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Guilherme de Carvalho

Guilherme de Carvalho

Os usos da náusea natalina

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O Natal – dizem-nos – é um tempo de paz e fraternidade. Depende; para muita gente é um tempo de lutos, conflitos, gastar dinheiro ou passar raiva com a hipocrisia da sociedade. Um mal-estar só.

Mas meu artigo ignorará os “desafetos psicológicos” do Natal; não vou me referir aqui a pessoas traumatizadas com festas, seja porque passaram por tragédias pessoais nessa data e não conseguiram mais dissociar as coisas, ou porque seus natais foram encontros hipócritas de famílias hipócritas, ou porque terminavam sempre em bebedeira e violência. Esse tipo de coisa pode acontecer em qualquer data. O que me interessa é outro tipo de náusea natalina: aquela que tem a ver com a festa em si; ou seja, com o aniversariante.

Que festa é essa?

“Não interessa! Festejar é bom, e se tanta gente faz festas nessa data, por que não podemos fazer também? Além disso é feriado!”

Essa é uma reposta por demais comum. Lembram-nos de que antes de Cristo celebrávamos o solstício; e podemos sempre celebrar qualquer coisa: a amizade, o bom vinho, os sucessos pessoais durante o ano, as boas relações com os familiares. “Cale a boca, e boas festas!

Nem em sonho eu quereria disputar seu direito de festejar o que quiser e quando quiser. Mas é necessário tomarmos esse cálice amargo: isso não é o Natal, e não merece nem o nome nem o vínculo com a tradição. Churrascos se pode fazer sempre; bebedeiras também.

O amigo Paulo Cruz publicou há uns anos um artigo bastante honesto sobre seu desinteresse pelo “Natal”, que lembra um pouco as críticas levantadas pelo próprio C.S. Lewis. Em sua memória, as festas de fim de ano eram muito boas, mas ao mesmo tempo envolviam algum tipo de mal-estar, que eu chamaria de “náusea natalina”, e que ele só foi compreender com a conversão ao cristianismo.

Algumas famílias estão celebrando o Natal cristão, e outras estão festejando mesmo que Jesus Cristo não existisse. Não estamos celebrando a mesma coisa

Depois de ser iluminado pela graça, ele não conseguiu mais ver as festas do mesmo jeito. Pareciam-lhe (nas minhas palavras) coisas frias, insossas, hipócritas. Uma festança enorme sem significado algum. Comidas, sorrisos, presentes, transmitindo uma profundidade que não estava ali, como a tela de uma tevê. Claro, ele mesmo guardava algumas lembranças ruins associadas à data, mas esse fator seria pessoal demais para avaliar toda a comemoração.

Ouso dizer que o problema de Lewis, de Paulo Cruz e de outros amigos que conheci, reportando a mesma história, é que suas famílias e as de seus amigos celebravam outra festa. E isso se repete anualmente: algumas famílias estão celebrando o Natal cristão, e outras estão festejando mesmo que Jesus Cristo não existisse. Então vamos, corajosamente, beber esse cálice amargo: Não estamos celebrando a mesma coisa.

Odiando o Natal

Os pagãos antigos não tinham ilusões a respeito. Por tudo o que sabemos, o Natal originalmente foi o nascimento de um problema. Herodes, que entendia mal, mas entendia alguma coisa, fez o que pôde para matar o problema na raiz, assassinando recém-nascidos inocentes na cidade de Belém. Agora imagine isso: muitas mães, pais e irmãos que perderam seus bebês certamente odiaram Herodes; mas provavelmente não morreriam de amores por Jesus e sua família, a causa de seu infortúnio.

O Natal é um problema porque confirma uma história, e apenas uma: a história das promessas abraâmicas, do Deus que tirou o seu povo do Egito, através de Moisés, da aliança perpétua de Iahweh com o rei Davi. O Natal não celebra um ciclo pagão de renascimento (ainda que a data, como um palimpsesto, indique uma resposta nova a um anseio antigo), mas o nascimento de um rei muito específico, e uma reorganização histórica e política preocupante. Tentaram matá-lo ainda bebê, e viriam a ter sucesso pouco mais de 30 anos depois. O Natal foi o princípio de um grande problema.

Não foi por isso que Jesus Cristo acabou crucificado? Ele não era um mensageiro da harmonia romana. Como o pastor presbiteriano Tim Keller observou em certa ocasião, Jesus não era só um cara legal que ajudava as pessoas. “Você não crucifica caras legais; você crucifica ameaças.”

O Natal é o nascimento de uma ameaça; da ameaça final a modos de vida individuais e coletivos, e até mesmo a civilizações baseadas na autoafirmação e na vontade de poder. Seu modo de vida contrário a isso inaugurou uma nova cidadania, uma pátria por Agostinho de Hipona denominada Civitas Dei. Isso era o que Herodes temia, e isso é o que detestam os adoradores do poder puro, sejam eles políticos integristas ou fascistas, revolucionários de esquerda ou teóricos neonietzscheanos da vontade de poder: o caminho da cruz.

Detestam, em última instância, o Governo de Deus, aquilo que Jesus sinalizava, como novo Rei, e que praticou. Ao viver sua vida inteira pertencendo a outro reino e respondendo a outro governo, Jesus envergonhou as autoridades políticas e religiosas terrenas, relativizando-as, desmistificando-as e tornando-as “inoperantes”, segundo a perspicaz interpretação do “messiânico” proposta por Giorgio Agamben. Jesus deu uma banana para Herodes, Pôncio Pilatos e as autoridades religiosas de Israel; e depois ressuscitou! Doravante, quem precisa temê-las?

As autoridades não temem festas de Natal; o que elas temem é a fé natalina.

Amando o Natal... até demais

Naturalmente, em nossa sociedade “judaico-cristã”, Jesus Cristo já está bem incorporado. Temos até o Cristo Redentor no Rio de Janeiro! E a expansão da sociedade de consumo não deixaria ilesos os símbolos cristãos: se não pode vencê-los, junte-se a eles!

O capitalismo de consumo não desistirá do Natal; não enquanto ainda render lucros. Não tenho dúvidas de que muitas empresas amam o Natal com todas as suas forças, com toda a sua mente e com todo o seu entendimento! E é assim que muitos Natais param em pé, mantidos pelas escoras anuais da compra e venda de presentes. É um caminho eficiente para remover o terrível do Natal, que é o nascimento de um novo rei e a obsolescência de nossos modos de vida-sem-Deus: domesticá-lo, ou comê-lo por dentro, ou transmutá-lo em outra coisa.

Vou ilustrar meu ponto repetindo aqui a crítica que fiz no Twitter à campanha de certa companhia brasileira de perfumaria (mas isso valeria para qualquer outra dessas ridículas campanhas anuais, como a de certo banco brasileiro e de outras ordens religiosas modernas): no comercial, temos um garoto negro que aos poucos desperta para o domínio da “branquitude” em todo o simbolismo do Natal, mas que enfim cresce e se torna ele mesmo um Papai Noel negro para a sua família. Achei bonitinho e me senti representado. Até aí, tudo bem.

O capitalismo de consumo não desistirá do Natal; não enquanto ainda render lucro

O problema foi o slogan apresentado ao fim do vídeo; um brinde inocente para deixar quentinhos os corações das presas natalinas: “seja tudo o que você desejar”. Ora bolas, o que isso tem que ver com o Natal?

Temos aqui um belíssimo exemplo do capitalismo emocional: lucrar vendendo a cultura terapêutica e uma definição afetivizada da existência. Evidentemente, tal brinde sentimentalista é o contrário do cristianismo e do Natal, e de tudo o que a Encarnação do Verbo de Deus significa. Você não pode ser o que quiser, porque nem todo modo de vida é válido; no Natal celebramos o nascimento daquele que ignorou todos os modos de vida – inclusive a sua própria vontade – para viver sob o Governo de Deus. Celebramos aquele que nos ensinou a orar: “seja feita a tua vontade”.

Essa ideologia narcisista é totalmente anti-Deus e anti-Cristo. Por isso mesmo, devo dizer que ela é totalmente incompatível com a mensagem da justiça racial, da qual se apresenta falsamente como aliada. Pois o fato é que, se alguém é preto ou pardo, ou índio ou chinês, ele deve ser o que é, gostem ou não os outros, e goste ou não o próprio indivíduo; porque é uma questão de realidade, não de desejo.

É por isso que a luta antirracismo, a questão do gênero e a questão da orientação sexual têm respostas totalmente diferentes para o cristão. O gênero não tem variabilidade infinita, porque tem raízes na diferença sexual, que tem bases evolutivas e é binária; e tanto orientação sexual quanto comportamento sexual são questões inerentemente éticas, também interpretadas diferentemente, dependendo do tipo de filosofia moral que se defende. E a liberação sexual não é um universal; é um programa político de certa elite cultural.

Mas por que entramos nesse assunto? Porque sabemos que companhias como a supracitada têm a missão e o prazer de confundir essas categorias, porque isso é lucrativo. O identitarismo e sua matriz moral, o individualismo expressivo, desejam dar uma resposta unificada para todos esses problemas, e o capitalismo emocional favorece isso, porque isso é nada menos e nada mais que a própria ideologia do consumo aplicada aos valores e à vida afetiva. É por isso que, nesses termos, a justiça social se torna interessante e sedutora para a publicidade moderna. Essa versão da “justiça social” não contradiz, mas constitui o próprio establishment capitalista e anticristão. E assim o narcisismo político se esforçará para colonizar todas as datas e ritos importantes, bem como o nosso direito de família, as nossas políticas públicas, nosso entretenimento e o próprio Natal com seus valores distorcidos.

Esses movimentos natalinos do mercado e da publicidade corrompem, em primeiro lugar, o sentido do Natal; e, como o Messias é o Senhor do mundo e da vida real, corromper o Natal conduz à corrupção da vida concreta e da própria justiça social. E assim o Cristo, Senhor de todos os negros e de toda luta verdadeira contra o racismo, é negado em nome de outro deus: o Self moderno.

O Natal é um problema porque confirma uma história, e apenas uma: a história das promessas abraâmicas, do Deus que tirou o seu povo do Egito, através de Moisés, da aliança perpétua de Iahweh com o rei Davi

Os romanos furavam as mãos dos cristãos com pregos; o capitalismo emocional chupa as suas almas de canudinho, por meio de discursos sentimentalistas melosos. Qual é o desafio para o cristão negro? Descolar a representatividade racial, que tem, sim, uma importante função simbólica, dessa visão distorcida do Self que o capitalismo emocional embala com seus produtos. E, no Natal, qual seria a melhor forma de se livrar dessas falsidades a não ser celebrando o verdadeiro Natal?

Os amores hipócritas pelo Natal devem ser desmascarados. Mas com isso não digo que o sistema de consumo seja inerentemente mau, nem que devamos suspender a compra de presentes. Antes que me acusem de ser inimigo do mercado, esclareço: muito antes pelo contrário! Devemos dar presentes, mas pelas razões certas. No meu julgamento os mercados e governos podem seguir viagem, desde que se adaptem ao que o Natal é, e não o inverso. Mas isso depende dos próprios consumidores.

Natal pra quê?

O fato de que não estamos todos celebrando a mesma festa torna mais compreensível que muitos tenham optado por “cancelar” o Natal: “Celebrar o quê?

Com a pandemia a todo vapor, luto em tantas famílias, empobrecimento econômico e psicológico em larga escala, desordem política e uma presidência pouco interessada na vida humana, não haveria o que celebrar. Ademais, os deveres da cidadania e do amor natural por parentes e amigos exige o máximo de responsabilidade nas medidas de prevenção e na evitação de aglomerações.

Sobre as últimas considerações eu não teria nada a dizer. Certamente todos os cuidados devem ser tomados, e grandes festas de família deveriam estar fora de questão. Embora difícil e doloroso em alguns casos, é melhor manter as festas em pequenos círculos familiares.

Mercados e governos podem seguir viagem, desde que se adaptem ao que o Natal é, e não o inverso. Mas isso depende dos próprios consumidores

Mas a verdadeira festa de Natal não é nem de longe obscurecida por lutos, pobrezas, sofrimentos físicos e psicológicos, e muito menos ainda pela desordem política. Estranhamente, tais infelicidades são como trevas que fazem as razões do Natal ganharem intensidade ainda maior. O apagamento de outras luzes torna crucial e indispensável a luz do Natal; ao menos para aqueles que creem em Jesus Cristo.

Não me entendam mal; não quero dizer que as tristezas e lutos da vida devam ser negados; não proponho nenhum polianismo. A questão é, pelo contrário, a expansão da consciência. Os desastres da vida são oportunidades de sobriedade, na medida em que nos desiludem sobre a transitoriedade das coisas e sobre nossas corruptas hierarquias de valores. Descobrimos que algumas coisas muito prezadas não são tão importantes assim, e que coisas pouco amadas eram na verdade muito importantes. Descobrimos, acima de tudo, a insuficiência de uma vida sem sentido.

Para que o Natal seja Natal, deve fazer parte de uma história maior, de um enquadramento de sentido, no qual lemos a história como um todo, incluindo questões macroestruturais, a política nacional e desastres como a pandemia; dentro do qual lemos nossas vidas pessoais, com suas vicissitudes, e no qual interpretamos nossos sofrimentos e alegrias subjetivas. Não há como celebrar o Natal sem ser cristão. E sob essa perspectiva a náusea natalina pode ser uma coisa boa; é o meio do caminho para o sujeito entender que sem Jesus Cristo não há Esperança nem razão para essas festas de fim de ano e, enfim, para festa nenhuma. Se o Natal lhe causa náuseas, faça bom uso delas; a luz do Natal só brilha para quem tem os olhos abertos.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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