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A Nota Técnica conjunta 2/2024-SAPS/SAES/MS, do Ministério da Saúde, publicada em 28 de fevereiro, produziu uma pequena tempestade de manifestações indignadas culminando com sua revogação, na quinta-feira.
Entre as manifestações, destaco a Nota de Repúdio publicada pela Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure), posterior à revogação. Na nota, a associação destaca a arbitrariedade do Ministério da Saúde, ao escorar-se na ignorância sobre a sensibilidade à dor como argumento para estender a possibilidade de aborto até o fim da gestação: “é fato indisputado na literatura que fetos na 10.ª semana gestacional já sentem dor e reagem a estímulos, com alguns autores posicionando tal marco na 6.ª semana. Embora haja discussões acadêmicas relevantes sobre onde se situa exatamente o marco de sensibilidade, posicioná-lo no momento do nascimento é absolutamente infundado cientificamente”. Argumento precaríssimo o do ministério; a admitir-se o abortamento após a 22.ª semana, a certeza deveria ser absoluta, e nada menos do que isso.
Mas a perversidade do raciocínio é mais profunda; a nota técnica assume ser a existência de dor ou sofrimento fetal o critério para decisões sobre a propriedade do abortamento. Trata-se de uma consideração ética extremamente esquálida, para dizer o mínimo.
A argumentação do Ministério da Saúde confessa silenciosamente a ausência de categorias morais superiores para lidar com o fenômeno do nascituro
Essa carência de musculatura moral diz muito, na verdade. Em primeiro lugar, confessa silenciosamente a ausência de categorias morais superiores para lidar com o fenômeno do nascituro. Ele não emerge como portador de qualquer dignidade especial, nem mesmo potencialmente. Seu descarte é condicionado pela mera ausência ou presença de sofrimento. Não é que tal consideração utilitarista seja absolutamente sem méritos ou aplicação; talvez haja situações nas quais essa consideração tenha peso secundário e força de desempate, como na escolha entre tratamentos paliativos com diferentes efeitos sobre a lucidez e a longevidade de um paciente. Mas, posta como consideração primária, produz uma absurda anomalia: animais sencientes, por serem capazes de sofrimento, teriam maior dignidade relativa do que um feto humano.
O que se nega ao nascituro é a dignidade humana. Essa negação emergiu de modo explícito no voto da ministra Rosa Weber em setembro do ano passado, em favor da descriminalização do aborto até 12 semanas de gestação. O voto de Weber favoreceu a ADPF 442 do PSol, na qual o nascituro fora descrito como “uma criatura humana intrauterina”. De um modo incompreensível, essa “criatura humana”, carente do status de “pessoa”, seria “matável”. Se perguntarmos pelo que define a sua “humanidade sem personalidade”, o que restaria? Algo que, diante da liberdade da mãe, é um nada, para todos os efeitos. Pois o que não carrega peso moral é... nada.
O valor moral procederia, portanto, da consciência ou da senciência, e não de sua natureza ou de sua teleologia. Alguns absurdos procederiam daí, evidentemente. Uns poucos experimentos mentais bastam: seria, por exemplo, imoral usar sexualmente um bebê se ele não tiver consciência do que está acontecendo e se for protegido do sofrimento? Seria crime usar sexualmente uma pessoa desmaiada, ou em coma, ou em estado de inconsciência? Seria errado cultivar corpos humanos completos, mas impedidos de completar o amadurecimento do córtex e as experiências de consciência e de dor, com o fim de produzir órgãos para transplantes? Seria injusto explorar terceiros de diversas formas se isso não lhes causar nenhum sofrimento consciente?
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Tais pseudodilemas morais não seriam resultado de avanços científicos ou tecnológicos, mas da tentativa de expandir o controle utilitário do homem moderno sobre a própria natureza humana, por meio do expediente de reduzir progressivamente a fronteira do humano. Assim o nascituro é uma “criatura humana” sem dignidade humana. Não é só imoral; é intelectualmente obtuso.
Os custos embutidos são altíssimos. Esconde-se sob a superfície uma grave enfermidade moral, para além da negação da dignidade humana do nascituro: a dissolução da ideia de humanidade. O que se quer na nota técnica do Ministério da Saúde é, declaradamente, a humanização do abortamento e a dignidade humana da mãe. Mas essa dignidade se reduz a duas categorias: liberdade e ausência de sofrimento. Permite-se fazer qualquer coisa se isso aumenta a autonomia e reduz o sofrimento. O que se perde no caminho? A própria substância do mundo, à qual se deveriam aplicar essas categorias de liberdade e sofrimento: a vida biológica, a corporeidade da pessoalidade, a maternidade. A moralidade do Ministério da Saúde é desincorporada e niilista; encolhe a definição de “humano”.
Existir, na era terapêutica, é se sentir bem. Fetos, no entanto, não sentem nada e, portanto, não são nada. Não é difícil entender para onde nos levará essa imaginação moral pervertida
O padrão de julgamento moral do ministério tem alto potencial de ressonância no mundo contemporâneo devido à Revolução Afetiva e à ascensão da sociedade terapêutica, sem ideais morais superiores à busca de autenticidade e de bem-estar emocional. No imaginário moral dominante entre as elites culturais, cães e gatos são filhos porque têm sentimentos; a moralidade sexual, a família e a amizade foram subjugadas pela busca de satisfação individual; e as políticas públicas precisam implementar a felicidade de todos. Existir, na era terapêutica, é se sentir bem. Fetos, no entanto, não sentem nada e, portanto, não são nada.
Não é difícil entender para onde nos levará essa imaginação moral pervertida, se estendida a idosos e portadores de diversas doenças. Na esteira desse discurso virá a eutanásia.
É verdade que a nota técnica foi revogada; mas, segundo a justificativa do próprio governo, por razões puramente burocráticas. Isso apenas corrobora o que temos visto por diversos ângulos, há anos: no coração do lulopetismo habita um perigoso vazio moral.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos