“Marx começou afirmando que o princípio de toda a crítica seria a crítica da religião, apenas para terminar com uma religião política que enterrou toda e qualquer crítica. A fé revolucionária do Êxodo é muito diferente. Tem tudo a ver com liberdade, mudança, transformação e o futuro – a mesma liberdade que a ciência não consegue justificar e que o socialismo revolucionário nunca conseguiu alcançar.” (Os Guinness)
Como pastor evangélico, tenho como uma de minhas obrigações a exposição semanal das Escrituras. E expor o livro do Êxodo bem nesse ano eleitoral, em que os brasileiros se espremem entre Cila e Caríbdis, põe diante de mim um desafio especial. As perguntas éticas e políticas que esse livro levanta crescem ainda mais inevitáveis do que já seriam em qualquer tempo.
Logo no princípio do livro temos uma história de degradação moral e política. O povo hebreu havia se refugiado no Egito, sob a liderança de José, bisneto de Abraão e um dos patriarcas da nação. De início a história foi feliz, com o povo se multiplicando e ocupando um belo trecho de terra fértil no delta oriental do Rio Nilo. Mas uns 200 anos depois, levantou-se no Egito um rei que “não conhecia José”, e que, com medo ou inveja ou ambos, decidiu escravizar a nação. Estamos por volta do século 13 antes de Cristo, quando Moisés aparecerá como libertador de Israel.
As perguntas éticas e políticas que o livro do Êxodo levanta crescem ainda mais inevitáveis agora do que já seriam em qualquer tempo
Mas aí vai a questão, que pode parecer obtusa, mas não é: o Faraó opressor era conservador ou progressista?
Riam se quiserem, mas o assunto importa. O fato é que não havia na Antiguidade nenhum movimento progressista, ninguém atrás do “progresso civilizatório”, embora mudanças brutais de status ocorressem periodicamente, por instabilidades internas ou por conflitos internacionais. Como outros reis-divinos do crescente fértil, Faraó era um sujeito perfeitamente conservador, comprometido com a manutenção da ordem social imperial que, por sua vez, era entendida como um reflexo das realidades celestiais. Tratava-se de uma Cosmópolis, para usar a expressão cara a Stephen Toulmin. O biblista americano Walter Brueggemann explorou isso extensivamente em seu clássico The Prophetic Imagination: “Os deuses do Egito eram inamovíveis senhores da ordem”. E assim, também, o eram os faraós. Nada de mudanças, exceto aquelas necessárias para manter o sistema funcionando “bem” e crescendo cada vez mais.
E então se dá a grande ruptura mosaica, “uma ruptura bidimensional, tanto da religião do triunfalismo estático quanto da política de opressão e exploração”. O conflito de Moisés com Faraó era um conflito do Deus dos hebreus com os deuses egípcios e todo o sistema escravocrata pendurado neles. O processo revolucionário foi tanto religioso quanto social e político. Formou-se, a partir dele, não apenas uma religião nova, mas uma nova comunidade histórica. Uma nação livre é o que nasce do Êxodo.
E o termo “revolução” foi adotado aqui porque não existe mesmo outro para descrever o que aconteceu. Foi uma libertação, sim; mas foi, além disso, a subversão moral e política de um sistema imperial, contra o qual o próprio Deus se levantou, e ao qual ele disse “não!” E alguém poderia alegar, aqui, que o Faraó da história bíblica não seria realmente um conservador, já que é descrito explicitamente como o rei “que não conhecia José”. Daí cismou de escravizar os hebreus. Seria, então, um inovador político desastrado, um incompetente. E de onde viria tal desconhecimento? Alguns acreditam que o Faraó amigo dos Hebreus teria sido um dos últimos reis dos hicsos, que ocuparam o Egito por um tempo e foram finalmente expulsos pela 18.ª dinastia de faraós nativos; mas não há certeza sobre isso. Mas, se fosse esse o caso, o Faraó “imprudente” estaria tentando controlar um povo que se aliou a estrangeiros e, ademais, representaria a identidade e supremacia egípcia. “O Egito para os egípcios”, alguém poderia dizer.
A essa altura a acusação de anacronismo já se formou na mente de alguns leitores, mas devo lembrá-los de que, segundo os melhores doutrinadores do conservadorismo, essa posição não é uma ideologia, mas uma sensibilidade moral, um posicionamento diante do mundo marcado por virtudes como a prudência. Buscar uma “esquerda progressista” no mundo político antigo seria mesmo anacrônico, mas esse bloqueio não se estende ao conservadorismo.
Toco em nervos sensíveis; eu mesmo sou aluno distante de Abraham Kuyper e de seu mentor, Groen van Prinsterer, autor de Incredulidade e Revolução, de 1847. Mas o espírito antirrevolucionário dos neocalvinistas modernos não pode ser descontextualizado; a revolução que Van Prinsterer tinha em mente é a obra dos franceses, o ideal revolucionário moderno, tão bem exposto por James Billington em A Fé Revolucionária, finalmente publicado em 2020 no Brasil. Livro indispensável, devo dizer.
Aliás, se considerarmos a posição de Michael Walzer, antes dos revolucionários ímpios da Revolução Francesa houve o puritanismo inglês, com seu energético radicalismo em favor da religião reformada e de uma verdadeira commonwealth, opondo-se ao clericalismo e ao absolutismo monárquico. Os católicos em geral não são fãs do puritanismo; nem a esquerda, especialmente a identitária. Nem conservadores como Eric Voegelin, bastante apreciado nos EUA e no Brasil, e um duro crítico do calvinismo. Voegelin é um pensador da ordem, que enxergava o gnosticismo na fé protestante. Criticou até mesmo o apóstolo Paulo, precisamente por sua esperança escatológica. Não será que o conservadorismo é realmente míope para alguns aspectos da fé bíblica?
O conflito de Moisés com Faraó era um conflito do Deus dos hebreus com os deuses egípcios e todo o sistema escravocrata pendurado neles. O processo revolucionário foi tanto religioso quanto social e político
Diz Os Guinness em The Magna Carta of Humanity:
“Deixar Deus ser Deus é o coração da fé revolucionária, aquilo que torna a fé revolucionária. A presença de Deus questiona cada status quo. É por isso que a verdadeira fé jamais deve se tornar reacionária, e porque a fé jamais deveria simplesmente fortalecer o status quo ou prover legitimidade religiosa para culturas sob pressão. A fé revolucionária começa com um chamado a romper com o status quo do tempo em que cada geração vive, uma conversão de todas as outras formas de pensar e de viver, um giro radical e uma revolução no próprio centro de nosso pensamento e nossa vida. A conversão, nesse sentido, é a suprema deserção de todas as outras formas de pensar e viver, a suprema reviravolta, e a microrrevolução que é o princípio natural da fé revolucionária à qual essa fé em Deus nos leva. Aqueles que conhecem a Deus tem suas vidas viradas de cabeça para baixo e se tornam seus parceiros juniores no grande projeto de virar o mundo de cabeça para cima novamente.”
Essa última frase é muito importante para entender o que Guinness quis dizer. Guinness foi discípulo do evangélico Francis Schaeffer em L’Abri e aluno de Peter Berger no Oriel College em Oxford, e suas credenciais conservadoras são indubitáveis. Mas ele nunca foi primariamente conservador; na frente de tudo sempre esteve o seu cristianismo, e o cristianismo nos ensina a tirar as sandálias dos pés ao ler o Êxodo, assim como os judeus. E o que aprendemos lá é que Deus pode decidir subverter tudo. Deus está do lado da manutenção da ordem, sim... exceto quando não está.
Quando o espírito conservador segue apenas suas regras internas, não é capaz de alcançar por seus recursos uma visão do futuro que Deus estabeleceu para o mundo e para o seu povo
Isso pode soar arbitrário e suspeito para os conservadores, mas não há razão para medo. Como eu disse, a última frase de Guinness é importante: quando Deus subverte a ordem, é porque ela é, na verdade, uma desordem institucionalizada. O mundo dos faraós no século 13 ou 14 antes de Cristo poderia ser bem-ordenado, reunindo religião, moralidade, ordem social e relação com a natureza, tudo numa grande Cosmópolis, mas era um sistema de medo e opressão que Deus não poderia suportar. O parágrafo supracitado é parte de uma excelente discussão de Guinness sobre o lugar do Êxodo nas religiões abraâmicas e no cristianismo, em especial; segundo ele, Deus não agiu através de Moisés para negar a ordem criada que ele mesmo estabeleceu, mas para restaurá-la. O sistema imperial egípcio era uma falsa ordem.
A despeito, então, do título de Billington, a fé revolucionária moderna é uma religião da morte, sem dúvida nenhuma, mas há uma fé revolucionária bíblica, segundo a observação de Guinness. E quando o espírito conservador segue apenas suas regras internas, não é capaz de alcançar por seus recursos uma visão do futuro que Deus estabeleceu para o mundo e para o seu povo. Conservadores não gostam de escatologia – Voegelin, ao menos, foi honesto sobre isso. Diante desses limites, devo dizer que um conservadorismo cristão não pode se alegar cristão se não houver nele um claro lugar para o Êxodo e a verdadeira fé revolucionária.
Símbolo da autonomia do BC, Campos Neto se despede com expectativa de aceleração nos juros
Toffoli se prepara para varrer publicações polêmicas da internet; acompanhe o Sem Rodeios
Após críticas, Randolfe retira projeto para barrar avanço da direita no Senado em 2026
Brasil cai em ranking global de competitividade no primeiro ano de Lula
Inteligência americana pode ter colaborado com governo brasileiro em casos de censura no Brasil
Lula encontra brecha na catástrofe gaúcha e mira nas eleições de 2026
Barroso adota “política do pensamento” e reclama de liberdade de expressão na internet
Paulo Pimenta: O Salvador Apolítico das Enchentes no RS