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Guilherme de Carvalho

Guilherme de Carvalho

Por um atlas da presença social da religião no Brasil

Irmã Dulce manteve obras de assistência aos pobres até sua morte. (Foto: AGBr/Divulgação)

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“Uma geração se passou. Tudo parecia bem. Até que, sem aviso prévio, as fontes que haviam continuado a borbulhar debaixo do concreto sólido não puderam mais ser contidas. Em uma explosão repentina, semelhante à erupção de um vulcão seguida de um terremoto, elas irromperam através do solo... A água é aquilo que hoje nós chamamos de ‘espiritualidade’... a fonte escondida que borbulha dentro dos corações das pessoas e das sociedades em que vivem.” (N. T. Wright, Simplesmente Cristão)

Na metáfora do teólogo N. T. Wright, a religião é essa força irreprimível, que alguns administradores públicos tentam enterrar sob o concreto do pragmatismo político e da “laicidade”. O fato, no entanto, é que o único rio que podemos controlar perfeitamente é o rio seco. Onde há água, é preciso ser criativo e negociar; e, no Brasil, temos alguns dos maiores rios religiosos do mundo.

No dia 21 de janeiro foi publicada no Diário Oficial da União a portaria que instituiu o Cadastro Nacional das Organizações Religiosas no âmbito do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. A iniciativa partiu, mais especificamente, da Secretaria Nacional de Proteção Global (SNPG), na qual existe, sob a Diretoria de Promoção e Educação em Direitos Humanos (DPEDH), uma coordenação de liberdade religiosa. A SNPG está desde meados de janeiro nas mãos da assistente social Mariana Neris, anteriormente secretária nacional de Assistência Social no Ministério da Cidadania e uma gestora pública de larga experiência. Vale mencionar que Mariana é também uma cristã evangélica comprometida.

O aparato dedicado aos temas da liberdade e da diversidade religiosa no Executivo federal é bastante restrito. Há pouca verba, pouca estrutura e pouco pessoal

A despeito de comentários desconfiados de alguns jornalistas, vendo aí mais uma iniciativa eleitoreira de Bolsonaro, penso que a decisão foi correta e que leva a sério a realidade religiosa brasileira, ao contrário de governos anteriores. Trata de um avanço importante para a visibilização das congregações religiosas brasileiras, e um passo concreto rumo a uma futura política de Estado para a questão religiosa. Parabéns à ministra Damares e à sua equipe. Voltaremos a isso no fim do artigo, mas quero aproveitar esse sucesso do MMFDH para semear ideias.

De quando em quando eu proponho caminhos nessa coluna. Ainda que apenas como exercício de imaginação criativa. Sonhar é preciso; e recentemente fui lembrado, inusitadamente pelo Diário Oficial da União, de um sonho a respeito da questão religiosa nacional.

Em minha passagem pela SNPG, ao longo de 2019, pude constatar que o aparato dedicado aos temas da liberdade e da diversidade religiosa no Executivo federal é bastante restrito. Há pouca verba, pouca estrutura e pouco pessoal. Até hoje, por exemplo, não existe nem uma diretoria e nem mesmo uma coordenação geral para a área de liberdade religiosa e de pensamento. Tudo o que temos é um cargo de coordenador – um DAS-3 – para lidar com a realidade gigantesca que é a religiosidade brasileira.

Além disso, eu notei no histórico anterior da Diretoria uma linha de política que eu chamaria de “policiamento e contenção”. Já mencionamos isso anteriormente nessa coluna; aparentemente o foco principal era vigiar violações de religiões majoritárias contra religiões minoritárias; havia um interesse em desfazer o establishment religioso brasileiro, contestando a hegemonia cristã e promovendo ativamente religiões minoritárias através do discurso da “diversidade”. O tema da “laicidade do Estado” era invocado não tanto para garantir a liberdade religiosa (o uso original), mas para blindar políticas públicas da influência de valores cristãos. Daí um discurso frequentemente “laicista”.

Nesse sentido, há muito a fazer nesse campo de Direitos Humanos. Em meu julgamento, deveríamos ter uma secretaria ou, ao menos, uma diretoria dedicada aos artigos 18 e 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, que rezam sobre as liberdades de pensamento, consciência, religião, opinião e expressão. E, além de estrutura e pessoal, de uma política estabelecida de cooperação com universidades públicas, confessionais, e com instituições religiosas de nível superior de diversas religiões, visando fornecer base científica para políticas públicas baseadas em evidências.

E isso nos leva a meu ponto de interesse particular: a questão do impacto social da religião no Brasil. O quanto sabemos sobre isso?

Uma pesquisa “positiva” sobre a religião?

Em 21 de setembro de 2020 foi publicado um importante relatório pelo Instituto Cardus, um think tank neocalvinista canadense, sobre o impacto específico da religião no Produto Interno Bruto do Canadá. O relatório, assinado por Brian J. Grim, presidente da Religious Freedom & Business Foundation, e Melissa E. Grim, pesquisadora associada da mesma fundação, apresentou “a primeira estimativa quantitativa nacional do valor da religião na sociedade canadense”, repetindo um modelo já aplicado nos EUA em 2016. O estudo apresentou três estimativas: as organizações confessionais (Faith-based), sozinhas, movimentam 30 bilhões de dólares canadenses anualmente. Considerando o valor dos bens e serviços proporcionados por essas organizações, tanto comercialmente quanto em organizações de socorro apoiadas por congregações, a estimativa alcançou CAN$ 67 bilhões anuais. Finalmente, tendo em vista o impacto econômico geral de pessoas cujas decisões são significativamente determinadas por suas crenças religiosas, a estimativa alcança CAN$ 690 bilhões anuais (os detalhes sobre a pesquisa estão disponíveis no website da Cardus).

Uma das formas curiosas com as quais as congregações religiosas contribuem economicamente foi denominada “efeito magneto” pelos pesquisadores. As congregações, por assim dizer, “aceleram” a atividade econômica, por meio da celebração de casamentos, funerais, performances artísticas, aulas de música, compra e venda de instrumentos musicais, mercados editoriais, restaurantes, palestras e eventos com impacto turístico etc.

Mas não se trata apenas de impacto econômico. A suposição básica da iniciativa foi de que “a religião é uma força ativa nas vidas pública, profissional e pessoal” de muitos canadenses, com múltiplos impactos na sociedade. O estudo menciona, em sua justificativa, que “um sólido corpo de investigações tem explorado as contribuições sociais da religião”, incluindo benefícios sociais em geral, práticas de voluntariado, promoção de educação e engajamento civil, redução da criminalidade, promoção da saúde mental, estabilidade política e crescimento econômico. Vários desses estudos são referenciados no relatório.

Antes, o tema da “laicidade do Estado” era invocado dentro do governo não tanto para garantir a liberdade religiosa (o uso original), mas para blindar políticas públicas da influência de valores cristãos

Citando outra fonte, os autores mencionam quatro maneiras com que organizações sociais de inspiração religiosa promovem benefícios públicos: atitudes e comportamentos prossociais, generosidade e voluntariado; redução da demanda estatal por cuidados com saúde e reabilitação e melhoria da qualidade de vida; promoção de capital social, infraestrutura e melhoria das vizinhanças; benefícios tangíveis pela formação de pessoas com espírito sacrificial e interessadas no bem comum.

A linha de investigação me pareceu surpreendente, num primeiro momento. Minha própria formação foi no campo das Ciências da Religião, na Umesp, e meu contato com o campo mostrou claramente que o estudo científico da religião frequentemente traz um viés interpretativo fortemente secularista. John Milbank, com alguma razão, ironizou os estudos religiosos nos EUA como uma espécie de “policiamento” do sagrado, e essa é indubitavelmente uma postura hegemônica, principalmente na Sociologia da Religião brasileira. A investigação gira em torno do impacto político e eleitoral da religião, de estruturas, discursos e práticas de opressão ou de libertação, ou de religião, mercado, consumo, propaganda e religião. Estudos de psicologia social e interpretações psicanalíticas do mundo simbólico da religião são também bastante comuns.

Não é que essas abordagens não sejam interessantes, mas que parecem reproduzir o que descrevi como um modelo de vigilância e contenção; uma tutela secular do mundo da fé. Ocorre, no entanto, que essa abordagem está ultrapassada. Os profetas da modernidade anunciaram a secularização; mas, sem seu lugar, o que chegou foi o pluralismo, como destacou Peter Berger em Os Múltiplos Altares da Modernidade. A tese da secularização inevitável foi falseada; Berger diz que levou 25 anos para constatar que ela era empiricamente insustentável, mas isso já estava claro para ele em 1999, quando publicou A Dessecularização do Mundo: uma visão Global.

É claro que essa discussão é amplamente conhecida no Brasil; em minha perspectiva, no entanto, suas implicações não são largamente exploradas. A pesquisa sobre a contribuição positiva da religião para algo mais do que alienação social ou revolução social deveria ter mais espaço; seria riquíssimo compreender de que modo as religiões contribuem e como podem vir a ser parceiras conscientes no processo civilizatório nacional, em vez de serem tratadas como meras exterioridades a administrar no cálculo político.

A pergunta crucial é evidente: como um cientista comprometido com a modernidade secular pode incluir a religião em seus programas de investigação, a não ser como um problema, ou um epifenômeno insignificante, ou no máximo como uma inevitabilidade? Considero isso um problema insuperável para o establishment da pesquisa acadêmica da religião no Brasil.

Aqui eu faria uma analogia: assim como a psicologia positiva nasceu, em parte, como uma tentativa de compreender como a boa saúde mental funciona, em vez de apenas explorar patologias, precisamos fazer o mesmo com as religiões: sob que condições elas contribuem positivamente para o florescimento humano e para o bem comum? E como essas boas tendências poderiam receber nudges, sem violar a liberdade e a dignidade de cada fé?

O efeito auréola

Nessa direção, impressiona a formulação do Halo Project, conduzido entre congregações religiosas de Toronto. O projeto buscou medir como congregações religiosas funcionam como catalisadores econômicos em suas localidades. O estudo estabeleceu que para cada dólar gasto por uma congregação, são gerados 4,77 dólares em serviços que a cidade não precisa mais proporcionar. Essa eficiência resulta da movimentação econômica interna, dos impactos em saúde, da promoção de voluntariado e de serviços à comunidade, celebração de casamentos, prevenção de suicídios, redução no consumo de drogas, empregos e outras contribuições. Apenas as 220 paróquias da arquidiocese católica de Toronto tiveram sua contribuição estimada em 990 milhões de dólares.

O efeito auréola não é, naturalmente, o mesmo em qualquer cidade ou qualquer país. Além disso, religiões diferentes levam a práticas sociais diferentes. Temos, portanto, um enorme campo de trabalho investigativo aberto em nosso país: levantar o impacto relativo de congregações religiosas em geral e de congregações típicas de cada grupo religioso, por meio de múltiplos filtros: efeito magneto, saúde mental e física, serviços sociais, capital social, para citar alguns.

A proposta: um atlas da presença social da religião

A ideia me ocorreu em meados de 2019, e cheguei a conversar um pouco sobre a questão com Rodrigo Vitorino, professor da Universidade Federal de Uberlândia, e fundador do Centro Brasileiro de Estudos de Direito e Religião. O que proponho é a construção de um mapa geral da contribuição social da religião no Brasil, em termos econômicos, de saúde, de serviços sociais, de educação e cultura científica, e de capitais sociais (ou, se alguém preferir, voluntariado, civismo e democracia). Eles poderiam ser traduzidos em termos econômicos, de modo similar ao calculador de efeito auréola canadense.

Com os modernos recursos digitais, um atlas desse tipo poderia mostrar a presença social positiva – ou, dependendo do caso, a ausência social das religiões brasileiras, segundo cada região e contexto.

Quero destacar como isso favoreceria as religiões e a sociedade brasileira, simultaneamente. Ao contrário da visibilidade/invisibilidade ideológica promovida por governos até agora, um atlas da presença social da religião mostraria de que modo cada religião brasileira efetivamente se comporta diante dos desafios nacionais. Isso serviria imediatamente às próprias congregações religiosas, que poderiam considerar criticamente a sua presença pública. Ao mesmo tempo, conferiria uma visibilidade real à religião e uma clareza sobre suas contribuições à sociedade, ajudando a dispersar o estigma de parasitismo que, inacreditavelmente, ainda é reverberado pelos inimigos da fé. Finalmente, poderia ser a base para nudges governamentais, no sentido de incentivar as congregações a serem socialmente proativas.

Um atlas da presença social da religião mostraria de que modo cada religião brasileira efetivamente se comporta diante dos desafios nacionais

Mas como realizar tal tarefa?

Penso que a melhor saída seria o estabelecimento de uma fundação dedicada exclusivamente a isso, sem controle político partidário ou estatal, mas apta à cooperação com o Estado e com instituições públicas. Mas, diferentemente de outras instituições, seria preciso que essa fundação contasse, ao menos, com a representação das grandes religiões brasileiras, e com um corpo acadêmico multirreligioso e transdisciplinar, e com acordos de cooperação com universidades.

Naturalmente, poderia ser um centro de pesquisas em uma universidade pública, e com verba pública para o lançamento da iniciativa; ou até mesmo um consórcio de instituições acadêmicas, desde que fosse possível um grau de participação de denominações religiosas na concepção e acompanhamento da iniciativa. Mas seria essencial manter essa questão de princípio: como me disse um amigo, certa vez, “o filho tem de ter a cara de todo mundo”. Sem protagonismo das religiões, poderíamos recair no problema da mera tutela secular do sagrado.

Dar forma à laicidade colaborativa

Os confrades no IBDR Thiago Vieira e Jean Marques Regina, também colunistas na Gazeta do Povo, publicaram um artigo em defesa do novo cadastro criado pela ministra Damares. Além das costumeiras críticas da oposição, a iniciativa foi atacada por alguns conservadores, que viram aí o risco de um controle estatal da religião. Mas o que os colunistas observaram, corretamente, é que a ideia está perfeitamente alinhada com o artigo 19, inciso I, da Constituição Federal de 1988, segundo o qual o Estado brasileiro não pode subvencionar, estabelecer ou se comprometer com quaisquer credos religiosos, ou embaraçar seu funcionamento, “ressalvado, na forma da lei, a colaboração de interesse público”.

O IBDR mantém, entre seus compromissos, o de promover a literacia jurídica nacional com respeito aos temas do direito religioso e, particularmente, sobre o princípio de laicidade colaborativa, que distingue a nossa Carta Magna de outros experimentos constitucionais. O Estado brasileiro é laico, mas a laicidade brasileira permite colaboração entre o Estado e as religiões quando houver interesse público. Mas como implementar esse princípio de forma orgânica, justa e informada, se nem mesmo sabemos o que as congregações e denominações religiosas estão fazendo pelo país? O louvor de Thiago e Jean é correto, aqui: “Esta é a primeira vez em toda a história republicana que um governo federal assume a laicidade colaborativa no sentido prático de viabilizar a colaboração entre Estado e religiões”.

Temos um estabelecimento laicista no Brasil, que vem sendo subvertido pela ascensão da religião evangélica e que, em parte, está colhendo a indiferença que plantou por anos a fio

Sou um crítico público do governo Bolsonaro, como os leitores dessa coluna já sabem; gostaria de empregar meu “lugar de fala” para dizer que, se outros governos não fizeram isso antes, é problema deles. De fato, é um problema real; temos um estabelecimento laicista no Brasil, que vem sendo subvertido pela ascensão da religião evangélica e que, em parte, está colhendo a indiferença que plantou por anos a fio.

A melhor resposta para isso é termos uma política de Estado que dê forma concreta, sadia e transparente ao princípio da laicidade colaborativa. Nessa direção, minha proposta de um atlas da presença social da religião seria um passo além, no sentido de construir o fundamento científico e informacional necessário para uma política pública baseada em evidências, e que efetivamente supere o ranço laicista nos assuntos nacionais. Isso permitirá que decisões importantes sobre renúncias fiscais, concessões em diversas áreas, cooperação em situações de calamidade pública, entre outras, possam ser tomadas com clareza e transparência.

O fato é que, como N. T. Wright observou na epígrafe do artigo, a religião é um rio volumoso demais para ser escondido sob o concreto. Mais cedo ou mais tarde ele arrebentará as ruas. Ignorá-lo também não fará nenhum bem; é melhor deixá-lo correr aberto, limpo, protegido e público.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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