Em sua busca por instrumentos para uma crítica radical da racionalidade progressista, os conservadores farão bem em considerar o pensamento de Eric Voegelin (1901-1985), o filósofo político germano-americano que destravou o segredo espiritual da política moderna. Segundo o homem, sob a fé progressista oculta-se uma grande concupiscência. A ânsia pela união com a divindade, alienada de sua revelação, alimenta a grande revolta gnóstica contra a realidade que contamina a política de esquerda. Fizemos uma breve síntese da crítica voegeliana em nossa coluna anterior, sobre “O progressismo como concupiscência”.
A explanação política de Eric Voegelin parece extremamente plausível, e vários de seus conceitos têm utilidade imediata à teologia política cristã; particularmente a sua hipótese sobre a metaxia (desde que compatibilizada com o teísmo cristão), sua aprovação da teologia política de Agostinho de Hipona, sua análise genial a respeito da imanentização da escatologia cristã e da formação do gnosticismo moderno, sobre a diferença entre os sofistas e os filósofos, e sobre a relação entre totalitarismo e gnosticismo.
Não obstante tais pontos de acordo, não podemos ser ingênuos sobre o neopaganismo crítico de Voegelin. Sua filosofia da história não rejeita o gnosticismo moderno com base na verdadeira escatologia cristã, mas com base em seu platonismo. A verdade é que ele rejeitava a própria escatologia cristã, responsabilizando-a indiretamente pelo gnosticismo moderno.
Voegelin e os apóstolos
Essa grave incompreensão fica particularmente clara em sua discussão sobre o apóstolo Paulo em Ordem e História; ele declara a expectativa paulina de um segundo advento de Cristo, com uma ressurreição literal dos mortos, como uma expectativa metastática. A visão de história de Voegelin permitia reconhecer em Paulo uma experiência “teofânica”, um entendimento da jornada humana em direção à divindade, e um equilíbrio entre essa visão do divino e a experiência da ordem cósmica.
Não podemos ser ingênuos sobre o neopaganismo crítico de Voegelin. A verdade é que ele rejeitava a própria escatologia cristã, responsabilizando-a indiretamente pelo gnosticismo moderno
Mas ele não aceitava de forma alguma que o querigma cristão interferisse em seu sistema, recusando-se a admitir qualquer importância na factualidade da Encarnação ou da Ressurreição física de Jesus. Assim como Paul Tillich, Voegelin vê na linguagem religiosa cristã meros símbolos das estruturas espirituais da realidade, e não referências realistas aos atos redentores de Deus. E quando Paulo “exagera” na esperança de uma verdadeira ressurreição física, em 1 Coríntios 15, é criticado pelo filósofo em A Era Ecumênica:
“Essa narrativa, colocando a visão na perspectiva do modo de Deus com o cosmos e o ser humano, domina a imaginação de Paulo, tão fortemente que a perspectiva da metaxia recua para uma comparativa insignificância.”
E assim, em Voegelin, Paulo se torna um assistente de Platão na interpretação do evento teofânico de Cristo. Quanto ao dogma trinitário e cristológico posterior, sua única importância seria de atuar como “um dispositivo protetor que protegerá a unidade do Deus Desconhecido contra a confusão com as experiências de presença divina nos mitos dos deuses intracósmicos”, ou seja, com valor simbólico, mas sem força cognitiva.
Voegelin e os profetas
O problema de Voegelin com a tradição judaico-cristã começa muito antes, no entanto, em seu tratamento de Israel e da Revelação, e especificamente quanto à tradição profética. Ao discutir as guerras entre Israel e Síria e, posteriormente, Israel e Assíria, no século 8.º a.C., Voegelin questiona o conselho do profeta Isaías, de que o rei deveria apenas aceitar seu conselho e confiar em Yahweh, abstendo-se de tomar providências militares e de fazer alianças (em Isaías 7,4-7; 30,1-15). Segundo o filósofo, esse conselho seria uma forma aguda da consciência de transcendência de Deus em relação ao mundo (um ganho espiritual positivo, decorrente da revelação mosaica) e, como tal, uma expressão de fé; mas seria também um conselho defeituoso e paralisante, por sonhar com uma transformação quase mágica e impossível da história, que está submetida à ordem cósmica.
“Esse conhecimento do plano divino lança seu feitiço paralisante sobre a necessidade de ação no mundo; pois, se a ação humana concreta não conseguirá nada além do que Deus pretende fazer sozinho, ela pode de fato ser considerada uma intromissão desconfiada por parte do homem... O que pode ser observado aqui em formação lembra antes o fenômeno posterior da gnose.”
“Vou introduzir, portanto, o termo metástase para designar a mudança na constituição do ser contemplada pelos profetas. E vou falar de experiências metastáticas, de fé, esperança, vontade, visão e ação metastáticas, e de símbolos metastáticos que expressam essas experiências... A constituição do ser é o que é e não pode ser afetada por caprichos humanos. Assim, a negação metastática da ordem da existência mundana não é nem uma proposição verdadeira na filosofia nem um programa de ação que pudesse ser executado. A vontade de transformar a realidade em algo que, por essência, ela não é representa a rebelião contra a natureza das coisas conforme ordenadas por Deus... Essa fé metastática, então, ainda que tenha se tornado articulada nos profetas, não se originou com eles, mas era inerente, desde os primeiros momentos da fundação mosaica, à concepção da organização teopolítica como o Reino de Deus encarnado num povo concreto e em suas instituições.”
Voegelin sempre tentou entender o cristianismo a partir de fora, de sua síntese neoplatônica, e sua tentativa de unir Atenas e Jerusalém fracassa inteiramente
“Metástase” tem mesmo o sentido de doença, de um sistema de consciência patológico que cresce em alienação da realidade, como um câncer. A bem da verdade, Voegelin estabelece uma distinção entre os “sonhos” metastáticos dos profetas bíblicos e os “pesadelos” metastáticos do gnosticismo moderno, que vão às vias de fato na busca da revolução e de seus banhos de sangue. Ainda assim, o quadro que ele oferece rejeita todo o eixo central da escatologia bíblica, desde Moisés, passando por Isaías e o profetismo bíblico, e a fé na Ressurreição física e no segundo advento de Paulo.
Voegelin e os protestantes
Essa recusa neopagã do cristianismo se projeta, posteriormente, na interpretação voegeliana da Reforma Protestante. Voegelin via na Reforma um momento crucial da história ocidental na qual os movimentos milenaristas e gnósticos até esse tempo suprimidos e marginalizados irromperam “com inesperada força e ampla frente, levando à divisão da igreja universal e à conquista gradual das instituições políticas nos Estados nacionais”.
Calvino e, posteriormente, o puritanismo foram objetos especiais do ataque de Voegelin. O filósofo considerava o interesse do reformador pela certitudo salutis, a certeza da salvação, como um esforço gnóstico contrário à verdadeira fé, atribuindo o mesmo erro a Lutero. Essa ênfase na certeza da salvação e na convicção doutrinária teria sido herdada pelos puritanos, que se tornariam imperialistas e dogmáticos, verdadeiros protótipos do gnosticismo moderno.
A crítica de Voegelin nesse ponto apenas confirma as suspeitas de que ele sempre tentou entender o cristianismo a partir de fora, de sua síntese neoplatônica, e sua tentativa de unir Atenas e Jerusalém fracassa inteiramente. Por não admitir a realidade de um Deus presente, que atua na história, responde a orações, realiza milagres e que em Cristo introduziu, dentro da história, a Nova Criação, só pode culpar a própria escatologia cristã pelas revoltas gnósticas modernas. E onde a fé nesse Deus emerge com a maior clareza e precisão – ou seja, no entendimento protestante da graça e da fé, e na certeza da salvação – ele vê a metástase. O ataque de Voegelin a Calvino é chocante:
“Assim, a obra de Calvino pode ser considerada o primeiro alcorão gnóstico criado de modo deliberado. Um homem capaz de escrever tal alcorão, capaz de romper com a tradição intelectual da humanidade porque está imbuído da fé de que com ele se inicia uma nova verdade e um novo mundo, deve encontrar-se num estado peculiar de patologia espiritual.”
Do ponto de vista da tradição teológica, trata-se de um ataque claramente absurdo, mas não se pode esperar muito nesse campo de alguém que já havia questionado Moisés, Isaías, os profetas e o próprio apóstolo Paulo. Digamos que, nesse campo, Calvino estaria em boa companhia.
A confusão voegeliana
Quanto à força revolucionária do calvinismo, a observação de Voegelin não é de todo errada; Michael Walzer também considera o puritanismo inglês como a fonte da moderna militância política progressista, e seu estudo demonstra a força da religião protestante na transformação histórica. Diz Walzer em The Revolution of the Saints:
“O santo calvinista agora me parece ser o primeiro daqueles agentes autodisciplinados de reconstrução social e política que têm aparecido tão frequentemente na história moderna. Ele é o destruidor de uma velha ordem pela qual não há qualquer necessidade de se sentir nostálgico.”
Mas, descontando os piores aspectos do puritanismo, poderíamos ver nele uma restauração do espírito profético judaico-cristão, que Voegelin tanto desprezava. Por esse ângulo, a crítica de Voegelin reforça a nossa confiança no valor do puritanismo. A Reforma, como um todo, foi uma manifestação do princípio profético-protestante, que confronta o espírito imperial, mas também renova a substância católico-messiânica da igreja.
Nem todo “conservadorismo” é uma opção para cristãos. Conservadorismos desescatologizados e sem o princípio-êxodo, como aqueles inspirados no sistema de Voegelin, não são alternativas viáveis
Nesse ponto, eu sugiro uma interpretação da confusão voegeliana: os falsos cristos do gnosticismo moderno emergiram precisamente como imitações da recuperação protestante da experiência cristã da acessibilidade de Deus, da afirmação profética do primado da Palavra de Deus, e da iminência escatológica. Se essa proximidade alimenta a antipatia de conservadores, especialmente católicos, em relação ao protestantismo, é porque esse conservadorismo, correndo em sentido oposto ao gnosticismo, acabou também se afastando do evangelho; e tanto mais quanto essa antipatia os coloca em alinhamento, absurdamente, com um filósofo neopagão.
Ora, a proximidade do anticristo em relação ao Cristo é algo que está perfeitamente dentro do esperado, e esse confronto deve ser encarado pela igreja como um destino histórico. O cristianismo não tem a alternativa de se desescatologizar para se prevenir do gnosticismo moderno. Não podemos silenciar o Êxodo, o profetismo bíblico, a esperança paulina e a apocalíptica do Novo Testamento para nos proteger da falsa religião do progresso. Pelo contrário, é mister ser ainda mais preciso e sério na incorporação da escatologia cristã de um modo espiritualmente sadio, que mantenha a segurança da fé e a demonstração da realidade da nova criação no entretempos, sem confundi-la com o seu duplo iníquo.
E aqui voltamos ao ponto defendido nessa coluna: nem todo “conservadorismo” é uma opção para cristãos. Conservadorismos desescatologizados e sem o princípio-êxodo, como aqueles inspirados no sistema de Voegelin, não são alternativas viáveis. Em outros termos: nenhuma ideologia política substituirá, para nós, uma verdadeira e bíblica teologia política.
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