas coisas que não ama coletivamente, os objetos que ela se recusa a aceitar como base para a sua associação. É assim que duas comunidades supremas, as ‘duas cidades’ nas quais todos os seres humanos se agrupam, se determinam não apenas por seus objetos supremos de amor, mas por seus objetos supremos de recusa: ‘amor a Deus, ao ponto do desprezo de si, amor de si ao ponto do desprezo por Deus’.”
Não podemos realmente avançar em nossa prática política se desistimos de conversar sobre o bem e de deliberar sobre como cultivá-lo da melhor forma possível
Não é preciso dizer o que Agostinho pensaria em nossas sociedades modernas, centradas, como são, no Self e na felicidade individual.
Trilhando o caminho reaberto por O’Donovan, abre-se novamente um horizonte moral para a nossa vida coletiva: não podemos realmente avançar em nossa prática política se desistimos de conversar sobre o bem e de deliberar sobre como cultivá-lo da melhor forma possível. Não se trata de ignorar a questão do poder; mas que ela não pode ter a prioridade e nossa imaginação política.
Mas de onde vem o “bem” do bem comum?
A questão é polêmica, mas é também incontornável. Alguma resposta deve ser assumida se pretendemos falar coerentemente. E aqui John Finnis mostra sua utilidade. Segue-se o elementar do filósofo sobre o tema: para além das discussões sobre o certo e o errado, há bens fundamentais, dos quais discutimos sobre o uso próprio ou impróprio. São as “formas básicas do bem”, elas mesmas condições de possibilidade de outros bens e de uma vida boa. É o caso da vida, do conhecimento, do lazer, da estética, da sociabilidade, da razoabilidade, da religião. São coisas inerentemente desejáveis. E uma vez que comunidades se formam pela capacidade humana de unificar a ação, produzindo “a unidade de ação comum”, é possível buscarmos o bem comum:
“A ‘existência’ do grupo, a ‘existência’ de regras sociais e a ‘existência’ da autoridade tendem a andar juntas. E o que faz essas imputações de existência fazerem sentido é, em cada caso, a presença de algum objetivo mais ou menos compartilhado ou, mais precisamente, alguma concepção compartilhada do propósito de dar continuidade à cooperação. A isso podemos chamar de o bem comum.”
“Pois que existe um ‘bem comum’ para os seres humanos na medida em que a vida, o conhecimento, o jogo, a experiência estética, a amizade, a religião e a liberdade na razoabilidade prática são bons para quaisquer e todas as pessoas. E cada um desses valores humanos é em si um ‘bem comum’, na medida em que um número inexaurível de pessoas pode participar deles de uma variedade inexaurível de modos ou de uma variedade inexaurível de ocasiões. Esses dois sentidos de ‘bem comum’ devem ser distinguidos de um terceiro, do qual, no entanto, não estão radicalmente separados. Esse terceiro sentido de ‘bem comum’ é o sentido pretendido, em geral, por todo este livro: um conjunto de condições que permita que os membros de uma comunidade atinjam por si mesmos objetivos razoáveis, ou que realizem, de modo razoável, por si mesmos, o valor em nome do qual eles. Têm razão de colaborar uns com os outros (positiva ou negativamente) em uma comunidade.”
Para além das discussões sobre o certo e o errado, há bens fundamentais, como a vida, o conhecimento, o lazer, a estética, a sociabilidade, a razoabilidade, a religião. São coisas inerentemente desejáveis
O primeiro fato que eu gostaria de destacar na comunicação de Finnis é que o bem comum, no sentido de um projeto coletivo, não é criado arbitrariamente ou culturalmente apenas, mas se baseia em formas básicas do bem e em nossa teleologia: atingir nossos fins e aperfeiçoamento. Penso que esse insight – a despeito de suas raízes aristotélicas – é salutar para uma política cristã para o bem comum. Aqui se admite, sem ambiguidade, que o bem não é pura e simplesmente uma construção coletiva.
Ora, é certo que o bem comum é, sim uma construção coletiva, histórica e civilizacional. Mas nadar bem na consciência histórica não é o mesmo que afogar-se no historicismo. Se o bem não apresentasse alguma objetividade e radicalidade, a honestidade nos obrigaria a admitir que o discurso sobre bem comum seria puro jogo retórico. Ou pior: admitiríamos de bom grado os hipócritas entre nós, falando ousadamente sobre “o bem” e rindo internamente de cada palavra que pronunciam. Por certo tais indivíduos irão para o inferno, caso ele exista; mas, com ou sem o fogo eterno, são válidas todas as providências para manter tais sofistas bem longe do poder político enquanto os tais viverem.
O lado “cultivado” do bem comum
Os insights de Finnis podem parecer metafísicos demais (embora não o sejam), mas com o complemento de Roel Kuiper é possível distinguir com maior clareza como o bem comum atinge uma expressão prática e materializada, do tipo que encontramos em nosso dia a dia. Cito o pensador holandês:
“Quando atitudes fundamentais morais são ancoradas em práticas sociais e culturais, então o bem comum deve ser visto como o resultado da interação entre todas essas práticas diferentes. O bem comum é o resultado dinâmico do trabalho de todo mundo visando promover o bem-estar público. É o próprio tecido ao qual cada um adiciona um tanto de fios. Esse bem-estar público é muito mais um estado do que um ‘bem’ material. Eu me propus a sempre usar a palavra ‘shalom’ para esse estado...”
“O bem comum, consequentemente, é o resultado de um inter-relacionamento de diferentes práticas e o bem que geram. Ao partilhar esse bem particular e incluir uns aos outros, surge o bem comum... Isso lança uma luz muito própria na questão da pluralidade social. Pluralidade pode ser considerada como uma diversidade necessária, condição para o surgimento do bem comum.”
Eu gosto especialmente da expressão “resultado dinâmico”. É assim mesmo que o bem comum emerge, à parte da legitimação filosófica: como o resultado de um processo complexo, social e histórico, no qual riquezas são introduzidas no trabalho comunitário, e seu valor público e universal vai aos poucos sendo articulado linguisticamente e reconhecido por todos. É como um tapete feito com doações de tecido e de esforço de várias pessoas.
É claro que se não houvesse as formas básicas do bem, não teríamos a capacidade de reconhecer o trabalho e a dádiva do outro como uma contribuição para efetivar, aprofundar e fertilizar tais bens. Nós só conhecemos, por exemplo, o valor intrínseco do conhecimento porque há comunidades cognitivas, que produziram saberes, e livros, e nos ajudaram a expandir nossas mentes e nossas linguagens coletivamente.
Para usar outra metáfora: o bem e os bens, como estrutura moral fundamental da realidade, são como um “espírito” ou uma “personalidade” que só transparece através de um corpo e de um rosto. Esse rosto corporificado e definido é o bem comum, como o tecido ou a tapeçaria construída pela comunidade.
Evidentemente, para construir o bem comum da forma mais rica e criativa possível é necessário termos uma sociedade aberta, mas também coesa, na qual a diversidade é reconhecida, mas sem rompimento das relações e sem perda dos diversos bens que podem ser postos em “circulação”. Precisamos, então, de uma dinâmica de unidade na diversidade, de diferenciação e de integração.
O bem comum emerge como o resultado de um processo complexo, social e histórico, no qual riquezas são introduzidas no trabalho comunitário
Podemos aproximar a lupa ainda mais: como os diversos bens são identificados e gerenciados? Aqui Kuiper recorre ao pensamento do cientista político norte-americano Michael Walzer:
“Cada esfera de vida, como afirma Walzer, define ‘bens sociais’. Por conseguinte, recebem significados partilhados. Em seguida, eles são dados, atribuídos, trocados de maneira adequada ao círculo. Formas especiais de reciprocidade determinam para onde os bens vão. Não existe um sistema de ‘justiça’ para toda a sociedade, como Rawls pensa, existem ‘esferas de justiça’, e essas são particulares por definição. Não existe um tipo de igualdade, definível racionalmente e obrigatório legalmente, existem várias formas de igualdade segundo os diversos critérios. Juntos, formam um conjunto de ‘igualdade complexa’, a concepção central de Walzer nesse livro.”
Com base nisso, Kuiper defende a “autonomia das esferas distributivas”. Trata-se de um tema recorrente em nossa coluna, que corresponde aos temas da “subsidiariedade” e das “esferas de soberania” social. Nessa perspectiva uma nação, ou povo, em nossas sociedades modernas, compõe-se de uma pletora de subcomunidades, cada uma delas se organizando ao redor de seus bens internos. A pluralidade da ordem moderna refrataria, então, os “amores” no sentido agostiniano em interesses e devoções especializadas em campos sociais: as universidades, as artes, as igrejas, as empresas etc.
Mas isso não é suficiente, segundo o pensador holandês:
“Uma sociedade não se orienta por um bem comum porque existe uma ideia de retidão que o exige, mas sim quando as pessoas estão dispostas a contribuir para com o bem-estar do outro e com o bem-estar público. Isso requer formas de altruísmo e caridade que não são citadas em Walzer... O princípio da moralidade complexa reconhece que estruturas sociais... que alimentam a preocupação com o outro (altruísmo) e a preocupação com o mundo (caridade) são de significado essencial para uma sociedade bem conectada e para a disseminação do bem comum.”
Para construir o bem comum da forma mais rica e criativa possível é necessário termos uma sociedade aberta, mas também coesa, na qual a diversidade é reconhecida, mas sem rompimento das relações
Penso que essa contribuição de Roel Kuiper é muito importante, e um ponto central de sua obra: no processo de nos reunirmos ao redor dos bens que amamos, para cultivá-los, precisamos desenvolver relações mútuas de confiança e de cuidado, do contrário o “comum” se degenerará em mera competição e empobrecimento coletivo. É preciso que, ao contribuir para o tecido do bem comum com meus próprios fios, eu coopere com os outros. E para tanto precisamos de capital moral.
Exatamente aqui entra o princípio da fraternidade e a amizade social, tão enfatizados pelo papa Francisco. Se, por um lado, os bens que reconhecemos e amamos nos atraem, unificam a nossa linguagem e nos dão a oportunidade de cooperar – nos tornam, mais do que mera “multidão”, um “povo” –, por outro lado, sem empregar essa oportunidade para praticarmos a tolerância, o reconhecimento, a negociação política e a fraternidade, não seremos capazes de amarrar os pontos e tecer o tecido.
O bem comum: de quem?
Temos agora condições mínimas para retomar a questão inicial: de quem é o bem comum que se pretende promover? A pergunta pode receber ao menos duas interpretações: uma cínica, e uma ética.
Vamos começar com a interpretação cínica: será que o discurso de “bem comum” visa tão somente legitimar os interesses escusos de uma classe específica, ou de um agente político particular, ou de um movimento político particular? A pergunta não é necessariamente ilegítima, desde que seja crítica.
O que vejo, no mais das vezes, no entanto, é a sua versão acrítica. E a versão acrítica é, precisamente, a que ignora o mérito do problema em nome da luta pelo poder. Pois o mérito da questão é: “existe um bem? E como vamos cultivá-lo?” Evidentemente não é possível receber um presente com as mãos fechadas, nem respirar tapando a boca e o nariz. A permanente reversão à questão do poder e o medo de ceder terreno frequentemente impede as pessoas de olhar para fora de si mesmas, em direção à realidade. E sem uma consciência coletiva dos bens humanos e de sua destinação pública, sem cultivá-los, em primeiro lugar, nada haverá para distribuir, no frigir dos ovos.
É possível que, na promoção do bem, algumas pessoas sejam privilegiadas por fatores externos e não intrínsecos ao bem, como posição social, heranças, poder financeiro, influência social ou até corrupção. Mas é possível, como Aristóteles já notara, que isso ocorra porque algumas pessoas são mais capazes ou bem-posicionadas ou bem-intencionadas para cultivar aquele bem específico, da melhor forma possível e para todos.
Pense, por exemplo, no financiamento de pesquisas para universidades. Seria injusto privilegiar, em certos momentos, as mais produtivas, éticas e econômicas? Certamente que não. Injustiça, nesse caso, seria ignorar os bens internos daquelas comunidades e agir por critérios extrínsecos ao conhecimento e à função de uma universidade como, por exemplo, o quanto ela apoia um partido político. Por isso mesmo, a questão de “quem” não pode ser lançada ambiguamente, à parte de uma verdadeira preocupação com o cultivo e a preservação dos bens humanos.
Quais são as coisas que nós amamos, as que nós não amamos, e as que deveríamos amar?
E isso nos leva à interpretação ética da questão: como acessibilizar nossos bens comuns de forma justa e generosa para todos em uma comunidade e, especialmente, aos que foram marginalizados pelo processo? Essa é a pergunta correta. Não é uma pergunta egoísta, sofista e medrosa, como a primeira, mas uma pergunta moral e digna de todo o nosso respeito. Nessa pergunta a questão do poder não é e não pode ser ignorada; pois, se nossos bens comuns não são vividos como realidades compartilhadas, será necessário mudar nossas políticas e lidar com o poder.
Mas a ordem de nossas prioridades faz diferença. Pois nesse último caso o medo deixa de ser o motor de nossa atividade política, e o amor se torna a norma normans de nossos trabalhos coletivos. Discutamos, portanto, o poder; mas sempre e continuamente perguntando: quais são as coisas que nós amamos, as que nós não amamos, e as que deveríamos amar?
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