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Guilherme de Carvalho

Guilherme de Carvalho

Guilherme de Carvalho é teólogo público e cientista da religião, com foco na articulação entre cristianismo e cultura contemporânea. É Pastor da Igreja Esperança em Belo Horizonte e diretor de L’Abri Fellowship Brasil. Foi diretor de Promoção e Educação em Direitos Humanos no Governo Federal.

Os moralistas estão chegando

mauricio souza
Maurício Souza em treino da seleção masculina de vôlei antes do início dos Jogos Olímpicos de Tóquio. (Foto: Miriam Jeske/COB)

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“Os fundamentalistas são agressivos na mesma medida em que são vulneráveis.” (Peter Berger)

Enquanto, na semana passada, eu tentava pôr toda a minha atenção em assuntos relacionados à crise ambiental e à importantíssima COP-26 – pautas que, em meu julgamento, deveriam estar no centro de nossas conversas de fim de ano –, a esquerda identitária, sempre consistente na sua alegação de que pautas de “costumes” são pautas de direita, prestou seu desserviço forçando a saliência do tema LGBTQIA+ no pior momento possível, para promover a sua própria agenda de costumes. Porque, se há um assunto que não sai da cabeça da esquerda hoje, é esse: como dar educação moral e cívica aos brasileiros e, especialmente, aos evangélicos.

A saliência foi a movimentação persecutória e punitiva contra o atleta do vôlei Maurício Souza, pressionando patrocinadores e recrutando a imprensa liberal-progressista para pressionar o Minas Tênis Clube e forçar a demissão do jogador. É claro que, com o leite derramado, só restava limpar a sujeira. O assunto alcançou altíssimo engajamento nas mídias sociais. Mesmo assim, recusei-me a escrever sobre isso na semana passada, adiando o assunto por uma semana.

Não é o caso de revirar os detalhes do processo aqui, mas as acusações de “crime de homotransfobia” contra Maurício Souza não procedem. Embora se possa questionar a propriedade diplomática de suas intervenções, e especular sobre suas motivações ocultas, na forma externa elas não passam de expressões de uma sensibilidade moral conservadora diante da promoção da cultura LGBTQIA+, e do questionamento, num debate contemporâneo legítimo e em pleno curso, da participação de mulheres trans em esportes femininos. Os denunciantes do jogador claramente identificam a objeção moral aos valores da cultura LGBTQIA+ como intrinsecamente discriminatória, alegando razões jurídicas. Mas essa identificação é suspeitíssima; o que quer que seja a homotransfobia, não pode plausivelmente ser a mera objeção moral a comportamentos sexuais e a narrativas de autodefinição identitária. Se o direito brasileiro decidir realmente entrar por esse cano, com certeza não desaguará em um lugar glorioso.

Se há um assunto que não sai da cabeça da esquerda hoje, é esse: como dar educação moral e cívica aos brasileiros e, especialmente, aos evangélicos

Caso similar, poucos dias depois, foi o do cancelamento público da filósofa Catarina Rochamonte, por sua coluna da última segunda feira na Folha de S.Paulo: “Homofobia ou Opinião? O Direito de Maurício Souza”. No artigo, a colunista apontou a irracionalidade da celeuma e o problema crucial, que é a natureza precária e mal definida do termo “homofobia”. A indefinição do termo permite alegar que seu único, puro e inocente propósito seria proteger um grupo contra discriminações; mas à medida que se passa a boiada e se muda o regramento, temos testemunhado que o termo visa algo mais: criar um tabu e criminalizar a objeção moral. É uma cunha na pedra. E com isso ficamos na mão de “hermenêuticas jurídicas controversas”, como diz Rochamonte.

Mas a nova celeuma nem se deu por conta disso; o que acendeu o fogo foi a aparição da expressão “homem biológico”. A colunista comentou o incômodo de Maurício Souza com a “presença de um homem biológico no time feminino de determinada modalidade desportiva”. Pronto, Catarina Rochamonte passou a ser acusada de crime de transfobia, inclusive por gente respeitada como o professor Thiago Amparo, da FGV. Conservadores e moderados começaram a se perguntar sobre como deveríamos nos referir ao fato de que pessoas trans ainda pertençam geneticamente a seu sexo de origem. Talvez os denunciantes pensem que ela deveria dizer “mulheres trans”. Mas para Rochamonte isso não funcionaria, se seu propósito – como o de Maurício Souza – foi apontar que o sucesso da transformação sexual é na verdade apenas parcial, e que essa operação deixa como resto uma assimetria de capacidade física entre a mulher trans e as outras mulheres em competições desportivas. Ademais, é o sexo biológico o que causa essa assimetria, não a má vontade dos conservadores. Tampouco ajudaria muito dizer “machos biológicos” ou “pessoas geneticamente masculinas”.

E enquanto nos entregamos a esses exercícios escolásticos, sobe à mente a irresistível sensação de que essa controvérsia de palavras é perfeitamente tola.

Como é tolo o propósito desse policiamento fascistoide: controlar a linguagem, e criminalizar um conjunto muito especial de opiniões – aquelas sobre assuntos de caráter moral – empregando, como expediente, o inflacionamento do princípio antidiscriminatório. Ele é esticado até cobrir os valores sagrados do liberalismo expressivo – o bem-estar individual, a liberação sexual, o “self protegido” e autárquico – de modo que eles sejam, não apenas civilmente protegidos, mas psicologicamente protegidos da dúvida e do questionamento. O Estado se torna, então, o braço armado da cultura terapêutica moderna, da qual o movimento LGBTQIA+ é apenas a ponta de lança.

Esse expediente empregado pelos identitaristas é, quando não desonesto, carente de autoconsciência. Promove narrativas de autoconstituição identitária que, como Charles Taylor mostrou, necessariamente se organizam a partir de bens supremos (ou “hiperbens”) e são, por isso, intrinsecamente morais; afirma a prioridade da felicidade afetivo-sexual individual sobre deveres familiares, religiosos ou sociais, aderindo abertamente à “relação pura” descrita por Anthony Giddens, como núcleo de sua ética sexual; contesta a reprovação moral cristã contra certas práticas sexuais; prega que “toda forma de amor é válida”... e, depois de tudo isso, nega veementemente e de cara lavada que seu discurso seria “moral”! Retruca, sob argumentos variados, como o de que se trata de assuntos psicológicos e de “identidade”, como se isso dissolvesse magicamente o caráter obviamente moral da coisa toda. A falta de autocrítica é exasperadora.

Para mim parece claro que a veemência dos oráculos pronunciados contra a liberdade de expressão e de crença e contra as posições conservadoras é o típico ruído para compensar outro ruído. É uma tentativa de eliminar a vertigem.

O Estado se torna o braço armado da cultura terapêutica moderna, da qual o movimento LGBTQIA+ é apenas a ponta de lança

“Pode-se dançar exuberantemente em volta da árvore da liberdade. Depois de algum tempo, contudo, a vertigem da libertação abre caminho para uma inquietação crescente. É como se não houvesse chão para se manter; nada é certo, e não há mais guias confiáveis para dizer como se deveria viver. Agora se busca uma nova libertação, uma libertação da antiga libertação que abolira as velhas coações institucionais. O que se segue tipicamente é a reconstrução de instituições, sejam elas antigas ou novas.” (Peter Berger)

Pois é isso; desfeito o establishment judaico-cristão no campo da moralidade afetivo-sexual, das identidades e dos “costumes”, de repente a “diferença” deixa de denotar a existência de alternativas, para significar uma única alternativa, a ética do liberalismo expressivo, da qual as moralidades sexuais e as identidades afetivas do movimento LGBTQIA+ são apenas um símbolo sagrado, com função similar às crianças no cristianismo. A diversidade, refratada pela lente do progressismo liberal, deixa de incluir a divergência. A tolerância torna-se, então, desnecessária, e as liberdades fundamentais de expressão e de crença são severamente qualificadas. Tudo para criar um novo establishment, numa nova institucionalização.

Essa é a verdade, o óbvio ululante, dançando aos olhos de todos, mas supreendentemente invisível a algumas mentes: se, com apelos aos direitos humanos, a jurisprudências, à ADO26, a Jesus Cristo, à deusa Afrodite, a Santo Expedito ou até às almas penadas, se sustenta que a objeção moral à cultura LGBTQIA+, às suas moralidades afetivo-sexuais e às suas narrativas de autoconstituição identitária é um gesto imoral e criminoso, segue-se que essa cultura, com suas moralidades sexuais e entendimentos da identidade humana, tornou-se normativa, a regra e a lei, a nova torah de nossa sociedade.

Nesse caso, o que temos não é o reconhecimento de que os artigos 18 e 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos são limitados por outros direitos, como alegou falaciosamente Gabriela Prioli, mas que esses artigos ficam suspensos em tudo o que se refere a assuntos de afetividade, moralidade sexual, família e identidade. Nesses assuntos a religião só pode dizer o que o liberalismo expressivo permitir.

E com isso fica proibido o cristianismo.

“O fundamentalismo é um esforço para restaurar a certeza ameaçada. O termo é geralmente aplicado a movimentos religiosos, mas é importante compreender que há muitos fundamentalismos seculares – políticos, filosóficos, estéticos e mesmo culinários (como no caso de alguns vegetarianos) ou atléticos (como na fidelidade a um determinado time esportivo). Praticamente qualquer ideia ou prática pode se tornar o fundamento de um projeto fundamentalista, em níveis muito diferentes de sofisticação... há fundamentalismos reacionários e progressistas... Os fundamentalistas são agressivos na mesma medida em que são vulneráveis.” (Peter Berger)

Praticamente qualquer ideia... não é este o caso? Os valores do liberalismo expressivo são isso, uma ideia, e uma ideia moral que não aceita divergências. Que não pode ser questionada, ou evocará o desejo de silenciar, criminalizar e encarcerar. Pois o sagrado projeto de moralizar o mundo com a sua moralidade liberal não poderá progredir, se houver gente subversiva à solta, semeando incertezas e dúvidas.

Os moralistas estão chegando, meus amigos.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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