Detalhe de “Moisés e Aarão com os Dez Mandamentos”, de Aron de Chavez.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público
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“Desde o próprio dia em que a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi adotada pelas Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948, o mundo não pôde deixar de compará-la aos Dez Mandamentos. Felizmente, esse relacionamento entre os dois tem sido geralmente confirmado.” (René Cassin, 1968)

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Um dos mais bem-estabelecidos consensos do moderno movimento dos Direitos Humanos é o de que essa moderna consciência de direitos fundamentais, bem como o aparato discursivo, legal e institucional de que dispomos para a sua defesa, emergiram como resposta a abusos perpetrados pela força do Estado.

Indubitavelmente foi esse o caso com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (DUDH). A desgraça da Segunda Grande Guerra e os crimes do fascismo revelaram de forma inequívoca o papel de grandes articulações político-partidárias e do Estado no cometimento de graves crimes contra a humanidade, como os que se deram nos campos de concentração nazistas. Os construtores da DUDH tinham em mente o desafio e a oportunidade de afirmar a dignidade e prioridade da pessoa humana sobre quaisquer razões e Estado.

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Para René Cassin, a questão dos princípios era muito mais radical e mais primitiva, e incluía, em sua perspectiva – por incrível que pareça –, os Dez Mandamentos

Essa era também a opinião clara e pública do advogado e ativista francês René Cassin (1887-1976), o primeiro redator da Declaração de 1948 (com a ajuda de outros, como o teólogo cristão Charles Habib Malik), agraciado com o Prêmio Nobel da Paz em 1968. Em sua Nobel Lecture pronunciada em 11 de dezembro de 1968 – 20 anos e um dia após a aprovação da DUDH –, Cassin, não surpreendentemente, ocupou o primeiro terço de sua fala a uma reconstrução panorâmica do impacto inicial da Primeira Grande Guerra (1914-1918), dos esforços de muitos em defesa de vulneráveis durante o entreguerras, e da terrível desgraça da Segunda Grande Guerra (1939-1945). Segundo Cassin, os esforços feitos até aquele momento se dirigiam a grupos particulares. Mas as ruínas da guerra forçaram uma nova consciência global:

“Abruptamente, um mundo que havia testemunhado tais sérias, sistemáticas e inumeráveis violações que puderam ser cometidas sob as ordens de uma autêntica gangue encontrou-se diante de um problema de insuspeitada amplitude: proteger o homem todo e proteger os direitos de todos os homens.”

Algo muito similar se desenrolou na América Latina e no Brasil. Foi precisamente o período das ditaduras militares, sob a égide do Plano Condor, o que nos permitiu experimentar em pequena escala a força de Estados opressivos e violadores de direitos fundamentais. E a partir dessa experiência histórica se desenvolveu e amadureceu nosso sistema regional de proteção de direitos humanos (o CIDH, no âmbito da OEA, e a RAADH, no âmbito do Mercosul) e nosso próprio sistema nacional.

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Se a Segunda Guerra oportunizou uma consciência universal dos Direitos Humanos, foi a Primeira Guerra o que despertou a consciência de René Cassin. Havendo lutado no conflito, ele e outros companheiros sentiram-se moralmente impelidos a defender os direitos daqueles que sofreram os piores efeitos da conflagração; mas Cassin, pessoalmente, viu-se diante de um desafio maior: o de erguer uma batalha de princípios.

“Foi como resultado desse primeiro empreendimento que meus mais eminentes colegas e eu decidimos que era essencial voltar aos primeiros princípios e promover o respeito pelo supremo compromisso daqueles que haviam se sacrificado para que essa guerra viesse a ser ‘a última’.”

Esses primeiros princípios envolviam, naturalmente, as questões básicas da dignidade humana, dos direitos fundamentais, da universidade desses direitos, da não discriminação, do internacionalismo etc. Mas essa não é toda a história. Para Cassin, a questão dos princípios era muito mais radical e mais primitiva, e incluía, em sua perspectiva – por incrível que pareça –, os Dez Mandamentos.

Uma “carta fundadora” do Antigo Israel

“O pacto é a invenção política do livro do Êxodo... Não há precedente para um tratado entre Deus e um povo inteiro ou para um tratado cujas condições são literalmente as leis da moralidade.” (Michael Walzer, Exodus and Revolution)

René Cassin era um judeu francês, e como tal fora profundamente tocado pelos maus tratos que a comunidade judaica recebera na Europa, desde o Caso Dreyfus, que ele acompanhou diretamente, até o Holocausto. Era um judeu crente, de família sefardita, primeiro presidente da Alliance Israelite Universelle, promotor do tema dos direitos humanos no universo judaico; e, em sua opinião, o respeito aos direitos humanos teria raízes bíblicas.

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Mas, antes de examinarmos as opiniões de Cassin sobre a lei judaica e os direitos humanos, quero repassar com meus leitores os elementos do “catecismo”: de que se trata esses “Dez Mandamentos”, afinal? E que relação isso tem com as discussões sobre teologia política nessa coluna?

O Decálogo, como o conjunto da lei de Deus, deve ser interpretado como um sistema de proteções divinas para Israel, para garantir que eles desfrutem o bem e tenham a sua liberdade preservada

Na aliança do Sinai o Senhor deu a Israel a sua lei, tendo como carta fundadora os Dez Mandamentos, ou Decálogo, “As Dez Palavras”. O decálogo tem sido tradicionalmente interpretado como um conjunto de “duas tábuas”, a primeira contendo as palavras referentes às obrigações diante de Deus, e a segunda com as obrigações mútuas dos seres humanos. Daí, também, o resumo da lei ser apresentado como “amar a Deus acima de todas as coisas” e “amar ao próximo como a si mesmo” (Mateus 22, 34-40).

O Decálogo, como o conjunto da lei de Deus, deve ser interpretado como um sistema de proteções divinas para Israel, para garantir que eles desfrutem o bem e tenham a sua liberdade preservada. Ou, em outros termos, para evitar que Israel transforme Canaã em outro Egito ou outra Babel.

“No futuro, quando teu filho te perguntar: Que significam os testemunhos, estatutos e preceitos que o Senhor, nosso Deus, vos ordenou?
Responderás a teu filho: Éramos escravos do faraó no Egito, mas o Senhor nos tirou de lá com mão poderosa; e, diante dos nossos olhos, o Senhor fez sinais e maravilhas, grandes e terríveis, contra o Egito, contra o faraó e contra toda a sua casa; e nos tirou de lá para nos estabelecer e nos dar a terra que havia prometido a nossos pais com juramento.
O Senhor nos ordenou que obedecêssemos a todos esses estatutos, que temêssemos o Senhor, nosso Deus, para o nosso bem em todo o tempo, para que ele nos preservasse em vida, como estamos hoje.”
(Deuteronômio 6,20-24)

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A lei preserva a liberdade do povo de Deus orientando-o sobre como servir a Deus. Grandes seções da Torá são dedicadas à regulamentação do culto no tabernáculo de YHWH, além das porções legais sobre a relação entre os cidadãos. A preservação da liberdade tem, assim, relação direta com a disciplina da adoração coletiva, que poderia disciplinar o coração do povo e afastá-lo da cultura “imperial”.

É certo que a lei bíblica e próprio Decálogo não são exatamente textos jurídicos, no sentido da jurisprudência romana, por exemplo, ou das leis modernas. Como John Walton demonstra em The Lost World of the Torah: Law as Covenant and Wisdom in Ancient Context, a lei bíblica é um conjunto de natureza moral e sapiencial, uma “instrução” ou “ensino”. É claro que essa instrução tinha força jurisprudencial, mas muito mais no sentido de exemplaridade e orientação moral. Yedidia Stern aponta essa qualidade da lei bíblica com bastante propriedade:

“A lei bíblica tem um caráter distintivamente ético, talvez uma qualidade utópica. Não é estritamente uma ‘lei’, no sentido usual. Ela estabelece obrigações para as quais não pode haver um correspondente direito exigível... Nesse sentido, a linguagem das obrigações é potencialmente mais ampla e mais ambiciosa do que a linguagem dos direitos. Enquanto a linguagem dos direitos visa permitir o equilíbrio de interesses numa corte, o discurso bíblico das responsabilidades cria uma diferente consciência. Assim, como Moshe Silberg argumenta, a lei bíblica se dirige ao cidadão, mais do que à corte ou ao Estado.”

Nesse sentido, então, a aliança mosaica, a Torá e os Dez Mandamentos, em particular, não deixam de ser o documento fundador de uma comunidade política nacional, segundo notou Michael Walzer; mas é claro que essa comunidade não é meramente política. Trata-se de uma comunidade espiritual e moral, estabelecida pelo ato salvador de Deus e confirmada por meio do compromisso coletivo com a lei/instrução divina. Essa comunidade existe, então, ao redor de uma sabedoria divina, que orienta a vida com Deus e o próximo.

John Witte: a “Reforma” dos direitos

As concepções mosaicas de pacto e de lei tiveram grande importância para o desenvolvimento dos direitos políticos modernos. Essa é a tese de John Witte Jr., professor na Emory University Law School, diretor do Center for the Study of Law and Religion e editor da série Emory Studies in Law and Religion, a mais importante no campo.

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Segundo Witte, com a ruptura da unidade política e religiosa, a Europa buscava uma nova base para a organização política. As guerras religiosas levaram aos textos revolucionários calvinistas, e Theodorus Beza (1519-1605, sucessor de João Calvino em Genebra) escreveu uma obra muito importante, sobre “o direito dos magistrados”.

As concepções mosaicas de pacto e de lei tiveram grande importância para o desenvolvimento dos direitos políticos modernos

Em sua obra Beza defendeu: 1. a organização política inspirada na “federação das tribos de Israel”, como um modelo de federalismo; 2. o casamento, descrito como um “pacto” (e não apenas sacramento), tornando-o uma instituição “laica” e protegida publicamente; 3. revisou criticamente as teorias de revolução constitucional e magistrados inferiores, apresentando sua própria visão; 4. empregou o Decálogo como base para fundamentar os direitos e deveres dos cidadãos; e 5. defendeu a escolha dos governantes pelo povo.

De acordo com Witte, Beza lançou as bases para uma teoria de pacto político constitucional, baseada na proteção dos direitos individuais e na separação de esferas da sociedade (Estado, igreja, “família”). Essa nova política cria condições para uma futura “sociedade civil”, e também para uma futura compreensão da justiça que considere os direitos humanos. Seus estudos confirmam e expandem, portanto, as ideias de Michael Walzer em Exodus and Revolution.

O caso do Decálogo é de nosso particular interesse aqui. Em sua investigação, John Witte determinou que uma série de teólogos políticos na época de Beza começou a ver nos Dez Mandamentos um sistema de proteções legais, guardando o direito de Deus e os direitos das pessoas, o que permitiu que Beza os utilizasse como ponto de partida para a organização política de Genebra. Ele via nos mandamentos, assim, garantias divinas de proteção à vida, ao casamento, à propriedade, à segurança jurídica e contra a ganância. Em The Reformation of Rights: Law, Religion and Human Rights in Early Modern Calvinism, Witte escreve:

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“Em adição ao requerimento de obediência às leis de Deus e da natureza, a aliança política requeria dos governantes políticos a proteção e promoção dos ‘direitos e liberdades’ e ‘privilégios e liberdades’ de seus súditos. ‘As pessoas não foram criadas em benefício dos governantes, mas os governantes em benefício das pessoas’, famosamente proclamou Beza. E, a fim de proteger as pessoas, seria requerido dos governantes proteger e respeitar seus direitos básicos. Como Goodman, Beza buscou no Decálogo uma fonte conveniente e um sumário dos direitos mais básicos das pessoas – seus direitos à religião, vida, propriedade, casamento, paternidade e reputação. Mas ele buscou também, para além do Decálogo, a ‘lei natural’, a ‘decência comum’, a ‘equidade natural’, e a lei comum das nações para preencher a lista de direitos naturais das pessoas que o pacto político protegia.”

Esse fato tem um valor mais amplo para a vida moral, mas também para a legislação: um povo liberto deve ter sua liberdade protegida por um pacto, uma constituição na qual leis sejam estabelecidas e respeitadas. As leis não são inimigas da liberdade, mas as condições de proteção da liberdade.

Com essas observações em mente, podemos voltar ao nosso Nobel da Paz.

René Cassin e o Decálogo

Cassin foi bastante explícito sobre o que pensava da lei de Deus em From the Ten Commandments to the Rights of Man (“Dos Dez Mandamentos aos Direitos do Homem”). Por um lado, ele deixou absolutamente claro que o Decálogo não teve nenhum papel formal na construção da DUDH, que buscava ser o documento mais universal possível; e, por outro lado, reconheceu de forma inequívoca que o Decálogo não opera na linguagem dos direitos e das liberdades individuais, mas na linguagem dos deveres. Mas isso não significa que ele não teve um papel substancial na composição da declaração. Isso ocorreu, no entanto, de forma indireta.

Segundo o relato de Cassin, encarregado de redigir o primeiro esboço da declaração, a presidente da Comissão, Eleanor Roosevelt (esposa do presidente Franklin Roosevelt), recusou a sua proposta de incluir na carta a linguagem dos “deveres”. Cassin observou que ela fora muito influenciada pelas declarações Americana (1778) e Francesa (1789), cujas ênfases eram unilateralmente liberais, e que, no afã de reagir ao coletivismo fascista, “objetou veementemente” à ideia.

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Mas Cassin obteve da comissão o apoio para uma alternativa: retomar a discussão sobre os deveres depois de enumerar todos os direitos. Assim, muito embora o espírito liberal se mostrasse inicialmente avesso a qualquer inspiração do espírito do Decálogo, abriu-se uma janela.

O Decálogo não opera na linguagem dos direitos e das liberdades individuais, mas na linguagem dos deveres. Mas isso não significa que ele não teve um papel substancial na composição da declaração

O discurso de Cassin prossegue, então, explicando a natureza do Decálogo como o fundamento da fé monoteísta e dos princípios de moralidade e justiça da fé judaica; o sentido de universalidade, proveniente da Imago Dei, a crítica da servidão, pela experiência no Egito, e a ideia de pacto. Mas o advogado mostrará também as contribuições e falhas de outras culturas – grega, romana, chinesa e cristã –, destacando que apenas com a Reforma e o Renascimento alcançamos finalmente um tipo de consciência da liberdade humana que permitira o nascimento dos direitos humanos:

“A Reforma e o Renascimento é que inauguram uma nova era, nos séculos 15 e 16. A primeira restaura o direito de ler a Bíblia e proclama, no plano religioso, a liberdade de consciência e pensamento, obtendo sucesso em fazer essas ideias triunfarem em alguns países.”

Mas apenas com a Revolução Francesa essa nova consciência a respeito de direitos universais de todos os seres humanos finalmente viria à luz. Inicialmente recusada pela Igreja Católica e por muitos cristãos, por sua associação ao espírito antirreligioso da revolução, sua essência foi incorporada na Rerum Novarum de Leão XIII em 1893 e por outras igrejas cristãs, dali em diante. Infelizmente, no entanto, o progresso dos direitos e mesmo seu reconhecimento no cristianismo não impediu as desgraças da guerra e do Holocausto trazidas pelo fascismo, “o maior assalto jamais tentado contra os princípios da Revolução Francesa”. E assim o mundo se uniu para aprovar a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.

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Cassin reconta essa história com um propósito curioso: “é apropriado fazermos uma comparação entre o Decálogo, que é o ponto de partida, e a presente Carta, que é nosso temporário ponto de chegada”. Qual a principal diferença entre os dois? O Decálogo fala dos deveres; mas a tradição dos direitos fala das liberdades e prerrogativas. No entanto, a tradição da Revolução Francesa omite os deveres e exalta o individualismo. O próprio Cassin tentou trazer esse equilíbrio, o que foi inicialmente recusado.

“Com a conclusão da lista dos direitos e liberdades fundamentais, os redatores da Declaração se viram confrontados pela insistência dos países socialistas de que a menção expressa fosse feita, no que se tornou o Artigo 27, dos deveres do indivíduo para com a comunidade. Eles foram apoiados pelos países latino-americanos, cujos representantes haviam adotado uma ‘Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem’ em Bogotá, no inverno de 1948.”

Cassin não insistiu para que esses deveres fossem especificados e enumerados na carta, mas obteve a menção mais geral sobre sua existência no princípio e no fim do documento final. E os que conhecem a DUDH sabem do que tratam tais deveres:

“Colocando a nossa atenção no modo como a Declaração concebe os deveres do indivíduo para com seu próximo, nota-se que ele formula o mais importante dos deveres mútuos nos seguintes termos: ‘Eles devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade’.”

Os Dez Mandamentos, a partir de sua recepção e interpretação cristã, ajudaram a preparar as condições morais e espirituais para que a Declaração Universal dos Direitos Humanos finalmente viesse à luz

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A declaração de Cassin é realmente fascinante. Ela indica que a compreensão judaico-cristã (pois aqui René Cassin e Charles H. Malik estavam em pleno acordo) realmente operou no sentido de trazer equilíbrio à DUDH, cristalizando a ideia de deveres, herdeira do Decálogo, em um “princípio da Fraternidade”. Ora, sabemos que mesmo em sua primeira encarnação, a de 1789, a “fraternidade” já era herdeira do comunitarismo cristão. Curiosamente, portanto, os judeus e cristãos, ao defender os direitos, se alinhavam com os liberais; e, ao defender a fraternidade, apoiaram os socialistas de então.

Convenhamos, nem tudo é perfeito aqui; a reconstrução histórica assumida por René Cassin, do decálogo à DUDH, é indubitavelmente incompleta e parcialmente desencaminhadora. Ela não considera, em primeiro lugar, o peso da tradição dos direitos naturais como uma das fontes dos modernos direitos humanos, exposta de forma definitiva pelo historiador Brian Tierney. Também ignora a pré-história dos direitos humanos no cristianismo patrístico, discutida por Nicholas Wolterstorff, de Yale. E, embora reconheça uma contribuição da Reforma Protestante, parece ignorar o papel crucial dos novos pactos constitucionais estabelecidos na Europa protestante, segundo as descobertas de John Witte Jr.

Mas seria anacrônico reprovar excessivamente Cassin por seu retrato unilateral; seu trabalho foi anterior a esses desdobramentos mais recentes. Ademais, esses estudos indicam que os Dez Mandamentos, a partir de sua recepção e interpretação cristã, ajudaram a preparar as condições morais e espirituais para que a DUDH finalmente viesse à luz.

Consideremos o trabalho de Witte: os Dez Mandamentos tiveram na imaginação moral europeia, no sentido de formular os próprios direitos e liberdades fundamentais, e não apenas os deveres. Além disso, lançaram as bases para a limitação do poder estatal em benefício da pessoa individual. Desse modo a inspiração no Decálogo, que levou Cassin a introduzir o tema dos “deveres” na DUDH, teve na verdade o efeito de reaproximar a declaração de suas fontes e afastá-la do radicalismo laicista de 1789. Assim, o papel do Decálogo foi ainda maior do que o advogado judeu conseguia enxergar, e suas ênfases, a partir da fé judaica, não foram intervenções extrínsecas, mas reajustes orgânicos.

A lei de Deus e os direitos humanos hoje

Diante do que expusemos até aqui, é ainda pertinente, hoje, uma aproximação entre o Decálogo e os direitos humanos? A posição de Cassin a respeito me parece clara e luminosa como o sol:

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“O emblema da Declaração Universal relembra o dever da fraternidade humana, inspirado pelo preceito mestre: ‘Ama o teu próximo como a ti mesmo’. Possa ela participar, a despeito de sua origem puramente humana, da grandeza do Decálogo e surgir como sua digna extensão.”

Por tudo o que sabemos, a DUDH de 1948, os pactos de 1966 e outras declarações posteriores são até “demasiadamente” humanas quando não, em alguns momentos, avessas à fé religiosa. A Igreja Católica Romana e outras igrejas cristãs têm notado com preocupação, por exemplo, uma expansão desordenada do “princípio antidiscriminatório”, de um modo que o torna hostil à experiência comunitária normal das religiões.

Em minha perspectiva, a ascensão do “homem psicológico” (na definição de Philip Rieff) e da cultura W.E.I.R.D., com seu ethos individualista e sentimentalizado, radicalizou o individualismo liberal e deslocou a imaginação moral do movimento internacional de direitos humanos em direção à cultura dos “direitos sem deveres”. Por isso o dialeto hegemônico dos direitos humanos, hoje, afastou a DUDH de suas raízes espirituais e consolidou os temores de René Cassin.

No entanto, essas raízes são inegáveis. E vão além do Decálogo, alimentando-se da própria antropologia bíblica:

“Os direitos humanos são parte integral da fé e da tradição do judaísmo. As crenças de que o homem foi criado à imagem divina, que a família humana é uma, e que todas as pessoas estão sob a obrigação de lidar de forma justa umas com as outras são fontes básicas do compromisso judaico com os direitos humanos.”

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Se isso vale para os judeus, a partir da Torá, do profetismo e da Bíblia hebraica, por que não seria verdadeiro para o cristianismo? Seria o caso de afirmar que, como João Batista preparou o caminho para Jesus, a luta judaica por direitos humanos de certo modo aplainou o caminho para a doutrina social cristã?

Se não respeitamos nem cuidamos da pessoa humana, não cremos realmente no Deus do Decálogo

Diante disso, vejo como uma tarefa urgente e prioritária, para estudiosos, defensores de direitos humanos e teólogos cristãos, em particular, a luta para reequilibrar o discurso e a prática moderna de promoção e educação em direitos humanos. Ao mesmo tempo, precisamos atualizar a nossa teologia moral, especialmente nos arraiais evangélicos, de modo a aproximar ética teológica e o cuidado integral da pessoa humana.

Sugiro, algo ousadamente (ou talvez nem tanto, já que foi a proposta do próprio redator da DUDH), que os cristãos tratem a Declaração Universal dos Direitos Humanos como uma extensão do Decálogo; um esclarecimento de seus princípios e uma derivação de suas implicações morais. Que leiamos os direitos humanos partindo explicitamente de nossa fé em Deus e nas Escrituras. Que constituamos a nossa theologia civilis contemporânea em diálogo crítico – diálogo e antítese – com o moderno movimento de direitos humanos, demonstrando que sem a fé em Deus não há dignidade, nem fraternidade, nem liberdade, nem direitos humanos; e que, se não respeitamos nem cuidamos da pessoa humana, não cremos realmente no Deus do Decálogo.