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Três colunas sustentam o espaço de vida e crescimento religioso das igrejas: a família, a liberdade religiosa e a cultura missionária cristã. As duas primeiras vêm sofrendo cerco sistemático de operadores laicistas do direito, e a ameaça mais recente veio incrustrada no projeto do Novo Código Civil, apropriadamente descrito na Gazeta como uma “bomba ideológica”. Mas para entender por que o assunto interessa às igrejas, é preciso ganhar uma visão de conjunto sobre essas três colunas.
Se não houvesse essa cultura missionária, em primeiro lugar, é claro que não haveria expansão do cristianismo; e ainda hoje há igrejas que se tornaram praticamente fenômenos étnicos, nas quais o impulso universalista se dissolveu em parte ou completamente. Mas a linha central da tradição cristã, tanto católica quanto protestante, mantém a consciência e a cultura missionária, e isso mantém essas igrejas vivas e oxigenadas, voltadas para além de si mesmas, contemplando o mundo e as pessoas, e compartilhando o Evangelho renovadamente, de geração em geração.
Mas, além desse “tronco” da vitalidade eclesiástica, o cristianismo trabalhou para constituir duas outras “escoras” para o seu crescimento, que inadvertidamente se tornaram bênçãos para a civilização ocidental, incluindo cristãos e não cristãos. Para usar uma metáfora ambiental: esses dois elementos constituiriam uma espécie de “nicho ecológico” apropriado para o florescimento religioso.
Três colunas sustentam o espaço de vida e crescimento religioso das igrejas: a família, a liberdade religiosa e a cultura missionária cristã.
O elemento mais recente é a liberdade religiosa, que não foi, evidentemente, um princípio explícito do cristianismo, mas o resultado de uma lenta construção para a qual a contribuição cristã entrou com elementos fundamentais. O mais básico deles foi a própria noção de dignidade e direitos da pessoa humana, já a partir da Antiguidade cristã, como argumentou o filósofo norte-americano Nicholas Wolterstorff em seu magistral Justice: Rights and Wrongs, de 2010. A essa noção acrescentaram-se avanços progressivos: na Reforma Protestante, o livre exame das Escrituras e a liberdade da consciência incorporados em Lutero; a limitação do poder do Estado e as cartas constitucionais na Suíça; a extraordinária tolerância religiosa na Holanda calvinista; e, finalmente, a plena liberdade de culto proposta pelo ministro calvinista Roger Williams, fundador da primeira igreja batista na América do Norte e da colônia de Providence, fundada em 1636, futuramente nomeada Rhode Island. Providence foi o primeiro lugar no qual a plena liberdade de culto e crença foi crida e praticada como princípio político fundamental.
No século 19, recebendo, mas também suplantando a herança do protestantismo europeu, as missões evangélicas ao redor do globo não promoviam apenas a fé cristã, mas também a separação entre religiões estabelecidas e o Estado, com sua consequente laicização, e os princípios da tolerância e da liberdade de culto; ou seja, realizavam um extensivo trabalho de “terraformação”, alterando a ambiência política e jurídica na direção do pluralismo e das liberdades civis fundamentais, com destaque para a liberdade de crença e de expressão, por ser essa ambiência a mais adequada à propagação do Evangelho. Niall Ferguson, em Civilização, afirma que:
“Enquanto a Reforma foi nacionalizada na Europa, com a criação de igrejas estatais como a Igreja da Inglaterra ou a Kirk da Escócia, nos Estados Unidos sempre houve uma separação estrita entre a religião e o Estado, permitindo uma competição aberta entre várias seitas protestantes. E essa talvez seja a melhor explicação para a estranha morte da religião na Europa e seu vigor permanente nos Estados Unidos. Na religião, assim como nos negócios, os monopólios estatais são ineficientes... Em geral, a competição entre seitas em um mercado religioso livre encoraja as inovações concebidas para tornar mais gratificante a experiência do culto e da filiação à igreja. É isso o que mantém viva a religião nos Estados Unidos.”
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Alguém poderia objetar a Ferguson que sua visão otimista sobre a religião nos EUA vem sendo contestada nos últimos anos, com um declínio das religiões evangélicas em geral. O fenômeno do “desigrejamento” generalizado não dá sinais de desaceleração, sugerindo que a secularização finalmente encontrou seu caminho no país dos ianques. Mas há uma explicação simples para isso, que apresentarei nos parágrafos seguintes. No seu ponto principal, Niall Ferguson está certíssimo: a expansão eclesiástica e a fermentação religiosa cristã, em sua forma evangélica, passam pela constituição de um espaço de liberdade religiosa e de um mercado religioso livre e desregulamentado.
É compreensível, portanto, que os inimigos do cristianismo e da fé evangélica, em particular, pretendam intervir diretamente no mercado religioso empregando a arma da estatização ou, no mínimo, do protecionismo. Um exemplo vergonhosamente explícito nos foi dado neste ano, com a proposta indecente de uma teóloga ecumênica e jurista carioca ao governo Lula e à cúpula do PT, de um controle estatal da doutrina religiosa, da formação de pastores e da plantação de novas igrejas. Preocupados com a multiplicação de templos, jornalistas defenderam o controle estatal de igrejas em rede nacional.
Uma estratégia mais direta é a tentativa de limitar a liberdade de expressão religiosa. A mais escandalosa manifestação dessa vontade de censura foi a publicação, nas mídias sociais do governo do estado da Bahia, de peças informativas tratando o proselitismo religioso cristão como discurso de ódio e racismo religioso, gerando comoção geral. Essa figura, do “racismo religioso”, a despeito de inexistir em nossos códigos legais, vem sendo usada sistematicamente para coibir a crítica evangélica à religiosidade e às divindades de religiões de matriz africana, emulando uma jurisprudência “antiblasfêmia” – algo completamente contrário ao que o sistema internacional de Direitos Humanos reconhece contemporaneamente. A crítica ao sagrado do outro é um direito fundamental, e um aspecto da liberdade religiosa.
Os inimigos do cristianismo e da fé evangélica, em particular, pretendem intervir diretamente no mercado religioso empregando a arma da estatização ou, no mínimo, do protecionismo
Há poucos dias assisti a uma live gravada do teólogo e influenciador Yago Martins relatando a sua própria experiência de ser notificado pelo Ministério Público por publicar críticas a religiões não cristãs em sua conta do X (ex-Twitter). O processo lhe tomou tempo e advogados, mas acabou arquivado, uma vez que a jurisprudência do próprio STF garante a liberdade do debate teológico e da crítica religiosa, guardados os direitos da pessoa humana. Mas, como Yago pondera acertadamente, não é do Executivo – como “a eleição de Lula”, por exemplo – que vem a maior ameaça à liberdade religiosa, mas do Judiciário e, especificamente, do Ministério Público; porque vivemos hoje num ambiente cultural e social povoado de inimigos da liberdade religiosa, dispostos a torcer leis e criar jurisprudência para limitar o crescimento evangélico.
Isso não isenta o Executivo, é claro; a estratégia parece ser a de uma “pinça”, com políticas públicas de “diversidade”, com o propósito de promover religiões concorrentes através da máquina do Executivo; e o Judiciário, para criar jurisprudência e limitar a liberdade de expressão.
Mas, voltando aos pilares da expansão evangélica: muito antes da liberdade religiosa, o cristianismo levantou a segunda coluna de seu edifício: a ordenação da família, a partir do casamento monogâmico heterossexual. Segundo Kyle Harper, em From Shame to Sin, a Igreja Católica foi responsável pela “primeira revolução sexual”, que libertou mulheres e crianças do patriarcalismo predatório da Roma Antiga, consolidou as normas cristãs de fidelidade conjugal, afeto e investimento parental, e assumiu as rédeas da ordem matrimonial e conjugal.
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Segundo Joseph Henrich, professor de Biologia Evolutiva Humana da Universidade Harvard, foi precisamente essa política da Igreja o que lançou as bases da cultura ocidental moderna. Como expressei nessa coluna, anteriormente: “foram os mil anos do ‘Programa Católico de Casamento e Família’ na Europa que demoliram seu sistema de clãs e criaram uma sociedade de famílias de alto rendimento, nas quais os homens deixaram de ver uns aos outros pela ótica do clã e da consanguinidade para se verem de modo mais impessoal e ao mesmo tempo mais solidário, como concidadãos”. Sem diminuir a importância da Reforma e da ética protestante do trabalho, Henrich observa que essa ética foi um desdobramento ou um booster shot sobre bases socioculturais constituídas pela Igreja.
É claro que isso foi muito bom para o mundo, mas vale destacar que foi muito bom para a própria igreja cristã. Há uma simbiose entre o estilo de vida familiar baseado em fidelidade, contenção sexual, afeto e investimento parental – virtudes próprias da família cristã – e a concepção de ética e espiritualidade promovida pelo cristianismo. Uma alimenta a outra, e a família garante a transmissão geracional da fé. É compreensível, portanto, que a mudança nas leis e costumes de fertilidade e família venha sendo acompanhada por uma crise da religião em escala global, como argumentou recentemente o cientista político Ron Inglehart em Religion’s Sudden Decline, de 2021, com massiva evidência estatística. Mas antes mesmo o ponto fora defendido por Mary Eberstadt em Why the West Really Lost God: a New Theory of Secularization, de 2013: “o registro sobre o Ocidente sugere que o declínio da família não é meramente uma consequência do declínio religioso, como o pensamento convencional tem entendido essa relação. É também plausível... que o declínio da família, por seu turno, ajuda a fortalecer o declínio religioso”. A crise da religião, portanto, é efeito de uma crise bem maior, da família e da sociabilidade humana.
Cultura missionária, família cristã e liberdade religiosa: aí estão três pilares da vitalidade cristã. Os três hoje estão sob ataque, embora de modos diferentes. O primeiro é alvo, internamente, de teologias que minimizam a importância do anúncio do evangelho e da defesa da fé cristã. Trata-se, claro, de um problema muito mais interno do que externo; muito mais de saúde das igrejas do que de ambiência.
O que se vê com o projeto de Novo Código Civil é a dissolução do eixo natural e comunitário da família em nome de uma sociedade baseada no interesse individual e na realização emocional. Trata-se de mais um degrau na revolução narcisista
O caso dos outros dois é diferente; historicamente eles tanto são frutos do cristianismo quanto nichos ambientais de caráter sociopolítico, que fornecem as condições ideais para a adaptabilidade e reprodutividade da fé. Mudanças nesses elementos não impedem, mas dificultam significativamente o progresso da missão cristã. Faz sentido, portanto, que eles sejam objeto de policiamento e interferência dos desafetos do cristianismo.
Nesse contexto, e independentemente das intenções pessoais dos operadores do direito, é preciso entender criticamente as interferências na jurisprudência e nos códigos legais que reduzam a liberdade religiosa, ou aumentem o controle estatal sobre a religião, e que alterem a concepção de família, de modo a afastá-la da família natural e submetê-la a um enquadramento terapêutico e individualista. Essas interferências são ameaças objetivas a todas as religiões, e especialmente à religião cristã, na medida em que desmancham o “nicho ecológico” apropriado à adesão e à prática comunitária de qualquer religião. Em outros termos, são uma terraformação laicista.
Pois bem: o Novo Código Civil interfere diretamente em um dos pilares da religião: a família. Seu texto indica redução potencial dos direitos do nascituro, enfraquecimento do poder parental diante do Estado e, principalmente, do Campo Afetivo, com a figura mal definida da “violência psíquica”, o conceito de “sociedade convivencial” em oposição à “sociedade conjugal”, abrindo espaço para poliamorismo, atribuição de autonomia à criança e ao adolescente em assuntos de identidade e sexualidade, uma concepção expressivista de “nome” civil, e a inclusão dos animais domésticos com status jurídico no “entorno sociofamiliar”. O que se vê é a dissolução do eixo natural e comunitário da família em nome de uma sociedade baseada no interesse individual e na realização emocional. Trata-se de mais um degrau na revolução narcisista.
Aqueles comprometidos com a vitalidade da fé cristã não podem permitir que esse projeto avance sem resistência. Defender a família é, para todas as religiões e especialmente para o cristianismo, um dever e uma questão existencial.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos