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Guilherme de Carvalho

Guilherme de Carvalho

Guilherme de Carvalho é teólogo público e cientista da religião, com foco na articulação entre cristianismo e cultura contemporânea. É Pastor da Igreja Esperança em Belo Horizonte e diretor de L’Abri Fellowship Brasil. Foi diretor de Promoção e Educação em Direitos Humanos no Governo Federal.

Por uma fé revolucionária

"Moisés fala ao Faraó", de James Jacques Joseph Tissot. (Foto: Reprodução/Domínio público)

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“Marx começou afirmando que o princípio de toda a crítica seria a crítica da religião, apenas para terminar com uma religião política que enterrou toda e qualquer crítica. A fé revolucionária do Êxodo é muito diferente. Tem tudo a ver com liberdade, mudança, transformação e o futuro – a mesma liberdade que a ciência não consegue justificar e que o socialismo revolucionário nunca conseguiu alcançar.” (Os Guinness)

Como pastor evangélico, tenho como uma de minhas obrigações a exposição semanal das Escrituras. E expor o livro do Êxodo bem nesse ano eleitoral, em que os brasileiros se espremem entre Cila e Caríbdis, põe diante de mim um desafio especial. As perguntas éticas e políticas que esse livro levanta crescem ainda mais inevitáveis do que já seriam em qualquer tempo.

Logo no princípio do livro temos uma história de degradação moral e política. O povo hebreu havia se refugiado no Egito, sob a liderança de José, bisneto de Abraão e um dos patriarcas da nação. De início a história foi feliz, com o povo se multiplicando e ocupando um belo trecho de terra fértil no delta oriental do Rio Nilo. Mas uns 200 anos depois, levantou-se no Egito um rei que “não conhecia José”, e que, com medo ou inveja ou ambos, decidiu escravizar a nação. Estamos por volta do século 13 antes de Cristo, quando Moisés aparecerá como libertador de Israel.

As perguntas éticas e políticas que o livro do Êxodo levanta crescem ainda mais inevitáveis agora do que já seriam em qualquer tempo

Mas aí vai a questão, que pode parecer obtusa, mas não é: o Faraó opressor era conservador ou progressista?

Riam se quiserem, mas o assunto importa. O fato é que não havia na Antiguidade nenhum movimento progressista, ninguém atrás do “progresso civilizatório”, embora mudanças brutais de status ocorressem periodicamente, por instabilidades internas ou por conflitos internacionais. Como outros reis-divinos do crescente fértil, Faraó era um sujeito perfeitamente conservador, comprometido com a manutenção da ordem social imperial que, por sua vez, era entendida como um reflexo das realidades celestiais. Tratava-se de uma Cosmópolis, para usar a expressão cara a Stephen Toulmin. O biblista americano Walter Brueggemann explorou isso extensivamente em seu clássico The Prophetic Imagination: “Os deuses do Egito eram inamovíveis senhores da ordem”. E assim, também, o eram os faraós. Nada de mudanças, exceto aquelas necessárias para manter o sistema funcionando “bem” e crescendo cada vez mais.

E então se dá a grande ruptura mosaica, “uma ruptura bidimensional, tanto da religião do triunfalismo estático quanto da política de opressão e exploração”. O conflito de Moisés com Faraó era um conflito do Deus dos hebreus com os deuses egípcios e todo o sistema escravocrata pendurado neles. O processo revolucionário foi tanto religioso quanto social e político. Formou-se, a partir dele, não apenas uma religião nova, mas uma nova comunidade histórica. Uma nação livre é o que nasce do Êxodo.

E o termo “revolução” foi adotado aqui porque não existe mesmo outro para descrever o que aconteceu. Foi uma libertação, sim; mas foi, além disso, a subversão moral e política de um sistema imperial, contra o qual o próprio Deus se levantou, e ao qual ele disse “não!” E alguém poderia alegar, aqui, que o Faraó da história bíblica não seria realmente um conservador, já que é descrito explicitamente como o rei “que não conhecia José”. Daí cismou de escravizar os hebreus. Seria, então, um inovador político desastrado, um incompetente. E de onde viria tal desconhecimento? Alguns acreditam que o Faraó amigo dos Hebreus teria sido um dos últimos reis dos hicsos, que ocuparam o Egito por um tempo e foram finalmente expulsos pela 18.ª dinastia de faraós nativos; mas não há certeza sobre isso. Mas, se fosse esse o caso, o Faraó “imprudente” estaria tentando controlar um povo que se aliou a estrangeiros e, ademais, representaria a identidade e supremacia egípcia. “O Egito para os egípcios”, alguém poderia dizer.

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A essa altura a acusação de anacronismo já se formou na mente de alguns leitores, mas devo lembrá-los de que, segundo os melhores doutrinadores do conservadorismo, essa posição não é uma ideologia, mas uma sensibilidade moral, um posicionamento diante do mundo marcado por virtudes como a prudência. Buscar uma “esquerda progressista” no mundo político antigo seria mesmo anacrônico, mas esse bloqueio não se estende ao conservadorismo.

Toco em nervos sensíveis; eu mesmo sou aluno distante de Abraham Kuyper e de seu mentor, Groen van Prinsterer, autor de Incredulidade e Revolução, de 1847. Mas o espírito antirrevolucionário dos neocalvinistas modernos não pode ser descontextualizado; a revolução que Van Prinsterer tinha em mente é a obra dos franceses, o ideal revolucionário moderno, tão bem exposto por James Billington em A Fé Revolucionária, finalmente publicado em 2020 no Brasil. Livro indispensável, devo dizer.

Aliás, se considerarmos a posição de Michael Walzer, antes dos revolucionários ímpios da Revolução Francesa houve o puritanismo inglês, com seu energético radicalismo em favor da religião reformada e de uma verdadeira commonwealth, opondo-se ao clericalismo e ao absolutismo monárquico. Os católicos em geral não são fãs do puritanismo; nem a esquerda, especialmente a identitária. Nem conservadores como Eric Voegelin, bastante apreciado nos EUA e no Brasil, e um duro crítico do calvinismo. Voegelin é um pensador da ordem, que enxergava o gnosticismo na fé protestante. Criticou até mesmo o apóstolo Paulo, precisamente por sua esperança escatológica. Não será que o conservadorismo é realmente míope para alguns aspectos da fé bíblica?

O conflito de Moisés com Faraó era um conflito do Deus dos hebreus com os deuses egípcios e todo o sistema escravocrata pendurado neles. O processo revolucionário foi tanto religioso quanto social e político

Diz Os Guinness em The Magna Carta of Humanity:

“Deixar Deus ser Deus é o coração da fé revolucionária, aquilo que torna a fé revolucionária. A presença de Deus questiona cada status quo. É por isso que a verdadeira fé jamais deve se tornar reacionária, e porque a fé jamais deveria simplesmente fortalecer o status quo ou prover legitimidade religiosa para culturas sob pressão. A fé revolucionária começa com um chamado a romper com o status quo do tempo em que cada geração vive, uma conversão de todas as outras formas de pensar e de viver, um giro radical e uma revolução no próprio centro de nosso pensamento e nossa vida. A conversão, nesse sentido, é a suprema deserção de todas as outras formas de pensar e viver, a suprema reviravolta, e a microrrevolução que é o princípio natural da fé revolucionária à qual essa fé em Deus nos leva. Aqueles que conhecem a Deus tem suas vidas viradas de cabeça para baixo e se tornam seus parceiros juniores no grande projeto de virar o mundo de cabeça para cima novamente.”

Essa última frase é muito importante para entender o que Guinness quis dizer. Guinness foi discípulo do evangélico Francis Schaeffer em L’Abri e aluno de Peter Berger no Oriel College em Oxford, e suas credenciais conservadoras são indubitáveis. Mas ele nunca foi primariamente conservador; na frente de tudo sempre esteve o seu cristianismo, e o cristianismo nos ensina a tirar as sandálias dos pés ao ler o Êxodo, assim como os judeus. E o que aprendemos lá é que Deus pode decidir subverter tudo. Deus está do lado da manutenção da ordem, sim... exceto quando não está.

Quando o espírito conservador segue apenas suas regras internas, não é capaz de alcançar por seus recursos uma visão do futuro que Deus estabeleceu para o mundo e para o seu povo

Isso pode soar arbitrário e suspeito para os conservadores, mas não há razão para medo. Como eu disse, a última frase de Guinness é importante: quando Deus subverte a ordem, é porque ela é, na verdade, uma desordem institucionalizada. O mundo dos faraós no século 13 ou 14 antes de Cristo poderia ser bem-ordenado, reunindo religião, moralidade, ordem social e relação com a natureza, tudo numa grande Cosmópolis, mas era um sistema de medo e opressão que Deus não poderia suportar. O parágrafo supracitado é parte de uma excelente discussão de Guinness sobre o lugar do Êxodo nas religiões abraâmicas e no cristianismo, em especial; segundo ele, Deus não agiu através de Moisés para negar a ordem criada que ele mesmo estabeleceu, mas para restaurá-la. O sistema imperial egípcio era uma falsa ordem.

A despeito, então, do título de Billington, a fé revolucionária moderna é uma religião da morte, sem dúvida nenhuma, mas há uma fé revolucionária bíblica, segundo a observação de Guinness. E quando o espírito conservador segue apenas suas regras internas, não é capaz de alcançar por seus recursos uma visão do futuro que Deus estabeleceu para o mundo e para o seu povo. Conservadores não gostam de escatologia – Voegelin, ao menos, foi honesto sobre isso. Diante desses limites, devo dizer que um conservadorismo cristão não pode se alegar cristão se não houver nele um claro lugar para o Êxodo e a verdadeira fé revolucionária.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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