Oswald de Andrade foi um dos maiores críticos do “Retrato do Brasil”, escrito por Paulo Prado.| Foto: Arquivo Nacional/Domínio público
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“Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama” (Oswald de Andrade, Manifesto Antropofágico)

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Mencionei de passagem, em nosso artigo anterior sobre Retrato do Brasil, que Oswald de Andrade ficou furioso com Paulo Prado. Para o desespero dos amigos, o velho modernista alegou cobiça, luxúria e romantismo na raiz dos males nacionais, imagine! Oswald entregou-lhe ao menos duas resenhas arrasadoras, uma de sua lavra e outra, três meses depois, via Oswaldo Costa, o “Tamandaré”: mesmo conteúdo, mas num formato muito mais sarcástico, encomendadinha.

O caso é que a sua reclamação, publicada num jornal em 6 de janeiro de 1929, está fazendo aniversário hoje, no mesmo dia em que essa coluna é publicada na Gazeta: 94 anos redondinhos. A aniversariante merecerá toda a nossa atenção.

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Oswald acusou o Retrato de contar uma mentira usando muitas verdades históricas. Admitiu a fundamentação amealhada por Paulo Prado, e até o chamou de “glossário histórico de Macunaíma” (obra que Mário de Andrade dedicou a Prado), mas acusou-o de repetir as “monstruosidades de julgamento do mundo ocidental” sobre a América: o “pensamento missionário”, alegadamente “invalidado pela crítica contemporânea”:

“Não posso compreender que um homem à la page, como é meu grande amigo, escreva sobre o Brasil um livro pré-freudiano. A luxúria brasileira não pode, no espírito luminoso de Paulo Prado, ser julgada pela moral dos conventos inacianos. Não quero me convencer disso. Atribuo à preguiça aristocrática do autor de Paulística as conclusões opostas à alta liberdade moral e intelectual professada a vida toda por ele.”

Oswald de Andrade acusou o Retrato de contar uma mentira usando muitas verdades históricas e de repetir um “pensamento missionário” alegadamente “invalidado pela crítica contemporânea”

E assim Oswald de Andrade acertou seu amigo com uma bela canelada: aristocrata preguiçoso, contraditório (se não hipócrita), lançando um juízo moral invalidado pela crítica, retrógrado e fora de moda, mas o mais importante de tudo: pré-freudiano.

Segundo o editor Carlos Augusto Calil, a publicação original de Oswald omitiu ainda um parágrafo: “É no fundo de idêntico bocejo feito a mesma artificialidade byroniana que faz o autor de Paulística condenar, como qualquer visitador do Santo Ofício, o ‘pecado sexual’ (depois de Freud!) e pregar sem ironia o serviço de Nosso Senhor J. C.” O artigo seria republicado, com o parágrafo devolvido ao seu lugar, numa coletânea póstuma, com o título Um livro pré-freudiano.

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Na mesma toada foi o artigo de Oswaldo Costa na Revista de Antropofagia, três meses depois. Mário de Andrade defendera o amigo Paulo contra a “patriotada” que reclamou do Retrato, mas o Tamandaré acusou: “É mentira. O que está reagindo contra o livro do sr. Paulo Prado é a inteligência nacional” (não pude deixar de rir com essa pérola), por “um livro ruim”. E voltou à psicanálise:

“A simplicidade com que ele se refere, cheio de horror, ao pecado sexual e aos ‘vícios nefandos’ do índio não é fingida, é sincera, e isso é que faz pena. Na época de Freud, ele se fantasia de visitador do Santo Ofício, toma da palmatória, abre o catecismo e prega moral ao brasileiro da fuzarca, insistindo em meter na cabeça dele o desespero do europeu podre de civilização... o sr. Paulo Prado cometeu aqueles absurdos incríveis de atribuir ao ouro e à luxúria todos os nossos excessos infantis. Para o sr. Paulo Prado então não existe o interesse econômico? Que bobagem! Mas ainda existe, porventura, mesmo depois de Freud, o ‘pecado sexual’? Outra bobagem!”

O resenhista repetiu ipsis litteris a referência ao “visitador do Santo Ofício” eliminada da publicação original, denunciando a tramoia.

E a tortura segue em frente, até zombar do homem como sermonista, apoiado em muletas da moral europeia, fixando os limites do “normal” depois de Havellock Ellis ter superado esses conceitos – Ellis, um médico britânico, foi quem cunhou o termo “homossexual”, e viva num regime de casamento aberto com sua esposa lésbica Edith Lees. Era, naturalmente, freudiano.

A indignação antropofágica fica ainda mais gritante quando se consideram as datas – a resenha de Oswald de Andrade saiu na primeira semana de 1929, pouco tempo depois da publicação do Retrato, em novembro de 1928. O livro já estava pronto havia algum tempo, desde 1927, e nesse ínterim – em maio de 1928 – Oswald lançou seu Manifesto Antropofágico, onde o pobre diz que “Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade”, e que “A alegria é a prova dos nove”. Não é preciso dizer que um “ensaio sobre a tristeza brasileira” atingiria os antropófagos em cheio. Mais:

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“Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de um antropófago, o Visconde de Cairu: – É a mentira muitas vezes repetida.”
“... só as puras elites conseguiram realizar a antropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males identificados por Freud, males catequistas... Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos.”
“Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições, sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama.”

No fundo da revolta dos modernistas contra Retrato do Brasil estava uma crise sexual ou uma libertação freudiana da culpa, da “normalidade” moral europeia, e especificamente da compreensão cristã da sexualidade

Sim, havia todo aquele esforço romântico por resgatar a autenticidade e o protagonismo nacional, de um modo ainda moderno e inovador, mas lá no coraçãozinho da coisa estava uma crise sexual ou – na perspectiva de uma ala do modernismo nacional – uma libertação freudiana da culpa, da “normalidade” moral europeia, e especificamente da compreensão cristã da sexualidade, com suas noções de ordem criada, heteronormatividade, monogamia e castidade.

Numa resenha de 1931, publicada num livro intitulado O brasileiro não é triste (sim, parece piada), o belorizontino e futuramente professor da UFMG Eduardo Frieiro reproduziria essa mentalidade com clareza solar:

“Eis o que o moralista não quer compreender. O moralista pechoso vê Sodomas e Gomorras em toda parte, e por isso as suas palavras estão cheias de fel. O moralista jamais se capacitará de que a fome, o amor e o orgulho são as molas mais possantes das ações humanas. Quem, ao contrário, examina as coisas com olhos de naturalista logo se convence de que o homem nada mais é que um ventre que tem duas espécies de necessidades e uma cabeça que tem uma, todos os seus atos se reduzindo à libido sentiendi ou à libido possidendi. Fala, portanto, sem amargura; e sorri, se é capaz de malícia; porém não louva nem condena.”

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Impossível não notar – com referência um artigo anterior, nessa coluna, sobre a psicopolítica – o contraste entre Frieiro e C. S. Lewis, que em seu clássico A Abolição do Homem sustentou que entre o ventre e a cabeça existe o “peito”, o lócus da magnanimidade e dos sentimentos morais. Para um cínico moral como Frieiro, só há ventre e cabeça, e não há certo e errado com os quais julgar as ações.

Essa era a mentalidade em boa parte do modernismo nacional. Mas voltemos a Oswald de Andrade; semanas antes do Manifesto Antropofágico, em abril, ele escreveria na Revista de Antropofagia:

“(O índio é que era são. O índio é que era homem. O índio é que é nosso modelo).”
“O índio não era monógamo, nem queria saber quais eram seus filhos legítimos, nem achava que a família era a pedra angular da sociedade.
Por que será?”

E em julho de 1929, anunciando o nunca realizado Primeiro Congresso Brasileiro de Antropofagia, a Revista publicou um “decálogo” de nove teses socialistas e anarquistas, sendo as três primeiras sobre temas que viriam a se chamar biopolíticos:

“I. Divórcio
“II. Maternidade Consciente”
(i.é, aborto)
“III. Impunidade do homicídio piedoso”
(i.é, eutanásia)

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Para um cínico moral como Eduardo Frieiro, só há ventre e cabeça, e não há certo e errado com os quais julgar as ações

Essa era a cabeça (e o ventre) das nossas vanguardas culturais no fim dos anos 1920. E então, sem aviso, Paulo Prado lançou a sua granada no parquinho antropofágico, deixando todos furiosos.

Visto em seu contexto, o Retrato foi mesmo uma coisa bem... traidora. As críticas mais elaboradas que se seguiriam, como as de Nelson Werneck Sodré (1949), Wilson Martins (1969), Francisco Iglésias (1978) e Fernando Henrique Cardoso, apontando o fato indiscutível de que Prado ignorou aspectos econômicos e estruturais da tristeza nacional, não são capazes de ocultar a raiva amarga que o Retrato produziu.

A razão afetiva pela qual, como o Tamandaré escreveu, “a inteligência nacional” reagiu contra o livro foi o seu desprezo pela ideia de que uma ordem moral normativa seja universal e necessária para o desenvolvimento. E a grande ferramenta empregada por ela foi Freud e seus alunos, como Havelock Ellis.

Ainda que sem a autorização do pai da psicanálise, que era ainda muito conservador, nossa inteligência nacional se apropriou de noções da psicanálise e da psicologia moderna para, basicamente, reprimir o sentimento de culpa e deslegitimar toda a ideia de que uma ordem moral interpessoal, envolvendo corpo, sexualidade, casamento e família, seja necessária ao progresso civilizacional. A solução para os problemas nacionais seria científica e política. A felicidade viria de uma combinação de cérebro e ventre, basicamente: epicurismo na vida afetivo-sexual, e uma gestão científica e progressista das questões sociais.

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A razão afetiva pela qual “a inteligência nacional” reagiu contra Retrato do Brasil foi o seu desprezo pela ideia de que uma ordem moral normativa seja universal e necessária para o desenvolvimento

É assim que Oswald de Andrade escreveria, em março de 1931, defendendo uma solução comunista para o Brasil, que no capitalismo o país é orientado “pelas forças cegas do mercado” e pela “ganância anárquica da oferta e da procura”, mas que, por outro lado, “na pátria de Lenin”, tudo vai muito bem, com “os maravilhosos resultados do plano quinquenal”. Tadinho, gente!

Isso é precisamente o que Michael Polanyi descreve como inversão moral: o universo de sentido moral é destruído por alguma ideologia niilista ou seminiilista – curiosamente, no caso de Oswald de Andrade, uma combinação de Freud e Marx – e a paixão moral é canalizada para a fé absoluta em algum sistema supostamente científico que resolverá o problema social. O sujeito não precisa mais ser pessoalmente ético e bom; precisa apenas apoiar o sistema político-econômico correto e mergulhar na boemia. Temos, assim, essa estranha combinação, de vísceras e cabeça, sem peito; não precisamos de ética de compromisso e de responsabilidade, nem de família, nem de capital moral, mas apenas de cérebro e desejo.

Nada mudou – o espetáculo da formação do novo governo petista acabou de passar bem diante dos nossos olhos, misturando o sentimentalismo mais kitsch com títulos acadêmicos e pretensões científicas, carnavalizando, louvando a vitória do amor e o fim da Secretaria Nacional da Família.

Não é essa a elite intelectual nacional, uma combinação de cientificismo e estetismo? E aqui o gênio Oswald de Andrade superou Paulo Prado, sem dúvida. Em sua angústia, o autor do Retrato lamentava o nosso passado, mas o antropófago revelou o nosso futuro: “Um misto de ‘dorme nenê que o bicho vem pegá’ e de equações”.

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Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]