Volta e meia retomo, nessa coluna, os assuntos ligados à imaginação moral cristã e ao problema da falta de uma doutrina social entre os cristãos brasileiros. No caso de muitos católicos, isso ocorre porque perdem tempo cavando poços no deserto das especulações ultraconservadoras ou na Teologia da Libertação, em vez de lerem as encíclicas; no caso de muitos evangélicos, porque nossas denominações não têm mesmo uma doutrina social.
Mas, à parte das nossas pobrezas em filosofia e teologia moral, o protestantismo enfim produziu algumas maravilhas. E uma delas é a obra seminal do teólogo anglicano Oliver O’Donovan, Resurrection and Moral Order, de 1994. Para introduzir o leitor ao homem, convidei o amigo Ruan Bessa, doutorando no Calvin Theological Seminary e estudioso de O’Donovan.
Redescobrindo a Criação na Ressureição: Oliver O’Donovan e sua importância para o cristianismo brasileiro
Imagine uma explicação da vida moral que traga alegria ao seu coração como uma boa taça de vinho, que satisfaça o entendimento na busca pela verdade e fortaleça a vontade na busca e realização daquilo que é bom, que lhe dá gosto de compartilhar com seus amigos. Isso descreve bem o que encontrei no clássico Resurrection and Moral Order (“Ressurreição e Ordem Moral”) do teólogo anglicano Oliver O’Donovan.Eu gostaria de resumir o argumento central do livro e arriscar uma aplicação às nossas realidades religiosas tupiniquins.
Oliver O’Donovan, nascido em 1945, é conhecido por seu trabalho no campo da ética e suas contribuições em teologia política (histórica e contemporânea). O’Donovan lecionou no Wycliffe Hall, Oxford entre 1972 e 1977; no Wycliffe College, em Toronto, de 1977 a 1982; na Universidade de Oxford, entre 1982 e 2006; e na Universidade de Edimburgo, de 2006 a 2013. O’Donovan é um ávido intérprete das Escrituras, profundo conhecedor da tradição cristã e da história do pensamento ocidental.
Ressureição e Ordem Moral é um esboço para uma ética evangélica. O livro não aborda tópicos específicos de teologia moral, como família, eutanásia e sexualidade, mas coloca seu holofote sobre os princípios teológicos a partir dos quais uma ética evangélica deve operar. O’Donovan apresenta e amarra os conceitos morais básicos (ex. ordem moral, autoridade moral, campo moral etc.) de forma arquitetônica e sistemática.
Uma ética do reino em oposição à criação, como alguns pareciam defender, não faria sentido nenhum. Tal ética seria dualista, criando uma oposição entre a criação e a redenção. Isso seria gnosticismo e não cristianismo
No fim da década de 80, teólogos morais concordavam que a Bíblia era central à ética teológica; o impasse era se ela deveria ser articulada como uma ética da criação ou uma ética do reino. Por exemplo: basear a ética na lei natural, segundo uma linha muito adotada por jusnaturalistas católicos no Brasil, por exemplo; ou nas realidades escatológicas, referentes ao propósito salvador de Deus, e disponíveis nas práticas da Igreja.
O’Donovan buscou superar este impasse. Para tanto, afirmou que a ressurreição é o fundamento da ética evangélica. Na ressureição de Jesus, Deus declara um “não” à escolha de Adão pelo pecado e pela morte, e a futilidade à qual a criação foi submetida. Deus também declara um “sim” definitivo à vida como destino final da humanidade. A ressureição de Jesus é, portanto, o ato cabal no qual Deus vindica a ordem criada, restaura a posição da humanidade dentro dela, e promete sua transfiguração escatológica.
Logo, uma ética do reino em oposição à criação, como alguns pareciam defender, não faria sentido nenhum; “não poderia de forma alguma estar interessada no mesmo reino escatológico que o Novo Testamento proclama”. Tal ética seria dualista, criando uma oposição entre a criação e a redenção, de forma que o movimento da história não seria o cumprimento e transformação da criação, mas a sua negação. Mas isso seria gnosticismo e não cristianismo. Por outro lado, uma ética da criação em oposição ao reino “não poderia ser uma ética evangélica”, pois ela é incapaz de perceber que as boas novas de Deus em Cristo Jesus são justamente a respeito da realização plena da criação no reino de Cristo. A ressurreição, portanto, conduz a criação ao Reino, e inaugura o Reino na criação.
O’Donovan define sua posição como um realismo moral evangélico centrado na ressureição, resumindo-a em três princípios básicos: primeiro, ela é realista, pois a ação intencionada é determinada pela verdade acerca do mundo no qual agimos; segundo, ela é evangélica, pois esta verdade é constituída pelo que Deus fez em favor do seu mundo e da raça humana em Jesus Cristo; e terceiro, o ato de Deus que alforria a nossa ação é focado na ressurreição de Jesus dentre os mortos, que restaurou e cumpriu a inteligibilidade da ordem criada.
A ordem criada apresenta duas direções fundamentais discernidas na experiência cotidiana: tipos (ordem genérica) e fins (ordem teleológica). Exemplo, a banana possui uma relação genérica com a laranja: ambas são do tipo fruta. Mas ela também possui uma relação teleológica com o macaco: serve-lhe de alimento. Um mundo de particulares, sem ordem genérica ou teleológica, não seria um universo. Entretanto, a ordem que discernimos é real ou não? Se não for real, esta seria uma imposição à realidade, seja da vontade (voluntarismo) ou da razão humana (racionalismo). Por exemplo: o casamento não teria fins naturais, tais como a fidelidade e a procriação. Nós é que teríamos imposto essas ideias ao conceito de casamento.
Em ambos os casos, as nossas divergências morais estariam fadadas ao fracasso, a um jogo de poderes ad infinitum. Em contrapartida, e levando a sério a doutrina da criação, O’Donovan afirma que a ordem criada é real, pois nela Deus estabelece uma ordem moral objetiva e trans-histórica, que funciona como matriz para a vida moral humana.
O imaginário moral do cristianismo brasileiro parece ser assombrado por um gnosticismo perturbador, que nos impede de elaborar uma posição robusta acerca da vida e da tarefa humana no mundo
O’Donovan define a moralidade como a participação humana na ordem moral. Entretanto, se esta é vindicada na ressureição de Jesus Cristo, como pode a nossa participação nesta realidade ser uma boa nova? Por um lado, há o pecado humano, que implica não apenas a confusão acerca da ordem moral, mas sua recusa ativa. Por outro lado, a ressureição, além de ser um ato passado e a transfiguração escatológica prometida algo futuro, é um fato externo ao agente moral. É aí que entra a doutrina do Espírito Santo. O Espírito seria quem torna a obra realizada por Deus em Cristo – objetiva do nosso ponto de vista – subjetiva ao agente e à comunidade moral. O’Donovan nota que a obra do Espírito é uma só, mas tem dois lados: torna a realidade da ordem restaurada e transformada em Cristo presente e autoritativa ao agente moral, e também capacita e evoca a resposta não coerciva do agente moral à ordem criada, isto é, a liberdade. Logo, autoridade e liberdade são correlatas, e a inteligibilidade de ambas está ancorada na realidade restaurada pela ressureição de Cristo.
O’Donovan conclui a obra descrevendo a forma da vida moral. Esta inclui tanto as ações humanas quanto o caráter do agente moral. O amor seria o princípio que confere ordem unificadora tanto ao campo de ação moral quanto ao caráter do agente moral. Em outras palavras, o amor é tanto o cumprimento da lei moral (ação) quanto a forma das virtudes (caráter).
Resurrection and Moral Order é um livro denso e rico, e várias questões poderiam ser exploradas, mas este resumo basta para arriscar uma breve aplicação ao cristianismo brasileiro. E com isso vamos à nossa discussão prática: o imaginário moral do cristianismo brasileiro parece ser assombrado por um gnosticismo perturbador, que nos impede de elaborar uma posição robusta acerca da vida e da tarefa humana no mundo. Há uma confusão entre a ordem do conhecimento e a ordem da realidade. O’Donovan aponta que os valores e finalidades naturais não são percebidos claramente à parte de Jesus Cristo. Entretanto, a criação possui finalidades, tanto naturais como escatológicas. O pecado afeta nosso conhecimento da ordem moral, contudo, não a esvazia de suas finalidades e valor ontológico intrínseco. A redenção transcende a criação sem abandoná-la. Mas, se esse for o caso, precisamos tecer uma breve crítica a três opções éticas insatisfatórias no cristianismo brasileiro.
Primeiro, temos os cristãos que abandonam a criação. Entretanto, como o mundo é a realidade ordenada na qual a vida humana deve responder às obras de Deus, não é possível de fato abandoná-lo. Aí o mundo volta, retorna em alguma uma espécie de subcultura evangélica. Quem conhece esse ambiente religioso conhece isso muito bem. “Não vou para a balada do ‘mundo’ porque vou para a balada gospel!”
Segundo, há os cristãos que abraçam a criação, ao menos teoricamente. Entretanto, como lhes falta a ideia de uma ordem criada, precisam impor valores e fins a ela, com uma atitude muito pragmática. Consequentemente, temos uma guerra entre vontades, e a política tornou-se o campo de luta atual. A história é a dialética de um criticismo total ad infinitum. Todo movimento irá trazer o seu oposto. Lula traz Bolsonaro, que traz Lula de volta!
É impossível amar a Cristo sem amar a realidade que ele redimiu; pois o amor redentor de Cristo é um com seu amor atencioso pela criação que Deus afirmou ser boa
Por fim, há os cristãos que abraçam a criação apelando ao conceito de “graça comum”, de uma bênção divina e preservadora no mundo. Entretanto, a ideia de uma graça comum, sem mais, se torna facilmente uma forma de justificar a integração cristã no mundo sem os distintivos cristãos; sem uma tensão crítica com os aspectos de nossas sociedades que estão em contradição com a realidade e com o evangelho.
Em contraste, O’Donovan convida o cristianismo brasileiro a repensar a moralidade à luz da ressurreição. O evangelho – o anúncio daquilo que Deus fez pela criação e a humanidade na ressureição de Jesus Cristo – é, ao mesmo tempo, o anúncio de cura da nossa razão prática, a reabilitação da vida moral em Jesus, pelo Espírito, na ordem criada por Deus. O ponto central é que a ressureição me devolve a mim mesmo ao me devolver à realidade. É impossível amar a Cristo sem amar a realidade que ele redimiu; pois o amor redentor de Cristo é um com seu amor atencioso pela criação que Deus afirmou ser boa. Essa é a chave para uma ética evangélica capaz de explicar o porquê de valer a pena criar filhos, participar na arte, na ciência, entre outras coisas, ainda que essas sejam tarefas penúltimas, coisas comuns da vida temporal. O cristianismo brasileiro precisa redescobrir a criação, mas o caminho para tanto é sempre a afirmação da ressureição!
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