O que acontece quanto a polarização é alimentada até o extremo?
Acontece o que aconteceu na quixotesca insurreição de janeiro e depois dela: patriotas, “patriotas”, direitistas arruaceiros, e seus milhares de familiares e amigos, todos amargando desesperados a detenção em massa ordenada pelo homem supremo. Mal acomodados, detidos sem voz de prisão, misturados criminosos e manifestantes pacíficos, ameaçados da imputação de crimes graves que renderão anos de prisão, dependentes da mobilização de advogados caridosos. Famílias inteiras, com seu futuro comprometido. Crianças com seu futuro comprometido. Homens e mulheres comuns, idosos, gente sem ficha na polícia e quem nunca jogou um copo no chão, todos rotulados como terroristas.
Aconteceu, nos círculos conservadores, a vergonha – entre os que tem um pingo dela, naturalmente. Aconteceu também a compaixão e a indignação; não apenas a profunda compaixão pelos pobres coitados naquela armadilha, mas também a indignação contra o abuso de poder, que já era matéria de acusação e debate renhido antes da insurreição, e que teve sua confirmação no grande expurgo pilotado por Alexandre de Moraes.
Aconteceu tudo isso: o tiro no pé, a vergonha, a compaixão e a indignação; mas aconteceu também o sentimento que mais me tocou nesse momento de trevas: o desespero. Pois na hora da grande necessidade, não há a quem recorrer. Os grandes jornais e veículos midiáticos não vem dando a mínima para os reclames conservadores. Nem a OAB, nem juízes, nem autoridades eclesiásticas, nem influenciadores de esquerda ou de centro, nem grandes líderes eclesiásticos, nem a Câmara, nem o Senado. Ninguém liga.
Mas francamente, o que esperavam os conservadores, patriotas, direitistas, e cristãos de bem, depois de acusar a todos os outros de serem, basicamente, idiotas?
É verdade que a extrema-esquerda nunca deu nem daria qualquer atenção às misérias de direitistas, e não há mesmo por que sofrer com isso; sempre foi assim. Conhecemos, por exemplo, o tratamento desigual dado pela militância às minorias alinhadas e às não alinhadas; mulheres, gays e pretos que não se alinham com o grande programa da esquerda nacional são, para todos os efeitos, homens heterossexuais brancos. Se assim é na vara verde, como não o seria no lenho seco?
Aconteceu tudo isso: o tiro no pé, a vergonha, a compaixão e a indignação; mas aconteceu também o sentimento que mais me tocou nesse momento de trevas: o desespero
Mas entre o centro e a extrema esquerda tem muita gente. E algumas dessas pessoas poderiam ser aliadas na hora difícil; não, evidentemente, para embelezar a feiúra irremediável da baderna de janeiro, mas para aliviar as injustiças que se seguiram, para reprovar a sede de sangue da extrema-esquerda na mídia, para contestar os arbítrios de nossa suprema corte. Mas essas pessoas, se existiam, parecem ter-se evaporado.
Restou ao bolsonarismo... Glenn Greenwald, quem diria! Desancado pela direita, por sua responsabilidade no desmonte da Lava Jato, virou agora o improvável herói dos patriotas, o exemplo da coerência jornalística. Lá vem Greenwald, a nova voz que clama no deserto! Mas nem isso acordou os moderados. Eles seguem em perfeito sono democrático.
E aqui está a lição que os conservadores que choram no escuro precisam aprender: quem está sempre gritando perderá a sua voz. Não será ouvido por ninguém. É assim que funciona.
Enquanto em franca ascensão, a direita militante não hesitou em chutar o banquinho e virar as mesas, zombando de autoridades, de políticos e de jornalistas, demonizando moderados de esquerda ou de direita e desprezando “centristas”, espalhando notícias falsas ou verdadeiras (tanto faz) com o único propósito de destruir reputações, e alimentando um espírito de guerra cultural total. Todo mundo era idiota, lembra? Se não era um idiota criminoso, era um idiota útil.
A direita tinha uma forte evidência a seu favor: os piores, mais obsessivos e mais doentes militantes e influenciadores da esquerda. Mas ao invés de fazer dos moderados seus aliados (e o leitor tipicamente radicalizado dirá que eles nem existem), cuspia neles, como se fossem sempre, e em qualquer lugar, oportunistas manipuladores. A direita no poder optou por se espelhar no pior da esquerda, e ignorou a obrigação de valorizar os oponentes leais e honestos.
E qual não foi a sua surpresa ao constatar em si mesma a doença revolucionária! Lá estavam eles, centenas de patriotas atentando contra os próprios símbolos da república brasileira, destruindo obras de arte, mostrando seu elevado respeito pela democracia. Honestamente, janeiro foi um desdobramento, se não inevitável, muito plausível dos bloqueios em estradas e dos acampamentos pedindo “intervenção militar” (repita comigo: golpe). E como se isso não bastasse, um verdadeiro atentado terrorista com efeitos imprevisíveis fora desbaratado em novembro.
Restou ao bolsonarismo... Glenn Greenwald, quem diria! Desancado pela direita, por sua responsabilidade no desmonte da Lava Jato, virou agora o improvável herói dos patriotas
É claro que a coisa vinha podre de longa data, e a omissão silenciosa de Bolsonaro e dos bolsonaristas mais influentes exige explicação. A tolerância conservadora ao discurso golpista em nome da liberdade de expressão clama por explicação. Os deveres de pacificação social não foram observados, e as reprimendas aos radicais de direita não aconteceram ou foram insuficientes. Enfim, o desastre político do dia 8 não foi um acidente.
Alguns insistirão aqui sobre as evidências preocupantes de que o novo governo sabia das movimentações e se omitiu, deixou a confusão rolar, armou uma arapuca. Se isso se comprovar, o que significa para o bolsonarismo? Absolutamente nada. O lulopetismo terá sido o que sempre foi. E o bolsonarismo terá sido... o que quis ser mesmo. Se caiu na arapuca, caiu cheio de vontade.
Agora faça o pequeno esforço, caro leitor patriota, de ler todo o evento do ponto de vista oposto. Imagine seu doppelgänger esquerdista assistindo à ascensão da direita com seus influenciadores intratáveis, suas hordas de zombadores nas mídias sociais, pregando a guerra cultural e demonizando até os moderados, questionando o sistema eleitoral, pedindo intervenção militar ao longo de toda a gestão Bolsonaro, negando o resultado das últimas eleições, pedindo o golpe militar, organizando um atentado terrorista e atacando as sedes dos três poderes. Será que seu duplo esquerdista sofreria de escrúpulos ao ver os patriotas se lascarem?
De nada adianta dizer que a direita não pode ser reduzida a essa caricatura; caricaturas não se desfazem sem diálogo e respeito mútuo, e não foi apenas a extrema-esquerda quem destruiu o diálogo nacional. Foi um trabalho coletivo e sincronizado. Foi... uma guerra.
Existe, enfim, explicação científica para isso: conservadores e progressistas são todos seres humanos, diferentes na ideologia, iguaizinhos na estrutura psicológica. Todos sofremos dos mesmíssimos vieses cognitivos. Somos criaturas tribais, com a tendência de ignorar os erros do nosso grupo e de supervalorizar os erros do grupo concorrente. Nossas divergências ideológicas e de formação psicomoral nos colocam naturalmente em competição, e sem esforços intencionais para construir pontes diplomáticas, entraremos em estado de guerra total, com todas as deslealdades e injustiças que a acompanham.
O lulopetismo terá sido o que sempre foi. E o bolsonarismo terá sido... o que quis ser mesmo. Se caiu na arapuca, caiu cheio de vontade.
E aí está o fruto amargo da guerra cultural: com as pontes destruídas, as conversas suspensas indefinidamente, as bolhas e câmaras de eco solidamente estabelecidas, com a suspeita e o ressentimento plantados no coração, quase ninguém se incomoda com os lamentos dos “patriotas”. A polarização radical, tão celebrada pelo bolsonarista, deu o seu fruto.
Repito, então, o que já disse nessa coluna: esse veneno tem que sair. Não estou dizendo que não há uma extrema-esquerda ignóbil, que cospe nos conservadores, tanto figuradamente quanto literalmente; estou dizendo que não podemos imitá-la, combatendo o mal com o mal. A direita precisa acordar do pesadelo de Olavo e de Bolsonaro para um conservadorismo de verdade, que coloque o bem comum acima da humilhação do adversário, que construa pontes de amizade, e que não trate todos os outros como idiotas.
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