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A cada semana os cristãos se reúnem nas suas igrejas para celebrar a morte e a ressurreição de Jesus em cultos e missas, mas poucos sabem por que isso se faz aos domingos. Há cerca de 1,5 mil anos, um escritor cristão antigo, chamado Eusébio de Alexandria, ofereceu uma das mais claras explicações disso:
“O santo dia do domingo é a comemoração do Salvador. Chama-se dominical porque ele é o Senhor dos dias. Com efeito, antes da paixão do Senhor ele não se chamava domingo, mas sim primeiro dia. Foi neste dia que o Senhor deu início à criação do mundo, e no mesmo dia deu ao mundo as primícias da ressurreição. Eis porque esse dia é o princípio de todo o bem: princípio da criação do mundo, princípio da ressurreição, princípio da semana.”
O primeiro dia da semana sempre houve, desde que se começaram os calendários, nas profundezas pré-históricas da jornada humana. Mas a Páscoa cristã lhe trouxe um sentido completamente diferente. O corpo morto de Jesus descansara por todo o Sábado judaico – um dia em que os judeus tinham o dever religioso de não trabalhar – e, no domingo de madrugada, algumas mulheres foram ao túmulo para ungir o seu corpo. Voltaram contando uma história incrível: Jesus teria ressuscitado dos mortos! Alguns discípulos homens correram para fazer a checagem – o testemunho das mulheres não contava muito na época – e voltaram confirmando a narrativa. Mas não vamos discutir por ora os detalhes e mesmo a confiabilidade histórica do relato; outro assunto nos chama nesse momento: a transformação do calendário.
Na vida e na morte de Cristo demonstrou-se uma bondade genuína e simultaneamente invencível, para o desespero dos cínicos (desespero: porque o alívio do cínico reside na inexistência de uma prova da bondade)
Como notou Eusébio, o mundo foi criado no primeiro dia, e Deus descansou de suas obras no sétimo dia, o Sábado divino. Agora as coisas se invertem: Cristo descansa por todo o Sábado Santo de sua obra na cruz, ao mesmo tempo construindo uma história de obediência e serviço diante de Deus, mas também colocando um ponto final no mundo como o conhecíamos e, em parte, ainda conhecemos: um mundo no qual quem manda é Anás, Pilatos, Herodes e César. Um mundo no qual cada um cuida da sua vida e em que o bem sempre é derrotado.
Se Cristo foi derrotado? Sim, e não; sua impotência diante dos poderosos deste mundo, e até mesmo para convencer plenamente seus próprios discípulos, é um fato notório e inegável. No entanto, seu sofrimento diante da força e das dinâmicas corruptas da ordem presente era, na verdade, uma identificação misericordiosa, um compartilhamento da carga terrível. Jesus estava vivendo o que vivemos, mas com uma diferença profunda: ele manteve até o fim a sua bondade, mesmo com os inimigos; a sua amizade com aquela horda decepcionante de alunos; e a sua fé em Deus. Em tudo isso, sua alma não azedou. Essa vitória moral e espiritual é descrita com a linguagem mais forte possível no Evangelho de João: “O Príncipe deste mundo foi expulso!”
Nesse sentido, como ensinaria o apóstolo Paulo em sua primeira Carta aos Coríntios, cerca de 15 anos depois dos eventos pascais, a cruz é a fraqueza e a tolice de Deus, mas a sua fraqueza “é mais forte do que os homens” e a sua tolice “é mais sábia do que os homens”. O caso é que na vida e na morte de Cristo demonstrou-se uma bondade genuína e simultaneamente invencível, para o desespero dos cínicos (desespero: porque o alívio do cínico reside na inexistência de uma prova da bondade). E isso foi, num sentido supremo, nada menos que o fim do mundo. A sociedade humana sem Deus segue em frente, mas foi humilhada e condenada pela bondade de Cristo.
O leitor leigo ou carente de imaginação religiosa pode ter exatamente essa impressão ao ouvir a história, mas em assuntos divinos a previsibilidade seria provavelmente um indício de farsa. Não faz todo o sentido que Deus tenha operado sua graça no mundo através de um surpreendente paradoxo?
Mas a história não acabou aí. O testemunho consistente das mulheres, dos discípulos e da Igreja antiga foi de que a mão de Deus finalmente tirou Jesus do túmulo, no primeiro dia da semana! Não se trata, aqui, de um mero evento sobrenatural ou incomum, ou de uma violação das leis naturais, mas de algo muitíssimo mais radical: “Eis que faço novas todas as coisas!” “Vi novos céus e nova terra!” O que se anuncia é o recomeço de todas as coisas, de um mundo completamente novo!
E aqui retomamos a inversão supramencionada: Deus criou o mundo no primeiro dia, e descansou no sétimo; mas agora, Cristo descansa de sua obra salvadora no sábado, e se levanta para criar um novo mundo no primeiro dia da semana: doravante, ele será chamado Dies Dominica, ou domingo!
Deus criou o mundo no primeiro dia, e descansou no sétimo; mas agora, Cristo descansa de sua obra salvadora no sábado, e se levanta para criar um novo mundo no primeiro dia da semana
Foi a Páscoa cristã que deu início aos domingos! Por isso não faz sentido para o cristão cultuar nos domingos, mas ignorar a Páscoa anual: o próprio domingo existe como celebração semanal daquele dia, há quase 2 mil anos, no qual o mundo renasceu. O primeiro dia da semana, no qual Cristo ressuscitou, foi um domingo cósmico, o próprio centro da história. E desse domingo é que nasceram todos os domingos.
Mantendo a conexão com a igreja cristã antiga e com as realidades contemporâneas, a nossa pequena igreja evangélica estabeleceu uma festa pascal em quatro atos: o jantar pascal em família ou em pequenos grupos, na quarta e na quinta à noite, que rememora a Última Ceia de Jesus com os discípulos; o serviço Tenebras, na sexta-feira à noite, que lembra todas as estações nas últimas horas de Jesus, sua paixão, morte e sepultamento; uma jornada devocional no Sábado Santo, na qual meditamos e oramos sobre o significado da cruz de Cristo; e, no domingo de madrugada, o Culto da Ressurreição, celebrando o Dies Dominica!
O primeiro dia da semana, no qual Cristo ressuscitou, foi um domingo cósmico, o próprio centro da história. E desse domingo é que nasceram todos os domingos
O que significa hoje uma festa como essa? Byung-Chul Han, inspirando-se em Hartmut Rosa, fala sobre os rituais como eixos de ressonância, que nos fazem sincronizar coletivamente. Para isso fazemos calendários: para sincronizar nos gestos, pensamentos, corações e atenção, e isso nos faz estar juntos.
Mas, se a história da Páscoa for verdadeira – e creio que ela é –, algo mais do que a nossa sincronia social e afetiva acontece quando a celebramos: o que vivemos nesses dias, e domingo após domingo, é uma sincronia com uma outra ordem de vida, fundada por Cristo, e com um novo mundo que ele prometeu trazer à luz. Tendo o seu túmulo vazio como fiador dessa promessa, nos preparamos e ensaiamos cheios de alegria para essa esperança: o alvorecer do primeiro dia em um novo mundo que se aproxima.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos