Levantamos a bola na coluna anterior sobre essa inusitada dimensão da mente cristã que é a prática de suspeitar bem. Não a de qualquer suspeita, naturalmente, mas da suspeita messiânica, a suspeita diante das falsificações de Cristo. Em suma, o problema do anticristo.
O espírito do anticristo, a falsificação messiânica, pode se manifestar de diversas formas e em vários níveis; pode ser discernido em doutrinas, práticas e instituições que se apropriam de aspectos do evangelho com o propósito de negá-los, para afirmar o que o mundo sempre quis afirmar. Isso é o que foi proposto pelo lendário teólogo e missiólogo equatoriano René Padilla (1932-2021), fundador do conceito de “Missão Integral”, em um artigo clássico sobre a evangelização moderna: “Cristo e Anticristo na Proclamação do Evangelho”. Falando sobre os Estados Unidos e os governos latino-americanos na segunda metade do século 20, ele observa:
“São governos que se concebem como motores da modernização a que hoje aspiram as nações ‘subdesenvolvidas’, ou em vias de desenvolvimento. Eles partem da premissa do mito do progresso – versão secularizada da escatologia bíblica – e aceitam como modelo para a mudança social o modelo de crescimento econômico exemplificado principalmente pelos Estados Unidos...”
“... para mim, o ‘mistério da iniquidade’ está em ação em nossa época, nesse gigantesco esforço de todas as nações para converterem-se em ‘sociedades avançadas’, segundo a imagem proposta na sociedade de consumo e por meio da racionalidade científica, tecnológica e administrativa.”
O espírito do anticristo, a falsificação messiânica, pode ser discernido em doutrinas, práticas e instituições que se apropriam de aspectos do evangelho com o propósito de negá-los, para afirmar o que o mundo sempre quis afirmar
O discurso de Padilla está aqui alinhado com a crítica à ideologia do progresso, que desenvolvemos por muitas semanas nessa coluna: a ideologia do progresso, com seus elementos tecnicistas e consumistas, tem sido exportada com interesses imperialistas em toda a América Latina. Padilla colocará peso especial na questão do modelo econômico, mas admite a premissa teológica herética por trás de tudo.
Quem evangeliza quem?
O ponto principal do teólogo é bastante prático e eclesial, sobre o modo como esse grande modelo distorce a proclamação do evangelho por meio da sedução. Uma inversão acontece quando a igreja cumpre sua tarefa usando “as regras do jogo e os valores da sociedade que a rodeia”, e adaptando as exigências do discipulado cristão ao sistema de consumo. Realmente, uma evangelização que não desafia o consumismo, que legitima o sistema do progresso, que incorpora a mentalidade racionalista, burocrática e materialista da nossa sociedade, abre espaço para o espírito do anticristo.
O teólogo explica em linguagem teológica a raiz do anticristo moderno: “em essência, a mentira de que o homem pode ser como Deus, independente de Deus”. Mas essa mentira não precisa se apresentar “diretamente como uma negação da fé cristã”, mas como “um plano de salvação individual e social” de caráter secularista e totalitário, empregando a comunicação de massa “para difundir a sua mensagem e oferecer esperança, seja em termos de crescimento econômico ou em termos de revolução”.
Claramente, Padilla reconhece a mesma ideologia do progresso sob ideais revolucionários, à esquerda, e sobre o desenvolvimentismo capitalista. Não obstante, ele enfatiza o papel de governos ditatoriais, impondo o capitalismo de Estado e violando direitos humanos, como manifestações do anticristo na América Latina. A tarefa principal da igreja nesse contexto seria confrontar esse anticristo:
“Se na América Latina o reino do anticristo toma a forma de uma sociedade que absolutiza os bens materiais com governos dispostos a pagar um elevado custo social para obter seus propósitos de desenvolvimento econômico, a proclamação do evangelho precisa incluir o anúncio das boas novas da salvação em Jesus Cristo, assim como a denúncia de tudo aquilo que nessa sociedade atenta contra a plenitude da vida humana.”
O ponto do teólogo é que a evangelização não pode ser asséptica em relação ao que empobrece a vida humana e impede seu florescimento. Uma evangelização que silencia sobre essas patologias sociais, econômicas e políticas, legitimando a obra da Besta, estaria se comportando como o seu falso profeta. Nessa perspectiva, por exemplo, a teologia da prosperidade, tão difundida em ambientes evangélicos, poderia ser vista como um falso evangelho, que usa a linguagem cristã para espiritualizar sonhos individuais de ascensão socioeconômica, para “batizar” a máquina do capitalismo de consumo e para legitimar o status quo.
Uma inversão acontece quando a igreja cumpre sua tarefa usando “as regras do jogo e os valores da sociedade que a rodeia”, e adaptando as exigências do discipulado cristão ao sistema de consumo
Métodos de evangelização que legitimam o status quo também estariam sujeitos a essa crítica; aqui poderíamos incluir a famosa crítica de Padilla ao “princípio das unidades homogêneas”, uma teoria missiológica inventada nos EUA segundo a qual igrejas crescem mais quando são culturalmente uniformes. Padilla mostrou que, para todos os fins práticos, essa metodologia legitima a formação de igrejas segregadas do ponto de vista econômico, cultural e, no caso em tela, até mesmo racialmente. Tudo isso seria uma negação da reconciliação promovida pelo evangelho. O ponto é tão importante que vale outra citação mais longa:
“Devido à sua negligência com relação ao ensinamento bíblico sobre a unidade da igreja, ela converteu-se numa missiologia feita sob medida para igrejas e instituições cuja função principal na sociedade é apoiar o status quo. O que esta missiologia pode dizer a uma igreja num bairro de classe média, onde os membros sentem-se cômodos com seus valores próprios da burguesia, mas estão escravizados pelo materialismo da sociedade de consumo e cegos frente às necessidades dos pobres? O que ela pode dizer a uma igreja onde o racista ‘se sente bem’ graças à censurável aliança entre o cristianismo e a segregação racial? O que pode dizer em situações de conflito de tribo, casta ou classe?”
A mesma lógica poderia ser aplicada a outras “soluções” para o bom desenvolvimento da igreja e da missão, cujo efeito seja silenciar o evangelho e dar voz ao mundo. A crítica de René Padilla e de outros teólogos da missão integral latino-americana pode muito bem ser vista como uma expressão do princípio profético-protestante, e do discernimento crítico que Jesus Cristo ordenou a seus discípulos.
O novo anticristo latino-americano
No entanto, há muito ainda o que fazer, uma vez que o mistério da iniquidade opera com sagacidade e com muitos sinais e prodígios de mentira. A exposição que Padilla faz sobre a operação do anticristo na modernidade é verdadeira, mas ainda superficial; dá grande destaque aos efeitos macroestruturais do capitalismo de consumo, mas oferece pouco discernimento sobre o espírito epicurista do progressismo latino-americano.
É claro que isso pode ser lido como uma questão de ênfase, especialmente tendo em vista o número de ditaduras apoiadas pelo capitalismo internacional que tivemos na América Latina durante boa parte do desenvolvimento da missiologia evangélica latino-americana.
Honestamente, no entanto, no caso do Brasil essa situação política foi superada há mais de 30 anos, e um novo establishment econômico e cultural se desenvolveu de forma completa, integrando capitalismo de consumo e revolução terapêutica em uma única agenda progressista-liberal (a despeito de suas muitas divergências internas). Além disso, essa agenda é abertamente promovida por elites cosmopolitas a partir dos principais centros de produção de riqueza, conhecimento e tecnologia, em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e outras cidades globais de nosso país, em atitude de oposição e desdém ao proletariado cultural nacional, hoje principalmente evangélico.
A missiologia latino-americana, no entanto, parece não ter se apercebido da gravidade dessas mudanças. Raramente – para não dizer nunca – encontramos defensores de teologias progressistas, nacionais e anticoloniais, confrontando o discurso dessas elites cosmopolitas. Um exemplo mais que evidente disso é o abraço de morte de alguns evangélicos progressistas com a terapêutica moderna e o individualismo expressivo, em nome da justiça e da libertação.
Um novo establishment econômico e cultural se desenvolveu de forma completa, integrando capitalismo de consumo e revolução terapêutica em uma única agenda progressista-liberal
Ocorre, no entanto, como tivemos a oportunidade de discutir nessa coluna, que a terapêutica moderna é a própria ponta de lança da ideologia do progresso, corretamente descrita por Padilla como o espírito do anticristo. Não deixa de ser irônico que alguns teólogos, igrejas e instituições que se considerem herdeiras da Missão Integral tenham se convertido à revolução terapêutica ou optem por não desafiá-la, mesmo quando o governo ataca abertamente a preocupação cristã com a família e os “costumes” como se fossem “fascismo”.
A raiz mais profunda dessa tentação precisa ser exposta: trata-se do Minotauro, a cópula de epicurismo e escatologia cristã. Nessa cópula temos a tradução de fins absolutamente mundanos em uma linguagem cristã, possibilitando transformar esses fins em meta da teologia e da missão. Sem plena consciência do desvio teleológico implicado nessa transformação, a igreja se torna uma boca inconsciente da voz do mundo, com sua imaginação colonizada por objetivos terrenos como o “desenvolvimento humano”, o “progresso civilizatório”, o “empoderamento” de todos os indivíduos, a afirmação das identidades, e assim por diante.
A crítica da falsa esperança moderna é, hoje, o pressuposto de toda crítica cristã da cultura e de qualquer missiologia evangélica contemporânea. Qualquer evangelização que deixe esse ídolo intocado, e que falhe em romper com a doutrina moderna da felicidade, põe-se no caminho do anticristo.
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