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Não foi por desinteresse que empurrei para a última semana do ano o assunto dos 100 anos da Semana da Arte Moderna (e os 200 da Independência). Procrastinei pela perplexidade; mas também aguardando o ângulo certo, que finalmente encontrei. No ocaso de uma gestão patológica que envelheceu rápido, e com os bárbaros progressistas nos portões, recorro a Paulo Prado.
“Numa terra radiosa vive um povo triste. Legaram-lhe essa melancolia os descobridores que a revelaram ao mundo e a povoaram. O esplêndido dinamismo dessa gente rude obedecia a dois grandes impulsos que dominaram toda a psicologia da descoberta e nunca foram geradores de alegria: a ambição do ouro e a sensualidade livre e infrene que, como culto, a Renascença fizera ressuscitar.” (Retrato do Brasil)
Paulo Prado, esse mesmo, fustigado em inúmeras resenhas de jornal como um acabado pessimista, um desprezador da brasilidade. Paulo Prado, o homem por trás da Semana de Arte Moderna de 1922, amigo de Mário de Andrade, que lhe dedicou Macunaíma no mesmo ano do Retrato do Brasil (1928). Paulo perdeu a amizade com Oswald de Andrade por conta desse livro irritante. Não é a leitura certa para esse momento miserável?
O argumento básico de Paulo Prado é o de que, por conta da luxúria sexual e da cobiça pelo ouro, o Brasil se constituiu como uma nação fraca e doente
Embora admitindo ser a obra um clássico, Fernando Henrique Cardoso chamou Paulo Prado de “fotógrafo amador” por seu Retrato. Acusou-o de ter escrito uma “consagração do subjetivismo romântico”, por seu quadro pessimista do brasileiro e sua solução inegavelmente romântica para o país: ou a Guerra ou a Revolução. E, além disso, amador; em sua descrição dos problemas nacionais, Paulo Prado lutava nos garimpos do modernismo à caça do caráter nacional, buscando a originalidade e autenticidade do brasileiro, aquilo que seria o “nosso”, e aperfeiçoando aquele método ensaístico que já estava a ponto de ser superado por Caio Prado Jr. Mas Paulo Prado estava certo, e bem mais certo do que seu parente Caio Prado e seu resenhista FHC foram capazes de admitir.
O argumento básico do Retrato é o de que, por conta da luxúria sexual e da cobiça pelo ouro, o Brasil se constituiu como uma nação fraca e doente, a partir de sua cultura mesmo. Luxúria, fartamente documentada pelo autor, segundo aprendera do amigo e mestre Capistrano de Abreu: promiscuidade, estupro, sodomia e todo tipo de sujeira e “porcaria” (palavras de Mário de Andrade). Mais do que isso: pela ausência de uma ordem familiar cristã, viveu-se uma poligamia efetiva, que trouxe a bênção da miscigenação, mas nos deixou em miséria moral e familiar.
Luxúria sempre acompanhada pela cobiça, a doença do ouro. Doutra coisa não tratavam os bandeirantes senão de buscar, sem método apropriado, o ouro, a prata e as pedras preciosas. Largavam para trás suas casas, suas pessoas e qualquer ordem social, matando índios e abrindo caminhos, mas sem nada encontrar; e, se não morriam, voltavam com muitos escravos indígenas, seus prêmios de consolação. Depois, quando começa o ciclo do ouro, esse mesmo ouro arruinaria as economias do Brasil e de Portugal, indo financiar a Revolução Industrial inglesa.
A luxúria e a cobiça trouxeram a miscigenação e o desbravamento das terras brasileiras; mas que tipo de povo formaram? O Brasil cresceu, assim, como a terra do descuido, da ausência de cooperação e de projeto comum.
E, quando finalmente chegamos ao século 19, outra praga nos alcançou: o romantismo. A infecção romântica tornou a inteligência brasileira uma presa da imaginação e da sensibilidade, roubando-lhe a oportunidade de cultivar – numa expressão não pradiana – a virtude moral, e prendendo a todos na melancolia. A doença “tudo avassalou: política, literatura, artes, viver quotidiano, modos de sentir, afeições”.
Impossível não notar os ecos desse argumento em Desenvolvimento e Cultura, de Mário Vieira de Mello. “A única tradição cultural que existe no Brasil é a tradição do Romantismo francês do século 19”, diria o diplomata. O romantismo, com sua luta contra a “alienação”, a preferência pela autenticidade e espontaneidade contra o normativo, e do natural contra o social, teria infectado até o nosso catolicismo. Mário viu aí o aborto de uma cultura ética e o círculo vicioso do estetismo nacional; mas Paulo Prado cantou a pedra.
A luxúria e a cobiça trouxeram a miscigenação e o desbravamento das terras brasileiras; mas que tipo de povo formaram? O Brasil cresceu, assim, como a terra do descuido, da ausência de cooperação e de projeto comum
“Sugerimos nestas páginas o vinco secular que deixaram na psique nacional os desmandos da luxúria e da cobiça, e em seguida, na sociedade já constituída, os desvarios do mal romântico. Esses influxos desenvolveram-se no desenfreamento do mais anárquico e desordenado individualismo, desde a vida isolada e livre do colono que aqui aportava, até as lamúrias egoístas dos poetas enamorados e infelizes. Como reagentes nos faltaram, na nossa crise de assimilação, o elemento religioso, a resistência puritana da Nova Inglaterra, a hierarquia social dos velhos pioneiros americanos, o instinto de colaboração coletiva.”
Lá no finzinho do livro o patrono da Semana de 22 admite o que faltou, enfim, para o choque de todos: a ética protestante. O grande Alceu Amoroso Lima colocaria as coisas de outro jeito, como uma falta de cristianismo mesmo – assunto para outro artigo –, mas é notável que o roxo desse golpe tenha sido solenemente ignorado pelos resenhistas. FHC se ressentiu da alcunha de “povo triste”, mas nem comentou a sua fonte última: a falta de religião.
Subjacente à mentalidade do português, ao estilo predatório de colonização, à carência de uma disciplina moral na vida sexual e familiar, à escravidão, que corrompeu o senhor de escravos tanto quanto aos próprios escravos, à atitude predatória para com a terra, estaria um espírito individualista e avesso à cooperação, o mesmo autarquismo que Sérgio Buarque de Holanda examinaria em Raízes do Brasil. Uma vida religiosa mais potente poderia ter rompido essa casca, mas em seu lugar veio o romantismo.
E, assim, o cachimbo entortou. Paulo Prado descreve o mal com um lamento frio: é um país que não progride, apenas vive e cresce, “como cresce e vive uma criança doente”; desenvolve-se, mas não se arruma por uma má ordenação interna.
Se tem conserto? Tem, mas é difícil: Guerra ou Revolução. “Nesse marasmo podre será necessário fazer tábua rasa para depois cuidar de renovação total”. Que se queime tudo! Foi reputado profeta por antecipar a queda da Velha República, mas caiu em desgosto quando a Revolução de 1930 deu em nada – “nada”, ao menos, do que ele esperava. A criança deu uma melhoradinha, mas seguia doente. Cinquenta anos depois do Retrato, orgulhoso do seu Brasil, FHC diria que não, não somos tristes, somos alegres e nos tornamos agora um país moderno. Mas não é o que vejo hoje, com a pobreza revoltante, a grande corrupção impune, escoltada pelos três poderes, o estatismo avançando sobre a sociedade civil, uma elite cultural arrogante, anticristã e antifamília, e com a nação rasgada entre o bolsonarismo e o lulopetismo. Uma país colossal, moderno, adulto e doente como sempre.
Suspeito que Paulo Prado estava mesmo era cansado, quando lançou sua obra-prima; cansado da conversa-mole do modernismo brasileiro, com suas vãs esperanças românticas, de que uma maiêutica cultural levaria o país a vencer a alienação, resgatar sua identidade e botar-pra-quebrar no mundo. Daí ter levantado o tapete: “Querem saber o que somos? Bom proveito!” Ele deu um bom espanejo nos lacradores de 1922. Não admira que Oswald de Andrade tenha ficado furioso.
Paulo Prado, membro da fina flor da sociedade paulista, “fez furor nos círculos bem-pensantes” porque cometeu uma grave traição, pela qual somos todos muito gratos: deu uma banana para as nossas elites intelectuais e expôs o ethos nacional
Paulo Prado estava realmente muito atrás da antropologia e da ciência social que se desenvolveria nos anos 1930; muitas dimensões culturais, sociais e econômicas da questão nacional ficam de fora do seu retrato. Além disso, seu radicalismo, de guerra ou revolução, de fato trai um profundo romantismo. Mas nada disso conta como refutação a sua devassa; e muito menos a acusação de “moralismo” – de todos os revides, o mais previsível.
Se o Retrato não explica tudo, o que explica é claro como o dia. Se “fez furor nos círculos bem-pensantes”, como nota o presidente-sociólogo, é porque, como grande empresário do café, sobrinho de Eduardo Prado, patrocinador da Semana de 22, vivendo no olho do furacão em sua época – em suma, a fina flor da sociedade paulista –, cometeu uma grave traição, pela qual somos todos muito gratos: deu uma banana para as nossas elites intelectuais e expôs o ethos nacional.
O Retrato de Paulo Prado foi, em seus termos, uma pintura “impressionista”. FHC renovou a metáfora, não sei se por confusão ou por criatividade, quando chamou o autor do Retrato de “fotógrafo amador”; e talvez ele esteja certo sobre seu amadorismo. Mas isso não importa quando o assunto é a verdade; nosso fotógrafo pode ter sido amador, mas sua câmera pegou os brasileiros com a boca na botija.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos