Há alguns meses temos levantado nessa coluna os temas da mudança climática e da conservação ambiental. Num artigo, particularmente relevante para mim, recorri a Stephen Toulmin para refletir sobre a viabilidade de uma nova Cosmópolis reunindo natureza e sociedade a partir de uma imaginação ecologicamente consciente. Penso que, para além dos fatos científicos básicos sobre a crise climática e respostas políticas e econômicas imediatas, precisamos pensar a nossa civilização de forma crítica e conjuntural.
Para nos auxiliar nessas sendas, convidamos o professor Luiz Adriano Borges, professor da UTFPR-Toledo especializado em História da Tecnologia, Tecnologia e Sociedade, Filosofia da Ciência e da Tecnologia e Sociedade e Política no Brasil. Borges nos introduzirá numa reflexão sobre tecnologia, meio ambiente e cristianismo que se insere nesse propósito maior, de refletir sobre nossos projetos civilizatórios. Nossa jornada começa hoje, com uma breve apresentação do conceito fundamental de “Antropoceno”.
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O que é, afinal, o “Antropoceno”?
Lá se vão 54 anos desde a publicação do artigo “The historical roots of our ecological crises” (“As raízes históricas de nossa crise ecológica”), do medievalista Lynn White Jr., na conceituada revista Science. No texto, que causou furor na comunidade acadêmica, ele apontava que a visão cristã seria a culpada pela crise ambiental do século 20, argumentando que a Bíblia judaico-cristã asseverava a exploração do mundo natural pelo homem de acordo com suas necessidades. Desde sua publicação, muitos autores têm discutido se este argumento permanece. Estou no time dos que pensam que ele não se sustenta.
Nesse e nos próximos artigos, quero introduzir o leitor a uma visão cristã das questões ambientais e tecnológicas, enfocando em autores caros às humanidades. Como professor de História e Filosofia da Tecnologia e como pessoa de fé, enfrentei desde o início de minhas pesquisas essa interrogação: será que o cristianismo teria algo a contribuir nesse campo? Seria ele o causador de todos os males ambientais? Essas perguntas serão retomadas ao fim dessa pequena série.
Seguirei por três linhas: primeiramente, vamos explorar, ainda que de forma inicial, o importante conceito de Antropoceno; em segundo lugar, nosso holofote será lançado sobre a ideia de progresso; e, por fim, vamos encarar a questão chave: o que seria uma visão cristã filosófica e teológica acerca da tecnologia e meio ambiente.
Passemos, então, às definições básicas. Em 2000, o Prêmio Nobel de Química Paul Crutzen, então vice-presidente do Programa Internacional da Geosfera – Biosfera (IGBP), juntamente com o biólogo Eugene F. Stoermer, propôs, no boletim informativo Global Change 41 do IGBP, que a humanidade havia conduzido o mundo a uma nova época geológica, que deveria ser conhecida como “o Antropoceno”. Em 2002, um artigo relacionado, ampliando as ideias, foi publicado na revista Nature. Os autores assim definiram o conceito:
“Atribuir uma data mais específica ao início do ‘Antropoceno’ parece um tanto arbitrário, mas propomos a última parte do século 18, embora estejamos cientes de que propostas alternativas podem ser feitas (alguns podem até querer incluir todo o Holoceno). No entanto, escolhemos esta data porque, durante os últimos dois séculos, os efeitos globais das atividades humanas tornaram-se claramente perceptíveis. É o período em que dados recuperados de testemunhos de gelo glaciais mostram o início de um crescimento nas concentrações atmosféricas de diversos ‘gases de efeito estufa’, em especial o CO2 e o CH4. Essa data de início também coincide com a invenção da máquina a vapor por James Watt em 1784.”
A definição é boa o suficiente para nossos fins. Deste modo, o conceito de “Antropoceno” aponta para uma nova “era dos humanos”, demarcada simbolicamente como iniciando com a invenção de Watt. Geólogos tendem a arrastar a seta para a década de 1950, que é quando se consegue perceber as “pegadas” geológicas humanas de maneira mais marcante. Mas, para estudiosos da tecnologia, faz sentido essa demarcação no século 18 por apontar para uma virada definitiva de mentalidade na produção econômica. Foi ali que o desenvolvimento tecnológico começou a dar passos gigantescos e sem retrocesso. Como lembra Niall Ferguson em Civilização. Ocidente x Oriente, todos os indicadores da história econômica apontam o impressionante crescimento de produtividade e a consequente maior necessidade de recursos naturais.
Por qualquer índice que se meça, o crescimento é vertiginoso: população, concentração atmosférica de CO2, utilização de água, consumo de fertilizantes, consumo de papel, veículos motorizados, degradação ambiental, extinção de espécies... Como comenta Michael Northcott, professor de Ética Cristã da Universidade de Edimburgo, em The environment and Christian Ethics, o aquecimento global é diretamente relacionado ao consumo industrial de energia e à produção de gases estufa em economias industrializadas afluentes. Dois terços das emissões de carbono surgem da utilização de combustíveis fósseis para a geração de energia, transporte, aquecimento de casas, produção de cimento, mineração de gás e carvão e manufaturas industriais. A maior parte dessas emissões ainda se origina no Norte rico, enquanto que a queima de florestas, resultante principalmente de migração rural no Terceiro Mundo, contribui com um terço do aumento do dióxido de carbono.
Assim, a preocupação com a temática e os problemas do Antropoceno também se faz presente academicamente no Brasil. Nosso país e a América Latina em geral sofrem com desertificação, desflorestamento, erosão do solo e perda da biodiversidade, devido em parte à falta de regulação, vigilância e punição. Livros como Brasil, paraíso restaurável, de Jorge Caldeira, Julia Marisa Sekula e Luana Schabib; O Antropoceno e a ciência do sistema terra, de José Eli da Veiga; e Capitalismo e colapso ambiental, de Luiz Marques, são alguns materiais acessíveis que tratam do tema de maneira contextualizada.
O conceito de “Antropoceno” aponta para uma nova “era dos humanos”, demarcada simbolicamente como iniciando com a invenção da máquina a vapor
A filosofia e a história da tecnologia têm se enveredado na busca por compreender e fornecer soluções para os problemas do Antropoceno. A importante revista de pesquisas em filosofia da tecnologia Techné organizou um volume especial sobre o tema em 2017, atraindo pensadores importantes do campo, tais como Yuk Hui, Langdon Winner e Vincent Blok, entre outros, que atualizaram o debate até aquele momento.
Alguns filósofos vêm tentando, inclusive, redefinir o próprio conceito de tecnologia nessa nova era. Magdalena Hoły-Łuczaj e Vincent Blok sugerem, no artigo “How to deal with hybrids in the Anthropocene? Towards a philosophy of technology and environmental philosophy 2.0”, que a compreendamos “como uma categoria de atividades puramente humanas que são orientadas para criar ou adaptar coisas para servir a propósitos meramente humanos”. Agora, precisamos pensar “em uma era em que a tecnologia não visa mais destruir o ambiente, mas, pelo contrário, tenta servir a natureza e trabalhar com a natureza, ou pelo menos em harmonia com ele”.
É um grande desafio, cuja ação paliativa centrada na técnica não parece ser suficiente. Também é importante compreendermos a mentalidade que acaba justificando os abusos tecnológicos desse período que estamos vivendo para pensarmos em mudanças, e é a isso que voltaremos no próximo ensaio, “O que é progresso?”
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