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Em nossa exploração sobre a moderna fé no progresso, apresentamos na semana passada a tese de Peter Harrison de que a caridade cristã passou por um processo de externalização e objetificação: ela deixou de ser uma virtude da alma para se tornar uma propriedade dos projetos políticos, através da sua tecnologia social. O bem foi alienado da alma e transferido para o sistema, de modo que promover o bem não exige ser bom, mas apoiar a ideologia certa do modo mais fanático possível.
Mas a virtude não foi apenas alienada da formação do caráter; na religião do progresso até mesmo a sua natureza foi redefinida, de modo a compatibilizá-la com a fé no poder da técnica. Essa operação gerou uma criatura nova, metade humana e metade inumana.
O nascimento do Minotauro
Em suas Gifford Lectures publicadas em 2019, o teólogo anglicano Tom Wright acrescentou uma observação muito importante para o entendimento de como o novo ideal de progresso concorre com o cristianismo: é que ele resulta, em última análise, de uma fusão de aspectos da escatologia cristã com o epicurismo, produzindo uma escatologia sem Deus, na qual a força da transcendência viria de dentro da própria natureza.
“A crença modernista de que um novo dia havia nascido e que agora seria aplicado (na verdade, como já era de se esperar no epicurismo, que se implementava a partir de dentro) constituía um novo fenômeno. No entanto, sem nunca ter feito parte do epicurismo clássico, (ele) reprovou muitas características de seu ancestral remoto, enquanto cooptava o senso judaico e cristão do propósito divino. Essa é a origem da doutrina moderna do progresso. Em geral, costumamos associá-la a Hegel, mas ele era apenas um menino quando Adam Smith e Edward Gibbon já estavam escrevendo.”
O novo ideal de progresso resulta, em última análise, de uma fusão de aspectos da escatologia cristã com o epicurismo, produzindo uma escatologia sem Deus, na qual a força da transcendência viria de dentro da própria natureza
Um exemplo: Nicolau Maquiavel, um dos principais arquitetos do ideal renascentista de personalidade livre, acreditava em um mundo construído através da arte e da inteligência política, assumindo os desejos humanos temporais como fins últimos, de forma utilitarista e sem qualquer outra teleologia, ordem natural ou propósito divino. Não é essa visão da política essencialmente epicurista? De fato, Maquiavel, pai da ciência política moderna, teria copiado à mão a obra De Rerum Natura de Lucrécio – o maior dos epicuristas latinos – no fim dos anos 1490, e sua obra mostra a clara influência da ética epicurista. A visão de Maquiavel de uma história sem destino seria descartada, mas sua visão utilitarista da liberdade humana e da ordem política seria sacramentada.
Mas Maquiavel foi apenas o princípio das dores. Tom Wright observa que o epicurismo, principalmente segundo a interpretação do clássico latino Lucrécio (94 a.C.-50 a.C.), já vinha se expandindo na Europa desde a sua redescoberta em 1417, mas alcançaria a hegemonia no mundo intelectual europeu apenas a partir do terrível terremoto de Lisboa, em 1755.
“Então, o epicurismo estava mais forte havia um bom tempo. Mas depois de 1755, tornou-se predominante e (até os dias de hoje) permanente. Esqueça as estrelas e os planetas cantando louvores a Deus. Se existe um deus, ele está muito longe e não conhece nenhum de nós nem as estrelas rodopiantes. A religião é uma invenção humana planejada para manter as massas dóceis. O mundo faz o que faz em seu próprio ritmo. Ele se desenvolve e muda de maneira aleatória, sem interferência externa, à medida que os átomos vão se movendo aleatoriamente e, às vezes, desviando-se, de modo a esbarrar uns nos outros e produzir novos efeitos. Isso é tudo que existe na vida. E, quando morremos, morremos. Portanto, em ambos os sentidos, nada temos a temer. Esse é o epicurismo em linhas gerais...”
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No solo da Europa pós-renascentista, no entanto, o velho epicurismo passou por importantes transformações. Ele já havia sido incorporado na nova ciência política, a partir de Maquiavel e de Thomas Hobbes; mas penetrou então na nova economia política de Adam Smith; no pensamento evolucionista pré-darwiniano; e até mesmo na interpretação bíblica e na teologia modernista dos séculos 17 e 18.
E então, tal e qual no mito minoico da cópula de Parsífae, mulher do rei de Minos, com o touro de Poseidon, a modernidade produziu seu próprio Minotauro. Tomo emprestada aqui a concepção de Michael Polanyi, de que o “Minotauro” moderno seria um tipo de inversão moral, na qual as paixões morais alienadas do homem são canalizadas para a alimentação de um sistema monstruoso e imoral, que justifica e sacramenta o fanatismo de seus escravos; eles se tornam animais com pernas humanas. O marxismo-leninismo e o nazismo seriam, para Polanyi, epítomes do Minotauro moral.
Mas qual seria a gênese do monstro? A cópula da escatologia cristã com o epicurismo é que teria parido essa criatura completamente nova, a ideologia do progresso. Ela preservava o otimismo cristão, com sua visão linear da história e o paraíso futuro, mas tudo transplantado para a cosmovisão epicurista. Nascia, assim, o epicurismo escatológico. Esse epicurismo é o que permite justificar todo tipo de imoralidade a dissolução de todas as normas e limites em nome do paraíso terrestre.
Os traços do epicurismo escatológico emergem inconfundíveis na era das revoluções, e particularmente na Europa continental, em 1789, 1848, 1871 e 1917. Ele recebe formulações progressivamente mais sofisticadas em Condorcet e na obra de Friedrich Hegel, passando aos hegelianos de esquerda e de direita. Todo o desenvolvimento da esquerda socialista veio, então, a ser dominado por uma versão materialista da fé hegeliana no progresso, desenvolvida por Karl Marx, que também absorveu a cosmovisão epicurista.
Michael Polanyi diz que o “Minotauro” moderno seria um tipo de inversão moral, na qual as paixões morais alienadas do homem são canalizadas para a alimentação de um sistema monstruoso e imoral, que justifica e sacramenta o fanatismo de seus escravos
A nova visão, segundo a qual a história progride não sob a direção da providência divina, mas segundo uma lei dialética interna, em direção a uma sociedade ideal e sem injustiças, forma a base das concepções progressistas de progresso civilizatório. Mas suas origens são inequivocamente epicuristas. De igual modo, à direita, ideologias de progresso social, econômico e tecnológico ganharam corpo e voz. Essas doutrinas, tanto à esquerda quanto à direita, glorificam a ruptura com o passado, são ingenuamente otimistas sobre a capacidade e a boa vontade humana, e dispensam a necessidade de prudência política. Na opinião de Wright, enfim, o epicurismo tornou-se hegemônico, “cada vez mais dominante até que... passou a ser o ar nativo do Ocidente moderno”.
Epicurismo e terapêutica
Houve outra “contribuição” do epicurismo para a forma contemporânea de progressismo, que é da mais absoluta importância: a revolução terapêutica, cujos pais foram Jeremy Bentham, proponente do utilitarismo moral, e Sigmund Freud, o criador da psicanálise. Ambos adotavam a ética epicurista segundo a qual a busca pragmática de felicidade e bem-estar para si ou para o máximo de pessoas é o único bem racionalmente sustentável. Nessa perspectiva não existem propósitos morais superiores à busca inteligente e responsável do prazer. Não há uma lei natural e divina que estabeleça o modo correto de organizar a vida moral. O que há são julgamentos pragmáticos e inteligentes do homem racional para obter o máximo de prazer dentro dos limites da realidade. Freud cunhou uma expressão para descrever sua perspectiva sobre a maturidade psicológica: era corresponderia a uma boa “economia libidinal”.
A própria intelectualidade brasileira já era influenciada pelo epicurismo moral desde a penetração do romantismo no século 19 (o que foi especialmente evidente no Byronismo paulistano), mas ele ganha o centro das atenções a partir da Semana da Arte Moderna de 1922 e, em particular, do movimento antropofágico, como já observamos nessa coluna. Segundo Oswald de Andrade e seus simpatizantes, o homem é um animal desejante e nada mais; não cabem julgamentos morais sobre ele, especialmente no campo da sexualidade.
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Sobre essa visão foi construída, ao longo do século 20, uma concepção nova de felicidade, que tem como projeto máximo a autenticidade pessoal e o máximo bem-estar pessoal, e não a justiça, o amor agápico ou o bem comum. Sai de cena o Sermão da Montanha com suas bem-aventuranças, e entra em cena o autoconhecimento psicológico. A nova concepção engendraria um novo paradigma de formação espiritual que o antropólogo americano Philip Rieff descreveu como o “Homem Psicológico”.
O novo paradigma se tornou hegemônico a partir da grande revolta estudantil de 1968, tendo como sua bandeira principal a revolução sexual. Sua fusão com ideias progressistas, principalmente a partir de Herbert Marcuse, garantiria que a revolução sexual e a libertação da moralidade burguesa figurassem entre as principais bandeiras da esquerda global. Tenho descrito a ascensão desse novo paradigma e sua transformação em arma política como a “revolução afetiva”, e a ascensão de um Minotauro Sentimental. Esse paradigma de felicidade, com sua visão naturalista, utilitarista e libidinal da natureza humana, tem sido hegemônico na indústria acadêmica e cultural nacional, a ponto de se tornar invisível para os próprios intelectuais como o oceano o é para os peixes.
Um conflito de esperanças
Embora Goudzwaard e Schuurman, seguindo as pistas de Herman Dooyeweerd, tenham alcançado grande sucesso em explicar o desenvolvimento da ideologia do progresso no ocidente e sua relação com o capitalismo, o tecnicismo e o ideal de personalidade livre, me parece que Tom Wright identificou com muito mais precisão o “pai” da criança. Ou melhor, os pais; se a fé no progresso é uma combinação de epicurismo, em sua negação da providência de Deus e do telos sobrenatural da existência, com o elemento de otimismo e linearidade temporal da escatologia cristã, fica muitíssimo mais claro por que ela se tornou a principal competidora do cristianismo. Ele rouba dos cristãos o seu alvo, que é sua orientação teleológica para o verdadeiro paraíso; rouba dos cristãos a sua paciência, propondo-lhes que a transcendência pode brotar de dentro da história por meio das suas obras; e rouba até mesmo a ideia de bem, equacionando a caridade com a adesão à utopia correta.
De modo que resistir ao complexo tecnicismo-capitalismo é impossível sem lidar com o elemento epicurista na imaginação moral moderna. Se a ideologia do progresso é um epicurismo escatológico, o que ela traz, em seu cerne, é uma falsa esperança de felicidade. O confronto dessa falsa esperança com a verdadeira esperança se desenrola muito além da política partidária, dentro do grande labirinto da vida comum e da moralidade popular. É nele, e não nos palácios governamentais, que a luta será decidida.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos