“O leão comerá palha como o boi. A criança de peito brincará sobre a toca da cobra, e a desmamada porá a mão na cova da víbora.” (Isaías 11.7-8)
A jurista de Harvard Mary Ann Glendon abre seu indispensável livro “A World Made New” (2002), sobre Eleanor Roosevelt e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, lembrando a história da invasão de Melos em 418 A.C. pelos Atenienses. Os habitantes de Melos tentaram inutilmente persuadir os agressores pela diplomacia, recebendo a exasperadora resposta de que “o direito vale apenas para aqueles iguais em poder”. Manda quem pode, e obedece quem tem juízo, em outras palavras.
Os atenienses assassinaram todos os homens adultos de Melos e escravizaram as mulheres e as crianças.
O abuso dos poderosos contra os fracos é uma regra na história, mas isso passou por uma grande mudança depois da Segunda Grande Guerra, com a criação da ONU e a DUDH de 1948. Cito as palavras da jurista:
“Séculos depois, em uma onda de atrocidades além da imaginação dos gregos, as mais poderosas nações da terra se ajoelharam diante das demandas de países menores pelo reconhecimento de um padrão comum a todos pelo qual os direitos e erros no comportamento de cada nação poderiam ser medidos. O terreno moral das relações internacionais foi para sempre alterado numa noite em Paris, em 10 de dezembro de 1948, quando a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou a Declaração Universal dos Direitos Humanos sem nenhum mesmo um voto contrário.” (Mary Ann Glendon)
Como já foi tantas vezes destacado, a declaração de 1948 requalificou severamente o sistema de estado-nação soberano sacramentado na Paz de Westfália em 1648, 300 anos antes, e introduziu uma verdadeira novidade política no mundo, com estados nacionais se comprometendo a seguir uma lógica de regras moralmente fundamentadas, tanto na sua relação mútua quanto no trato da pessoa humana. Era como se de repente a possibilidade de existir em um mundo moralmente ordenado se tornasse possível.
Mas aqui estamos nós: 73 anos depois, Putin, após garantir que não invadiria a Ucrânia, atacou o país com o claro propósito de derrubar o governo e substituí-lo por um fantoche pró-Rússia. Alegou até mesmo que o atual regime ucraniano teria se nazificado – ao que o presidente Zelenskiy, que é judeu, retrucou: “como eu poderia ser nazista?”
Autocracia, mentiras, invasão militar, reticência das potencias ocidentais; como vários analistas notaram, a receita lembra Hitler em 1939. Não é que Putin seja mau como Hitler foi, mas o ex-membro da KGB segue a cartilha dos antepassados. Não é também que a OTAN seja uma virgem pura e incompreendida; poderia haver certa plausibilidade no argumento de expansão injustificada rumo às fronteiras russas. Mas os fatos das últimas horas berram em uníssono: autocratas tem mesmo que ser vigiados, e de perto.
Autocracia, mentiras, invasão militar, reticência das potencias ocidentais; como vários analistas notaram, a receita lembra Hitler em 1939
E assim voltamos aos anos 1930; ou a um estado de coisas similar, ao menos em alguns aspectos. Não apenas o sistema unipolar pós 1989 se desfez, como observou Oliver Stuenkel, mas a ideia de uma ordem moral e legal internacional sofreu um abalo histórico. Não foi demais a declaração do secretário geral da OTAN, Jens Stoltenberg, de que “será uma nova realidade, uma nova Europa, após a invasão”. Alguma coisa se quebrou de fato na ordem internacional. Na mesma toada, Os líderes do G7 emitiram uma declaração eloquente a esse respeito ontem (24/02) mencionando o problema explicitamente:
“Esta crise é uma séria ameaça à ordem internacional baseada em regras, com ramificações muito além da Europa. Não há justificativa para alterar fronteiras internacionalmente reconhecidas pela força. Isso mudou fundamentalmente a situação da segurança Euro-Atlântica. O Presidente Putin reintroduziu a guerra no continente Europeu. Ele se colocou do lado errado da história.”
Mas existe mesmo um “lugar certo da história”? Historicistas, se forem honestos, cederão esse assento aos vitoriosos, inevitavelmente. Os realistas políticos com ânimos niilistas também. Mas para os Cristãos existe algo maior que a história, naturalmente. Não é a própria história quem define qual seria o seu “lado certo”, o que seria uma pura e simples tautologia. O lado certo da história se define extra-historicamente.
A metafísica de armário do G7 nos ajuda a pôr em contexto a leitura cristã dessa crise internacional. Cristãos acreditam mesmo – sem esconder suas bases metafísicas – em ordens baseada em regras justas e compassivas. A expectativa de uma ordem social na qual a justiça e a misericórdia prevaleçam sobre o poder está no coração da Esperança Bíblica.
Não se trata, aqui, de nenhuma flutuação ingênua sobre uma boa vontade natural dos poderosos para respeitar e acolher os mais fracos, mas da crença de que o reino Messiânico colocará todos os poderes nos seus lugares. O livro do profeta Isaías anuncia que o Messias “julgará os pobres com justiça e defenderá os humildes da terra sem parcialidade; ferirá a terra com palavras de juízo e matará o ímpio com o seu sopro”; e, então, “o lobo habitará com o cordeiro, e o leopardo se deitará com o cabrito. O bezerro, o leão e o animal de engorda viverão juntos; e um menino pequeno os conduzirá... Naquele dia a raiz de Jessé será como uma bandeira aos povos, para onde as nações recorrerão; o seu descanso será glorioso.” (Isaías 11.4,5,10).
O que o trecho bíblico quer comunicar é a ideia hebraica de Shalom, que significa paz, segurança e justiça. Em tal situação a criança não precisa temer as feras. Trata-se de um texto apocalíptico, que não deve ser interpretado literalmente; o ponto não é imaginar o fim da agressividade animal, mas a submissão definitiva da força bruta à justiça moral. O reino messiânico será um tempo em que crianças não precisa temer adultos, mulheres não precisam temer homens, minorias étnicas não precisam temer maiorias nacionais, e países pequenos não precisam temer países grandes; Melos não precisaria temer Atenas, nem a Kiev temer Moscou.
Alguém poderia pensar que essa fala não passa de utopia piedosa, de um inexistente mundo herbívoro e sem dentes; mas quero insistir no meu ponto, pois os judeus e cristãos nunca foram ingênuos a esse respeito. Como indica o trecho de Isaías, é claro que a justiça será estabelecida por meio de um rei poderoso, levantado por Deus, e que “matará o ímpio”. Não há nenhuma clivagem entre poder e justiça aqui. A questão é a ordem das coisas: não é que o poder instaure a justiça por seu arbítrio, mas é governado pela justiça e a representa.
O Cristianismo nasce da crucificação de um homem desamparado pelos amigos e entregue nas mãos do poder absoluto do Império Romano. Os cristãos sabem o que é enfrentar o poder puro e amoral, que o livro de Apocalipse chama de “A Besta”, e ser esmagado por ele. A razão por que os cristãos seguem, assim mesmo, perseverando na esperança é que os selos romanos não foram capazes de prender o Jesus morto e sepultado. Deus tornou o poder imperial uma força inferior ao bem e à justiça.
Os cristãos sabem o que é enfrentar o poder puro e amoral, que o livro de Apocalipse chama de “A Besta”, e ser esmagado por ele
O leitor pode não crer na ressurreição de Cristo, mas os cristãos primitivos, que dela testemunharam em primeira mão, de algum modo perderam o medo da Besta. Perderam a fé no poder puro e na ultimidade de suas determinações. Descreram do poder e passaram a crer no amor. Morreram os inimigos de Cristo; morreu Nero; e a ideia de que amar e fazer justiça vale mais a pena que ganhar o jogo nunca mais deixou a face da terra. Milhões a desprezam; mas milhões vivem por ela.
Foi assim que se constituiu a tarefa cristã: não temos o poder do Messias, de introduzir essa nova ordem; mas em Esperança, devemos nos alimentar dela e viver por ela. E isso sinaliza o futuro divino no presente humano. Cristo disse a seus discípulos que eles deveriam ser o “sal da terra”. Nem progressistas utópicos, pretendendo um mundo perfeito, nem conservadores cínicos, mais comprometidos com a prudência do que com a justiça.
E isso nos leva à outra razão por que essa esperança não é utópica: é que, de fato, já vimos emergir historicamente uma ordem internacional que, com todas as suas imperfeições, iniciou uma jornada em direção a um mundo moral, no qual os pequenos não precisem temer os grandes. E uma das fontes dessa ordem foi visão cristã da pessoa e do poder, como, por exemplo, mostrou recentemente o historiador Tom Holland em seu livro Dominion.
Isso foi observado pela Dra Mary Ann Glendon e por muitos outros antes dela, como o filósofo e teólogo cristão Charles Habib Malik, primeiro Presidente da Comissão de Direitos Humanos da recém-fundada ONU e um dos compositores da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, o filósofo católico Jacques Maritain, que contribuiu decisivamente com sua visão elevada da pessoa humana, ou o advogado judeu René Cassin, seu organizador final.
É triste ver essa ordem entrar em colapso. Os Atenienses massacraram Melos. Hitler produziu o Holocausto. Mas diferentemente daqueles tempos, o Ocidente provou algo de uma ordem baseada na consciência, especialmente a partir de 1948. Nesse sentido, se a situação sair do controle na Europa, é possível que a nossa perda seja muito maior e mais dolorosa.
Mas não precisamos nos tornar cínicos. A história já nos ensinou que o poder com consciência moral não é só uma utopia. Pode ser algo difícil e instável, mas é algo possível; algo que se pode experimentar na história e por meio de nossas imperfeitas instituições, mesmo que a pedagogia para nos levar até lá seja o sofrimento da guerra.
Mas para os que compartilham da Esperança Cristã, que aprenderam a desacreditar do poder e a acreditar no bem, há razões ainda maiores para não desanimar e não entregar os pontos, na luta em defesa da pessoa humana e da justiça internacional. A ressurreição nos diz que os atos e sistemas perversos que os homens constroem finalmente se espatifarão no muro de pedra da lei moral universal, e que o poder político não terá a última palavra.
Existe um lado certo da história, e ele já está ocupado.
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