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Pew Research: para o brasileiro, a crença em deus importa
| Foto: Agnieszka Monk/Pixabay

Nesta semana fez um ano que a pesquisa The Global God Divide (“A Divisão Global sobre Deus”) foi publicada pelo instituto Pew Research Center. Em 20 de Julho de 2020 a Pew divulgou seu mais amplo e recente estudo sobre a conexão entre a crença em Deus e a moralidade. A pesquisa ouviu 38.426 pessoas em 34 países dos seis continentes durante o ano de 2019, comparando os dados com pesquisas anteriores, e produziu resultados importantíssimos para qualquer pessoa que preocupe com o campo religioso e a esfera pública, seja a política, a ciência, a saúde ou a economia. Acima de tudo, para mim, falando como pastor, para a missão das igrejas cristãs.

A Pesquisa

A Pew descobriu que, na média, 62% das pessoas entendem que a religião importa, e 53% pensam que a oração importa; mas apenas 45% das pessoas consideram a crença em Deus necessária para a moral e bons valores. É um fato interessante, mas que não chega a ser momentoso. A questão crucial seria saber por onde a linha divisória passa: como o “sim” e o “não” se dividem.

Em termos regionais, não há uniformidade: Europa e América do Norte tem o maior contingente de pessoas para as quais Deus não é necessário para ser moral. No Canadá os números chegam a 73%, na França, 84% e na Suíça 90%. E média do grupo todo é 78%. Na Europa Oriental, média de 61%; Rússia, 56%. No Oriente a coisa é irregular: apenas 2% na Indonésia contra 56% no Japão e 79% na Austrália. No Oriente Médio, Israel lidera, no continente africano a África do Sul lidera.

Mas vamos ao que interessa: Brasil. Aqui apenas 15% das pessoas consideram Deus desnecessário para a vida moral, e 84% consideram Deus essencial para ser bom. Para um comparativo, na Argentina o número é 45%. Independente de como interpretemos esse resultado, ele traz uma consequência óbvia: no Brasil, discursos morais desconectados da religião e, particularmente, do cristianismo, tem menor plausibilidade; e discursos fortemente associados à crença em Deus tem maior probabilidade de ganhar aceitação pública e serem considerados moralmente bons e recomendáveis.

De início alguém poderia alegar que o resultado pode ser visto, sob certo ângulo, como autorrefutatório. Afinal um país como a Suécia, na qual a moral não é associada à crença em Deus, traz índices de capital social mais altos, menos corrupção e menos violência que o Brasil, no qual essa relação é fortíssima. É verdade; por outro lado sabemos que a ética protestante foi um dos condicionantes morais dos sistemas políticos e econômicos mais desenvolvidos na Europa e no mundo Anglo-Saxônico, e que alguns séculos foram necessários para essas sociedades atingirem tal grau de desenvolvimento. Não é nosso assunto aqui, mas o impacto histórico de uma religião na organização moral não é o mesmo que a consciência social desse impacto em dado ponto da história.

Seguindo com os resultados da pesquisa, alguns fatos iluminadores ajudam a interpretar a coisa. Quanto maior a renda per capita, menor a probabilidade de ligar Deus à moralidade. Assim temos a Suécia e a Holanda numa ponta do gráfico, e Kenya, Nigéria, Indonésia, Índia e Brasil na outra ponta. Nas economias emergentes, com menos renda, as pessoas ligam Deus e moralidade com maior frequência.

Considerando a idade, a Pew encontrou uma vala: em geral, no mundo, quando mais jovem é a pessoa, menos ela correlaciona moralidade e Deus. Na Coréia do Sul, por exemplo, apenas 20% das pessoas de 19 a 29 anos faz a ligação, 33% das pessoas de 30 a 49 anos, e 64% das pessoas a partir de 50 anos. Mesmo na Suécia, onde uma pequena porção das pessoas crê em Deus, há um age gap. No Brasil também: entre 88 e 89% por cento das pessoas a partir de 30 anos acha que Deus e a moralidade são inseparáveis, mas apenas 70% dos jovens concordam. Esse fato pode indicar um viés psicológico universal – tema para estudos de life span psychology – ou, mais provavelmente, fotografar um processo de transformação geracional global.

Quando o critério é educação formal, os resultados são previsíveis. Quando maior a educação, menor a probabilidade de associar Deus e moralidade, e de considerar a crença em Deus necessária para a vida. No Brasil 91% das pessoas menos educadas se importa com Deus, e 77% das mais educadas vê a crença em Deus como necessária. Temos um outro gap aqui, mas os números ainda são altos.

E agora, a cereja do bolo: ideologia política! Segure-se na cadeira:

“Em 15 dos países pesquisados, aqueles na direita ideológica apresentam probabilidade significativamente maior de dizer que é necessário crer em Deus para ser moral e para ter bons valores morais (com as ideologias reportadas e variando por país). A maioria das pessoas à direita nos EUA, Grécia, Argentina e Israel dizem que a crença em Deus é necessária para a moralidade; menos que a metade daqueles à esquerda, nos mesmos países, diz a mesma coisa. A separação esquerda-direita excede 30 pontos percentuais nos EUA, Polônia e Grécia.”

Certo, não chega a ser novidade. Mas justifico o exagero pela relevância dos resultados. Há uma tendência global, ou ao menos entre países conectados com a cultura ocidental e os valores democráticos (a lista dos países pesquisados não inclui regimes autoritários de esquerda), de perceber diferentemente a relação entre Deus e moralidade ao longo do espectro político, segundo um padrão consistente: quanto mais à esquerda, menos Deus é necessário para a moralidade; quanto mais à direita, mais Deus é necessário. No Brasil, 74% das pessoas à esquerda consideram Deus necessário para a moral, contra 92% das pessoas à direita.

No cômputo geral, a pesquisa indicou que os Europeus (excetuando alguns menos desenvolvidos, como os gregos, poloneses,e búlgaros), Canadenses, Australianos, Japoneses e Coreanos tendem a considerar Deus e a religião menos importantes para as suas vidas, e os Indonésios, Filipinos, Indianos, Africanos em geral e Latinos atribuem muito mais importância a Deus.

Outros dois dados são de especial interesse para pessoas que trabalham em ministérios e serviços religiosos: o primeiro é sobre a oração. Com poucas exceções, todos os países apresentam um gap quando se compara a importância dada a Deus e o lugar da oração na vida das pessoas. A parcela das pessoas que considera a oração importante é menor do que a das pessoas que consideram Deus importante. Em alguns países a diferença alcança entre 10 e 20%. Mas no Brasil ela não é tão grande: apenas 2%. O outro dado é sobre filiação religiosa. Pessoas “sem religião” tendem a considerar Deus muito menos importante em suas vidas do que pessoas com religião definida.

A deriva moral

Estudiosos da geologia terrestre empregam a expressão deriva continental (continental drift) para descrever o processo de movimentação de grandes massas continentais ao longo da terra, separando mares, aproximando ou distanciando umas das outras. Essa teoria é que postula, por exemplo, que Brasil e África já foram parte do mesmo continente.

Pois bem; tomando emprestada essa imagem, eu sugiro que sob a superfície da grande “Divisão Global sobre Deus”, o que temos é uma transformação moral de grandes proporções; uma deriva moral, associada com a direção tomada por nosso sistema moderno de vida, baseado no hiperconsumo e na afirmação do self.

Considerando as linhas sobre as quais se dá a divisão entre a conexão ou desconexão entre Deus e moralidade, os resultados são bastante consistentes: desenvolvimento econômico, renda per capita, educação formal, socialização em uma nação democrática fundada nos valores sistema cultural anglo-saxônico/europeu e juventude são os marcadores ligados à separação entre Deus e a moralidade. O primeiro olhar sugere o feijão-com-arroz: o desenvolvimento de uma sociedade conduziria à menor dependência da religião.

Mas os resultados da variável política me levam à seguinte sugestão: as pessoas que tendem a separar Deus e vida moral são as que adotam uma imaginação moral distinta e que, por isso, fazem opções políticas mais alinhadas com o discurso da esquerda democrática contemporânea. A pergunta a ser feita é: que tipo de moralidade vem sendo explicitada pelas esquerdas democráticas? Certamente é algum estilo de moralidade na qual a crença em Deus não desempenha papel determinante ou, até mesmo, na qual ela se torna problemática.

Nesse caso a pergunta não é, em primeiro lugar, “para quem Deus é importante?”, mas sim, “de que modo essas moralidades são diferentes?”

Se cruzarmos os números com uma leitura crítica da imaginação moral das esquerdas e direitas atuais, nesses países, uma resposta me parece imediatamente à mão: o que faz toda a diferença é o avanço da imaginação moral W.E.I.R.D., assunto sobre o qual já nos debruçamos nessa coluna.

O acróstico foi empregado por Jonathan Haidt, em seu influente estudo da psicologia moral moderna (“A Mente Moralista”, 2013), com referência à mentalidade moral elitizada das sociedades contemporâneas: “Western, Educated, Industrialized, Rich & Democratic” (Ocidental, Educada, Industrializada, Rica e Democrática). Pessoas W.E.I.R.D. são indivíduos com posições mais liberais nos costumes, mais preocupadas com direitos humanos, mais individualistas e mais estatistas, mais aculturadas no capitalismo emocional e de hiperconsumo, e mais focadas na sua felicidade e bem-estar individual. Por conveniência, cito um trecho de um dos meus artigos anteriores a respeito (Educação e Sabedoria em uma Cultura Polarizada):

Segundo a psicologia moral de Haidt, culturas sociocêntricas tendem a apresentar um discurso moral mais variado, com escrúpulos morais que incluem respeito a normas coletivas, como honra a autoridades, lealdade e sentido do sagrado, além das normas que enfatizam a dignidade do indivíduo. Os grandes centros urbanos ocidentais, e pessoas mais alinhadas com seus valores individualistas, teriam um discurso moral mais centrado no indivíduo, e menos comunitário.”

É assim, por exemplo, que na maior parte do mundo zombar de coisas sagradas seria inadmissível, mas isso seria aceitável a pessoas de páthos WEIRD. Por outro lado, questionar a moralidade sexual de um indivíduo é admissível em culturas sociocêntricas, mas inadmissível para pessoas WEIRD.”

Haidt descobriu que nos grandes centros urbanos e, especialmente, em cidades globais, a mesma cultura WEIRD se espalha e se torna progressivamente hegemônica. Seu “braço” político são as políticas do liberalismo expressivo, segundo o padrão do partido democrata dos EUA e de partidos liberais-progressistas em nações economicamente mais desenvolvidas.

Pois bem; se a mentalidade WEIRD for o estilo de imaginação moral próprio do indivíduo contemporâneo, segundo a nossa cultura do self, da autoexpressão, autoafirmação e bem-estar pessoal, e esse paradigma moral for um aspecto orgânico do capitalismo de hiperconsumo, é claro que o “progresso” econômico e político moderno nos conduzirá a uma hegemonia da mente WEIRD a qual, por sua vez, retroalimentará o processo, a partir do controle, de que dispõe, dos meios de produção cultural e reprodução educacional.

E se, além disso, houver evidência de que a religião tradicional e a crença em Deus estão diretamente ligadas a um estilo moral mais sociocêntrico, cultivando sentimentos morais como o sagrado, a lealdade, a autoridade e a justiça, é certo que sociedades mais individualistas, nas quais esses sentimentos morais tem menor utilidade, tenderão a reconstruir sua imaginação moral em termos de regras para a coexistência plural, autonomia e formas de “hedonismo esclarecido”, sem a necessidade de Deus. Ora, essa é precisamente a evidência encontrada por Jonathan Haidt.

Nesse caso, nossas modernas sociedades urbanas estão em um processo histórico de deriva moral, com uma bifurcação da imaginação moral entre pessoas WEIRD e as massas sociocêntricas, e uma dominação hegemônica da elite WEIRD sobre essas massas. Mas há outro modo de ver isso: que o futuro das grandes cidades é um futuro WEIRD. É para onde os jovens estão indo. Isso pode ser bom, por um lado, mas é desastroso, por outro. Afinal, a cultura WEIRD é a cultura líquida. Ganharemos em tecnologia, qualidade de vida e pluralismo, mas perderemos em experiência humana, sentido de comunidade e de transcendência.

E quanto à religião e a política?

Se minhas especulações estiverem corretas, não há possibilidade de um discurso político tornar-se hegemônico, no Brasil contemporâneo, sem dialogar com a religião. Ou melhor: com o cristianismo. E mais: com o cristianismo evangélico. Se 84% da população brasileira (assumindo os números da Pew Research) pensam que Deus e a moralidade estão separados, o PSoL precisará aguardar muitos verões para ganhar as massas. Por ouro lado, uma esquerda democrática mais tradicional, trabalhista, e menos WEIRD tem grande potencial para obter o acesso às massas sociocêntricas.

Outra implicação possível é a refutação de uma tese bastante popular entre cristãos de esquerda brasileiros: a de que a enorme rejeição de evangélicos contra os partidos e as pautas de esquerda atuais teria resultado de uma campanha sistemática de difamação e doutrinação antiesquerda, coordenada por líderes religiosos ultraconservadores. A solução seria contornar essas lideranças a falar diretamente à população. Eu mesmo já fui acusado disso.

Ora, ninguém negará que em diferentes igrejas, denominações e ministérios cristãos deu-se a construção de um discurso antiesquerda, e que muitos líderes eclesiásticos trabalharam nisso. Mas essa explicação moralista do fenômeno inteiro sempre me pareceu profundamente acrítica; especialmente quando lançada entre gemidos de ressentimento. É implausível que o conflito entre as esquerdas e o mainstream religioso cristão tenha procedido meramente da má vontade de alguns líderes religiosos.

É muito mais provável que esses líderes conservadores tenham atuado como agentes orgânicos de defesa de comunidades sociocêntricas diante da “ameaça” WEIRD. O que é, certamente, uma resposta problemática e temerária, já que pode destruir a comunicação com os mais jovens. Ainda assim, se a deriva moral for um processo tectônico mais profundo e coletivo, e de fato as esquerdas brasileiras e a própria esquerda “cristã” houverem se rendido ao estilo de imaginação moral WEIRD, é provável que a rejeição dos cristãos à agenda da esquerda seja causada mesmo por elementos inerentes à esquerda, os quais existem em competição com a própria religião.

Colocando em outros termos: pessoas religiosas percebem o discurso de esquerda como um competidor da fé, e não apenas da “direita” porque, de fato, o estilo moral WEIRD está em competição com o estilo moral sociocêntrico que favorece a conexão entre Deus e a moralidade.

Essa hipótese tem como suporte o fato de que o mesmo fenômeno vem acontecendo em escala global. Não faz sentido tratá-lo como mera contingência local, ou “culpa” de pastores conservadores. À medida em que a esquerda brasileira se torna mais WEIRD, separando mais Deus e a moralidade, os brasileiros mais religiosos engrossarão as fileiras da direita.

Em conclusão, levanto uma questão para meus colegas no campo da fé e do ministério religioso cristão – uma questão para além dos jogos políticos: se essa deriva moral está, de fato, em curso, qual é a responsabilidade das igrejas? Apenas alinhar-se às massas sociocêntricas não será a escolha mais sábia. É preciso construir pontes com os bons valores da cultura WEIRD e, ao mesmo tempo, moderar o impulso narcisista e atomizador dessa cultura. O melhor caminho para isso, em meu entendimento, é liderar a construção de uma nova imaginação moral e uma cultura do bem comum.

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