“Até a reconciliação final essas duas comunidades precisam coexistir, uma com o testemunho de suas instituições públicas, e a outra com um testemunho fundado na fé e atestador dela, a comunidade da circuncisão e a comunidade do batismo.” (Oliver O’Donovan)
Eu dava pouca atenção ao trabalho do senhor Breno Altman até ler, estupefato, uma publicação em suas mídias sociais sobre as ressonâncias religiosas do conflito Hamas-Israel. Soube a respeito por meio de Lucas Berlanza, que as reproduziu igualmente estupefato. Segundo o gênio do PT, “enfrentar o sionismo, além de confrontar o colonialismo israelense, faz parte da luta contra o bolsonarismo, que se apoia sobre o fundamentalismo religioso evangélico e sua aliança com o mito de Israel como a terra prometida dos judeus, a fantasia maior do racismo sionista”. O mesmo sujeito defende a ação do Hamas: “podemos não gostar do Hamas, discordando de suas políticas e métodos. Mas essa organização é parte decisiva da resistência palestina contra o Estado colonial de Israel. Relembrando o ditado chinês, nesse momento não importa a cor dos gatos, desde que cacem ratos”. Mesmo que esses gatos sejam a irmandade islâmica fanática que pariu o Estado Islâmico, por conseguinte.
Em outros termos, “não gostamos dos métodos, mas, como eles estão do lado certo, caçando os ratos colonialistas, isso não importa”. Um exemplo transparente da tolerância da esquerda com o terrorismo, quando lhe convém. Trata-se aqui da inversão moral, tão bem explicada por Michael Polanyi: uma vez que o sonho de um mundo melhor é puro e bom, podemos empoderar um maquinário de poder e ideologia que esmaga a pessoa humana. Eu não preciso ser pessoalmente bom, uma vez que a minha agenda é vicariamente boa. Em nome de sonhos tão puros, ser cruel, hoje, é a prova da minha grande e iluminada bondade. Escrúpulos? Coisa de gente moralista.
Não tenho a menor pretensão de legitimar todos os atos do moderno Estado de Israel. Mas sou pró-Israel por razões teológicas – tenho de admiti-lo com toda a honestidade
A mentalidade e a reação de Altman não são um caso isolado: mas reserve esse molho por um instante, enquanto cozinhamos o prato principal, o mérito da coisa: o que têm os evangélicos com Israel?
Sionismo cristão?
Fato é que o mainstream evangélico se posicionou inequivocamente em favor do direito de autodefesa do povo judeu e do Estado de Israel, confirmando um generalizado sionismo cristão. Além das manifestações públicas de muitos líderes e influenciadores, houve até mesmo notas oficiais, como a nota de repúdio do IBDR com a Unigrejas, e o manifesto da Coalizão pelo Evangelho (TGC), com “Um chamado à oração por Israel e pela paz no Oriente Médio”.
A movimentação foi ruidosa o suficiente para atrair a atenção da imprensa, com um artigo publicado por Anna Virginia Balloussier na Folha de S.Paulo já no sábado, dia 7 (“Por que tantos evangélicos defendem Israel no novo conflito?), e outro por Letícia Mori, na BBC, anteontem (“Por que tantos evangélicos defendem Israel?”), para o qual fui entrevistado, inclusive. A explicação padrão é conhecida: os evangélicos apoiam Israel pela influência de uma forma de teologia denominada “dispensacionalismo”, segundo a qual, grosso modo, Deus teria “dois povos” eleitos – um espiritual, a igreja; e outro terreno, Israel. O nascimento do moderno Estado de Israel, em 1948, seria uma evidência de que Deus voltará a tratar com o mundo por meio do povo terreno, e um sinal do fim dos tempos. Daí a ideia de que Israel seria uma espécie de “relógio do fim do mundo”.
Alguns evangélicos, especialmente aqueles à esquerda, rejeitam essa leitura teológica da história como algo espúrio e alienante. Ela alimentaria, por um lado, um descompromisso dos cristãos com os assuntos terrenos, já que a igreja é um povo espiritual com propósitos espirituais. Mas, além disso, ela fundamenta uma espécie de “sionismo cristão”, promotor de um etnoestado racista no qual não judeus são tratados diferentemente dos judeus, e do projeto colonial de domínio da Palestina, alegadamente posse natural de palestinos não judeus. Além disso, sionistas cristãos seriam tolerantes com os atos de violência de Israel contra civis palestinos. Alguns “evangélicos” de extrema-esquerda chegam a rotular Israel de “Estado terrorista”.
A raiz e os ramos
Minha própria posição sobre isso é algo que meu amigo Igor Miguel denomina “filossemitismo crítico”; não tenho a menor pretensão de legitimar todos os atos do moderno Estado de Israel. Mas sou pró-Israel por razões teológicas – tenho de admiti-lo com toda a honestidade. Não porque eu seja dispensacionalista, mas porque todo o substrato mais antigo e profundo da religião cristã é inequivocamente judeu, desde o cânon bíblico, passando por toda a simbólica cósmica e religiosa, pela narrativa teológica da história, até chegar aos fundadores do cristianismo – Jesus, o judeu, seus 12 discípulos judeus, e o grande apóstolo Paulo, romano e também judeu. Quanto a isso, subscrevo integralmente a nota da TGC:
“Por fim, lembramos que as Escrituras são claras no sentido de que nós, crentes gentios, somos os ramos da oliveira brava que foi enxertada no tronco da oliveira original, composta dos judeus crentes. Alguns ramos da oliveira original foram cortados e lançados fora até que se complete o número dos crentes gentios, mas haverá um renovo daqueles que o apóstolo Paulo chamou de seus irmãos de carne. É uma a oliveira, mas nós somos o enxerto. Isso deve trazer aos crentes gentios humildade e ao mesmo tempo zelo e amor pelo povo que Deus usou para nos dar a Lei, as Promessas e o Messias Jesus: ‘Será que Deus rejeitou o seu povo [de Israel]? De modo nenhum! […] Nos dias de hoje sobrevive [em Israel] um remanescente segundo a eleição da graça. E, se é pela graça, já não é pelas obras; do contrário, a graça já não é graça. […] Todo o Israel será salvo. [… Pois] quanto à eleição, [os de Israel são] amados por causa dos patriarcas; porque os dons e a vocação de Deus são irrevogáveis’ (Romanos 11,1.5-6.26).”
Essa posição, por desagradável que pareça a olhos laicos e liberais-progressistas, é a mais condizente com o fundo hebreu da tradição cristã e com as expectativas histórico-redentivas da revelação bíblica, mesmo para quem não vê Israel como um “relógio-do-fim-do-mundo”. A partir de uma corrente teológica muito afastada do dispensacionalismo, o teólogo moral Oliver O’Donovan, cônego do Christ Church College e professor da Universidade de Oxford, admitirá abertamente a contínua importância religiosa do povo judeu para a própria imaginação cristã:
“Israel precisa aprender a ver a si mesmo em termos dele [Jesus]; e, quando o fizer, a luta por Israel terá produzido seu fruto. Nesse meio tempo o enxerto dos Gentios na raiz de Israel não pode mudar o fato de que é sobre a raiz de Israel que eles foram enxertados.
O que esse argumento intrigante implica é que a tradição pública de Israel – a adoção, a glória, as alianças, a doação da lei, a adoração e as promessas ... os patriarcas e... o Messias... – é contínua... Mesmo os gentios cristãos, argumentou Paulo... não podem ignorar a comunidade na qual eles mesmos foram enxertados pela fé. Assim, até a reconciliação final essas duas comunidades precisam coexistir, uma com o testemunho de suas instituições públicas, e a outra com um testemunho fundado na fé e atestador dela, a comunidade da circuncisão e a comunidade do batismo... A pouca familiaridade comparativa com esse quadro, ao qual apenas os sionistas cristãos atentaram de modo consistente, pode ocultar de nós sua fertilidade para a tarefa teológico política... A tradição pública de Israel ainda confronta a igreja, e não é errado aguardar o cumprimento dessa tradição pública sob o governo de Cristo.”
Todo o substrato mais antigo e profundo da religião cristã é inequivocamente judeu, desde o cânon bíblico até chegar aos fundadores do cristianismo – Jesus, seus 12 discípulos e o grande apóstolo Paulo
Essa posição não é a de algum pastor neopentecostal obscuro, mas de um “Regius Professor of Moral Theology”, uma importante cátedra de Oxford fundada em 1840 por um ato do Parlamento Britânico, com autoridade teológica e acadêmica no anglicanismo; e foi expressa em uma das mais importantes obras de teologia política cristã da contemporaneidade.
A tradição pública de Israel
A objeção de que o atual Estado judeu, como unidade política e territorial, nada tem a ver com o Israel bíblico e que não constitui verdadeiramente o povo eleito de Deus é terrivelmente preguiçosa. Nenhum gênio teológico é necessário para reconhecer que o povo judeu, como povo do livro, com sua longa conexão matrilinear (ainda que profundamente miscigenado), encontrou no Estado de Israel uma expressão política genuína e moderna. O Estado de Israel não é o povo judeu, mas pertence ao povo judeu, como uma de suas instituições. E, se esse povo ainda tem algum significado espiritual ou teológico para o cristianismo, torna-se impossível evitar uma ou outra interpretação teológica sobre o Estado de Israel. Separar os judeus, o judaísmo e o Estado de Israel, ainda que laico, é um expediente artificioso demais.
Mas há outra razão pela qual essa objeção é absurda; é que a investigação sobre o impacto da formação histórica da nação judaica na construção das instituições políticas modernas revelou que até mesmo nossos conceitos de contrato político são devedores do Pentateuco. Em Exodus and Revolution, por exemplo, o cientista político Michael Walzer admitirá abertamente essa conexão:
“O pacto é a invenção política do livro do Êxodo... Não existe precedente para um tratado entre Deus e um povo inteiro ou para um tragado cujas condições sejam literalmente as leis da moralidade... Pode-se argumentar pela influência do juramento feudal ou do complexo sistema de vassalagem sobre a teoria de contrato posterior; muitos historiadores fizeram isso. Mas a linha mais forte, a linha mais frequentemente traçada nos tratados e panfletos de publicistas radicais (no século 17), corre do pacto para o contrato.”
Influências judaicas alimentaram concepções contratuais, federativas e liberais sobre a organização moderna do Estado de Direito, como o reconheceram pensadores judeus como Daniel Elazar, secularistas como Michael Walzer, e cristãos como Oliver O’Donovan, Nicholas Wolterstorff e Os Guinness. Nesse sentido, não se pode simplesmente “laicizar” o fenômeno do Estado moderno, apagando suas fontes teológicas; e muito menos fazê-lo no caso de Israel.
Isso não significa, evidentemente, que o Estado de Israel, enquanto versão singular de democracia liberal, seja per se a expressão da tradição pública do povo judeu e da fé bíblica, e muito menos que seus desmandos sejam moralmente justificados. O ponto, antes, é que o povo judeu é portador de uma tradição teológico-política e de uma memória coletiva, que existe como resultado de atos divinos na história, e que tem assuntos a resolver diante do Messias, Jesus Cristo. O povo do batismo e o povo da circuncisão são como irmãos em contenda, mas ainda assim irmãos que terão de se ver um dia.
Diante disso, é uma hipocrisia muito profunda para um teólogo cristão a tentativa de neutralizar teologicamente a questão do compromisso cristão com Israel sob a alegação de o país sob ataque é apenas um projeto estatal laico e colonial que nada tem a ver com a história religiosa judaica. Os erros e os acertos dos judeus e do Estado de Israel, assim como o seu futuro, importam muito para a comunidade cristã.
Tudo indica que o ódio antievangélico nas esquerdas nacionais já foi combinado com seu antissemitismo mascarado de anticolonialismo
Antievangélicos e antissemitas
O fato é que, quanto mais os evangélicos aprendem sobre a importância histórica, simbólica e religiosa de Israel, sobre o caráter judaico do cristianismo primevo, e sobre o sentido histórico-salvífico do povo judeu, mais improvável se torna o antissemitismo cristão, herdeiro da imaginação racista medieval que infectava a mente europeia, de Lutero ao catolicismo ibérico. É surpreendente constatar que os cristãos, antes acusados de antissemitismo, sejam agora denunciados por seu filossemitismo! De minha parte, penso devermos distribuir bananas para esses críticos.
Esse posicionamento, é claro, nos coloca em rota de colisão com o liberalismo progressista, com sua visão inerentemente individualista e antitradicional sobre a vida cívica. Para os modernos, não cabem na esfera pública lealdades comunitárias e religiosas que se sobreponham aos contratos da democracia liberal. Mas isso é, precisamente, aquilo que nenhuma religião abraâmica será capaz de aceitar. A democracia liberal é um expediente, um arranjo histórico, não uma ordem moral suprema. Ela deve ser promovida em bases práticas, mas não pode ser elevada a fundamento metafísico da existência social. Ela nem mesmo é capaz de sobreviver nos ares rarefeitos de tão grande altitude. A democracia liberal pode pressupor Deus, a dignidade humana e os deveres da fraternidade, mas não tem a capacidade de produzir a fé nesses bens. Ela nasceu e ainda existe suspensa pelos cabos de aço da imaginação moral judaico-cristã.
A lealdade cristã ao evangelho e ao povo que recebeu o evangelho primeiro, ainda que hoje o rejeite, não está sob júdice. Os cristãos não podem nem devem submeter essa questão a quaisquer agendas políticas seculares. Pelo contrário, perguntamos nós: até quando os liberais progressistas insistirão em empurrar seu projeto sobre nós? Se a hegemonia democrático-liberal é impraticável, a melhor solução é o pluralismo democrático, onde os judeus poderão ser judeus e os cristãos, cristãos.
E agora voltamos a Breno Altman; ou melhor: ao ódio ideológico que ele ilustra. A reação ao artigo da Anna Balloussier na Folha foi impressionantemente consistente: literalmente milhares de comentários respirando ódio contra evangélicos e contra Israel, na mesma toada. O mesmo foi notado em outras mídias e publicações, como comentou Marília de Camargo César para o Observatório Evangélico. Tudo indica que o ódio antievangélico nas esquerdas nacionais já foi combinado com seu antissemitismo mascarado de anticolonialismo.
A iminente invasão de Gaza colocará Israel sob enorme risco moral, com a possibilidade de cometer crimes de guerra. Aqui, o filossemitismo evangélico deve puxar seus freios e manter a prioridade dos direitos humanos sobre o poder dos Estados
Por sinal, rejeito completamente a tese de que o ódio refundido anticrente/anti-Israel seja motivado apenas pelo anticolonialismo. Como transparece no post de Altman, o que se recusa é o imaginário judaico-cristão. Os inimigos esquerdistas do Estado de Israel são inimigos da sua tradição pública. Seu ódio a Israel e aos evangélicos não é acidental; é perfeitamente consistente com seu neopaganismo.
Isso é bom e ruim. Num sentido, confirma a importância do movimento evangélico como resistência a tendências perversas e reacionárias da esquerda nacional. Significa mais pressão sobre os evangélicos, mas também uma possível mudança na atitude do Brasil em relação a Israel, e um contrapeso para a tendência petista de apoiar ditadores e terroristas.
Para a política nacional, significa a ampliação do fosso entre a esquerda e os evangélicos. Trata-se, é claro, de uma burrice impressionante e grotesca, fruto da “limbificação” da militância pós-moderna. Ninguém mais raciocina ou faz política; fomos reduzidos a gritarias, pranto e ranger de dentes. O que pensam esses esquerdistas? Que os evangélicos evaporaram depois da queda de Bolsonaro? Isso inevitavelmente reverberará nos pleitos futuros.
Mas há, aqui, um sério risco: que evangélicos legitimem abusos passados e futuros de Israel contra o povo palestino. A iminente invasão de Gaza colocará Israel sob enorme risco moral, com a possibilidade de cometer crimes de guerra e enfraquecer sua reputação internacional. Aqui, com toda a certeza, o filossemitismo evangélico deve puxar seus freios e manter a prioridade dos direitos humanos sobre o poder dos Estados. Afinal, o sofrimento do Povo-da-Circuncisão no século 20 tanto abriu caminho para o Estado de Israel, em 1948, quanto para a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948. Ambas as instituições devem contar com o compromisso do Povo-do-Batismo.
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