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O tempo é próprio para assuntos pascais; retomei-os desde meados de março, começando pelo problema da relação entre esperança e felicidade: o filósofo ateu André Comte-Sponville admite que de fato ateísmo é desespero, mas que isso não impede a felicidade. O que impede a felicidade é depender dos outros – especialmente um outro que “não existe”, ou seja, Deus.
Dos valiosos insights de Comte-Sponville, penso que o melhor é sua percepção de que esperança e felicidade têm um tipo de relação interna. É tão forte a amarração que o filósofo precisa cortar a corda, para que a sua felicidade não afunde com seu desespero.
Quanto ao sucesso dessa operação, duvido; parece-me mero paliativo. Sem Deus não há esperança, e a felicidade que se obtém daí é um arremedo, em parte porque dependerá de sermos menos realistas sobre o lado infernal da existência neste mundo, e em parte porque precisaremos nos desapegar do seu lado celestial. Ademais, o afastamento da Esperança cristã não libertou a civilização ocidental, como observei no artigo da semana passada sobre a religião do progresso, tão característica do secularismo moderno. Seguiremos tratando dessas falsas esperanças modernas por algumas semanas, mas hoje não. Hoje é dia de falar da verdadeira esperança.
Porque sabemos
Se Deus não existe, não há esperança; e assim, para o ateísta, o assunto estaria encerrado. Estaria, em outro mundo; porque neste existe a Páscoa, e sabemos que Cristo ressuscitou dos mortos. Nem todos sabem, concedo; mas muita gente sabe, quase meio mundo! Nós, cristãos, sabemos. Esse é um conhecimento coletivo, possuído pela igreja, que tinha desde o princípio a aguda consciência da inutilidade de sua piedade sem a ressurreição de Cristo:
“Mas se não há ressurreição dos mortos, também Cristo não ressuscitou. E, se Cristo não ressuscitou, então a nossa pregação é inútil e também a vossa fé. Assim, somos também considerados falsas testemunhas de Deus, afirmando que ele ressuscitou a Cristo, a quem não ressuscitou, se de fato os mortos não ressuscitam.
Porque, se os mortos não ressuscitam, Cristo também não ressuscitou. E, se Cristo não ressuscitou, a vossa fé é inútil e ainda estais nos vossos pecados. Logo, os que morreram em Cristo também estão perdidos. Se a nossa esperança em Cristo é apenas para esta vida, somos os mais dignos de compaixão entre todos os homens.
Mas, na verdade, Cristo ressuscitou dentre os mortos, sendo ele o primeiro entre os que faleceram.” (1Coríntios 15,13-20)
Se Deus não existe, não há esperança; e assim, para o ateísta, o assunto estaria encerrado. Estaria, em outro mundo; porque neste existe a Páscoa, e sabemos que Cristo ressuscitou dos mortos
André Comte-Sponville, nosso ateu honesto, é também admirador de Agostinho e de Paulo, autor do hino imortal sobre o amor na primeira Carta aos Coríntios. Mas Paulo, não menos honesto que Comte-Sponville, admitiu que sem a ressurreição a pregação e a fé seriam inúteis, os pecados seriam imperdoáveis, os mortos estariam perdidos e seríamos todos, enfim, miseráveis. Mas, sobretudo, ele mesmo e todas as outras testemunhas de Cristo seriam fraudes, falsificações. A fé não seria só erro; seria farsa. Mas Paulo não estava para traquinagens religiosas; selou o seu testemunho com a própria vida e o próprio sangue, como o fizeram inúmeros mártires da primeira geração do cristianismo.
Certamente é possível descer a discussões técnicas sobre a confiabilidade histórica desse testemunho, em estudos como o de Craig Blomberg sobre os Evangelhos, na obra científica de Richard Bauckham sobre esses registros como “testemunhos de testemunhas oculares”, ou nas hábeis discussões evidenciais do teólogo de Mainz Wolfhart Pannenberg e de seu aluno e filósofo William Lane Craig. Haverá especial esclarecimento sobre a fatualidade e o significado da ressurreição de Cristo no trabalho magisterial do biblista N.T. Wright sobre a o assunto. Como ele dirá, ao fim de sua discussão detalhada de mais de 700 páginas sobre a evidência bíblica e histórica:
“... eu concluo que o historiador, de qualquer persuasão, não tem opção a não ser afirmar tanto o túmulo vazio quanto os ‘encontros’ com Jesus como ‘eventos’ históricos em todos os sentidos que nós esboçamos no capítulo 1: eles tomaram lugar como eventos reais; eles foram eventos significantes; eles são, no sentido normal requerido pelos historiadores, eventos comprováveis; historiadores podem e devem escrever sobre eles. Nós não podemos explicar o cristianismo primitivo sem eles.”
Mas, acima de tudo, é preciso compreender a verdadeira fonte da fé da igreja na ressurreição: a visão do próprio Cristo ressurreto e o compromisso dessas testemunhas oculares. A cola que prega as páginas do evangelho na mente e no corpo dos cristãos é o sangue coagulado dessas testemunhas, forçando a igreja, pelos séculos dos séculos, ao dever intelectual e moral de crer. O conhecimento do fato da ressurreição, e do próprio Cristo ressurreto, é um saber factual, mas também relacional e comunitário. A igreja sabe, o Espírito Santo derramando em Pentecostes aviva a sua memória e a faz saber continuamente, e por isso também nós, cristãos protestantes, católicos e ortodoxos, também sabemos.
Sabemos como uma grande árvore, na qual os ramos mais novos e mesmo as folhinhas verdes recebem uma seiva rica, atravessando galhos que se unem a um largo tronco, apoiado em raízes que o observador externo não consegue ver. Mas a árvore está aí; uma árvore de séculos, uma vida transmitida sem interrupção, um cântico que nunca cessou de ser cantado.
Mais do que um palpite
Naturalmente, o crer em Deus é um fenômeno mais comum, e algo mais amplo do que a afirmação da ressurreição de Cristo, mas a ressurreição modifica e consolida essa fé de tal modo que a natureza do debate com o ateísmo desesperado é totalmente alterada. Afinal, até mesmo a crença na existência de Deus não nos daria ainda qualquer segurança sobre o futuro, e seguiríamos dependentes do tipo de futuro que seríamos capazes de produzir agora. Saber que Cristo ressuscitou, no entanto, tira a discussão do campo do otimismo, do palpite ou da aposta. E isso produz, em resultado, a experiência que, segundo Comte-Sponville, só pode ser produzida por um presentismo desesperado: a alegria.
Paulo não estava para traquinagens religiosas; selou o seu testemunho com a própria vida e o próprio sangue, como o fizeram inúmeros mártires da primeira geração do cristianismo
“Bendito seja o Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo,
que nos regenerou para uma viva esperança, segundo a sua grande misericórdia,
pela ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos, para uma herança que não
perece, não se contamina nem se altera, reservada nos céus para vós, que sois
protegidos pelo poder de Deus, mediante a fé, para a salvação preparada para se
revelar no último tempo.
Nisso exultais, ainda que agora sejais necessariamente afligidos por várias
provações por um pouco de tempo, para que a comprovação da vossa fé, mais
preciosa do que o ouro que perece, embora provado pelo fogo, redunde em louvor,
glória e honra na revelação de Jesus Cristo.
Pois, sem tê-lo visto, vós o amais e, sem vê-lo agora, crendo, exultais com
alegria inexprimível e cheia de glória, alcançando o objetivo da vossa fé, a
salvação da vossa alma.” (1Pedro 1,3-9)
É verdade que a esperança tem de aguardar, e que sua herança ainda não pode ser possuída; e é verdade que o tempo presente é o tempo de muitas aflições, que provam a nossa fé. O ateísta para por aqui, mas essa é só metade da história: a ressurreição, que é um fato passado, não nos deu um palpite, mas um conhecimento sobre o nosso futuro. Esse saber nos faz exultar de alegria hoje, como um gozo antecipatório, como diz Pedro.
Na verdade, o filósofo ateu admite que essa antecipação alegre pode ser racional, desde que antecipe aquilo que eu, sozinho, posso fazer. Discutimos isso na semana retrasada: se está em meu poder realizar algo, não é irracional antecipar seus efeitos. Mas essa antecipação só existe, então, como uma coisa bastante solitária, já que não posso contar com os outros com absoluta segurança. A ética da felicidade desesperada parece uma coisa bastante solitária – e triste.
A ressurreição, que é um fato passado, não nos deu um palpite, mas um conhecimento sobre o nosso futuro. Esse saber nos faz exultar de alegria hoje
O que me fez descrer do filósofo foram as memórias de criança. Eu me lembro de quando a enorme caixa de presente foi posta sob a árvore de Natal, com o meu nome. Eu não podia abri-la; teria de esperar mais de um mês! Mas em minha alegre agonia, eu sabia que o presente era meu, e que desfrutá-lo seria uma questão de tempo. Qualquer criança que tenha pais de verdade sabe que a esperança não depende apenas do que podemos alcançar por nós mesmos. A desesperança é uma dor de crianças solitárias. O problema do ateísta não é a estrutura da antecipação; é o universo solipsista que ele construiu para si.
Pois, se Cristo ressuscitou, não estamos sozinhos; o nosso presente se enche com a memória passada desse milagre, e com a antecipação estonteante da nossa própria ressurreição, até o ponto de transbordar de alegria. Comte-Sponville – e Agostinho, antes dele – está certo: o que temos agora é apenas o presente; mas o presente dos cristãos é enorme, vasto como o universo; o alfa-e-ômega o preenche e o alarga com o seu passado e o seu futuro, fazendo caber nele a eternidade! Não nego que seja possível um tipo precário de felicidade no desespero; mas, como disse C. S. Lewis, é a felicidade de crianças ignorantes, brincando com castelos de lama no meio da sujeira e dispensando o convite de um feriado na praia.
Nós, cristãos, não esperamos apenas porque desejamos, mas também porque sabemos.
Essa alegria tem, assim, um caráter inteligente; resulta de um ato de julgamento racional, de uma constatação a respeito do futuro e da confiabilidade de Deus: “Mas, na verdade, Cristo ressuscitou dentre os mortos, sendo ele o primeiro entre os que faleceram” (1Co 15,20). Ele é as primícias, sinalizando o nosso futuro e abrindo o caminho para nós.
Ora, sendo verdadeiro o testemunho dos apóstolos, fica claro que a esperança cristã não é um mero estado desejante, wishful thinking, fantasia de uma realidade paralela e metastática, mas uma relação cognitiva com o nosso futuro. Não, evidentemente, uma relação do mesmo tipo que as relações com o que vemos com os olhos e tocamos com as mãos, mas uma relação do mesmo tipo que a nossa relação com as pessoas que importam para nós, e que impõe a fé na sua palavra, no seu gesto e no seu testemunho.
Nós, cristãos, não esperamos apenas porque desejamos, mas também porque sabemos.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos