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Reverberou por toda a semana uma entrevista do cientista ateu Richard Dawkins à LBC, na qual ele se declarou um “cristão cultural” (“cultural Christian”). Não é a primeira vez que Richard Dawkins presta suas contrariadas homenagens ao cristianismo. Ele já havia feito isso em 2013, e bem antes disso, pelo menos em 2007, numa entrevista à BBC. Embora possa aparentar um mero lapso do intelectual, trata-se de uma postura amadurecida e consciente.
Pois bem: o que o homem quer dizer com isso? Deixando claro que segue absolutamente descrente das doutrinas e da proclamação cristã, mantendo seu ateísmo naturalista, Dawkins expressou uma ambígua preocupação com o desmantelamento da herança cristã: “Você sabe, eu amo os hinos e canções de Natal... não ficaria feliz se, por exemplo, perdêssemos nossas catedrais e nossas belas igrejas paroquiais”. O contexto mais amplo da declaração foi o ousado e preocupante movimento do prefeito trabalhista de Londres, Sadiq Khan, que enfeitou a cidade para o Ramadã e ignorou solenemente a Páscoa. Dawkins declarou-se horrorizado com isso. Sinal dos tempos.
Mas a coisa foi além da beleza estética. O cientista declarou: “eu me sinto em casa no ethos cristão... eu sinto que nós somos um país cristão nesse sentido. É verdade que estatisticamente o número de pessoas que de fato creem no cristianismo está caindo e estou feliz com isso”. E criticou diretamente o Islã e seu livro sagrado: “Existe uma hostilidade ativa às mulheres que é promovida nos livros santos do Islã... as doutrinas do Corão... são fundamentalmente hostis a mulheres, hostis aos gays”, e descreveu o cristianismo como “uma religião fundamentalmente decente” sob esses aspectos.
Dawkins segue arrogante e descrente, mas ao menos sóbrio e honesto o suficiente para admitir a precariedade de sua situação: não acredito em nada, mas amo quase tudo. Dawkins quer ver a crença cristã afundar e a civilização cristã permanecer em pé
Essa insistência “cristã” de Dawkins ainda surpreende, para quem se recorda de suas críticas ácidas ao cristianismo e do famoso documentário produzido pela BBC em 2006, The Root of all Evil? (“A origem de todo o mal?”), no qual ele fustiga duramente a religião. Considerando que, na entrevista, ele expressou um claro medo de que o cristianismo seja substituído pelo Islã, seu “cristianismo cultural” poderia ser lido como nada mais que uma constrangedora expressão de desespero. Reagindo a um ácido tuíte de Aaron Bastani, descrevendo a posição de Dawkins como “bizarra”, ninguém menos que Tom Holland, autor do best seller Domínio, observou que intelectuais secularistas como Dawkins não estão dizendo meras asneiras.
“Não realmente, porque o secularismo e o próprio tipo de ateísmo evangélico de Dawkins são expressões de uma cultura especificamente cristã – como o próprio Dawkins, sentado no galho que estava serrando e olhando nervosamente para o chão lá embaixo, parece ter começado a perceber”, diz Holland – o “chão” que tanto os preocupa, no caso, é a hegemonia islâmica.
Alinho-me com Holland na avaliação da coisa. Dawkins segue arrogante e descrente, mas ao menos sóbrio e honesto o suficiente para admitir a precariedade de sua situação: não acredito em nada, mas amo quase tudo. Dawkins quer ver a crença cristã afundar e a civilização cristã permanecer em pé. O próximo passo é implorar aos céus por um milagre.
Mas o que Dawkins admite, especificamente? Ele não disse muito, mas penso serem possíveis algumas inferências. O cientista elogia ao menos dois elementos da tradição cristã: sua beleza estética, refletida nas catedrais, na música e nas festas litúrgicas, e sua decência moral. Isso me pareceu muito interessante.
Essa é de fato a porta de entrada e o caminho natural de aproximação para muitas pessoas: o sujeito nota a certa altura que hinos, poesias e vitrais deixam transparecer uma estranha luz, uma beleza às vezes simples e calorosa, às vezes sublime e arrebatadora. Eu soube noutro dia que muitas conversões de japoneses ao cristianismo se dão pela exposição intensa à música sacra de J.S. Bach. No ritual, no calendário litúrgico, na música inspiradora e envolvente um mistério se insinua. Mas há outro nível de beleza ao qual Dawkins evidentemente ainda não chegou: a beleza inerente à própria narrativa cristã, que fulgura na história extraordinária de Jesus Cristo.
E aqui a beleza assume contornos morais, torna-se analógica e quase se confunde com a bondade: torna-se a “beleza” de uma existência. É assim que a paixão de Cristo, horrível, por um lado, manifesta a bondade extraordinária e constrangedora, e assim que muitas pessoas comuns têm se aproximado da fé, por exemplo, através da popular série The Chosen. Dawkins ainda está longe de pescar isso, também; tudo o que ele consegue enxergar é a “decência” cristã.
Tom Holland, também ateísta, avançou um pouco mais no dever de casa e reconheceu que essa “decência” nada tem de trivial; ela resulta da bondade e solidariedade extraordinárias que o cristianismo primitivo aprendeu de Jesus e de Paulo, e em seguida explorou e transmitiu ao longo de séculos, plantando uma decência incomum no coração da cultura ocidental. Cito suas palavras logo à introdução de seu livro supracitado:
“Os valores de Leônidas, cujo povo praticou uma forma peculiarmente assassina de eugenia e treinou seus jovens para arrogantemente matar Untermenschen à noite, não eram nada que eu reconhecesse como pertencendo a mim; nem o eram aqueles de César, que teria matado um milhão de gauleses e escravizado outro milhão. Não foram apenas os extremos da insensibilidade que me inquietaram, mas a completa carência de qualquer sentido de que o pobre ou o fraco pudessem ter o mais ínfimo valor intrínseco. Por que isso me pareceu perturbador? Porque, em minha moral e minha ética, eu não era um espartano ou um romano, de forma alguma. Que a minha crença em Deus tenha se dissipado ao longo da minha adolescência não significa que eu tenha cessado de ser cristão.”
Historicamente, uma das grandes linhas de defesa do cristianismo é sua verossimilhança moral, incorporada em julgamentos éticos, em histórias narradas, e em marcantes exemplos de santidade
Pode-se discutir se alguém continua “cristão” sustentando apenas parcelas da moralidade cristã, mas a boa vontade nos obrigará a reconhecer certa verdade na fala de Holland. De algum modo, ele reconhece que a moralidade cristã é boa. Não creio que ele chegaria ao ponto de admitir uma verdade moral no cristianismo – sua concepção parece oclusa em algum lugar entre a estética e a ética –, mas talvez de algo próximo disso, um fulgor de verossimilhança.
Essa é, historicamente, uma das grandes linhas de defesa do cristianismo, sua verossimilhança moral, incorporada em julgamentos éticos, em histórias narradas, e em marcantes exemplos de santidade. C. S. Lewis nomeia o Livro I de seu clássico Cristianismo Puro e Simples com o título “O certo e o errado como indícios para a compreensão do sentido do universo”, argumentando em favor de uma universalidade da lei moral e indicando como nossa consciência e nosso fracasso em segui-la nos colocam às portas da fé. Mas nem sempre a porta é atravessada; a famosa escritora e ativista somali-holandesa Ayaan Hirsi Ali recentemente completou a travessia para o cristianismo, mas seu esposo, o historiador de Harvard Niall Ferguson, apesar de reconhecer a importância do cristianismo para o futuro do Ocidente, permaneceu na antessala.
Quanto a estes que permanecem espiando à porta, o teólogo e evangelista cristão Francis Schaeffer (1912-1934) tinha uma abordagem clínica: é preciso “arrancar o telhado” dessas pessoas, para o próprio bem delas. Por “arrancar o telhado” Schaeffer se referia ao trabalho de expor a contradição entre a rejeição da verdade cristã e o amor pela experiência cristã. Essa contradição vem em várias versões, mas no seu núcleo habita a questão da verdade: como é possível que o cristianismo seja esteticamente verdadeiro, e mesmo eticamente verdadeiro, mas... objetivamente falso? E como é possível que eu ame o ágape cristão, mas deteste a história da crucificação do Filho de Deus, que lhe deu origem? Schaeffer, quase como um Sócrates religioso, conduziu uma infinidade de jovens a esse confronto numa espécie de maiêutica espiritual.
E aos que desprezam Schaeffer, Tom Holland (ainda reagindo a Dawkins na última segunda-feira) faz questão de lembrar Nietzsche:
“Quando você desiste da fé cristã, você também puxa o tapete do seu direito à moralidade cristã. Isso é tudo menos óbvio: vocês têm de continuar enfatizando esse ponto, contra os idiotas ingleses... Quando os ingleses acreditam que sabem ‘intuitivamente’ por si mesmos o que é o bem e o mal; e quando, como resultado, eles pensam que não precisam mais do cristianismo para garantir a moralidade, isso e apenas o resultado do domínio do juízo de valor cristão.” (Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos, apud Tom Holland, no X).
Os idiotas não são apenas ingleses, naturalmente; eles estão por toda parte, reproduzindo alegremente o mesmo absurdo: que seja possível abraçar o ethos cristão e rejeitar a história que lhe deu origem. Arrancar seus telhados é um imperativo, porque sem a verdade, a beleza e a bondade se dissiparão. A verdade, que integra todas as verdades, a verdade que é o próprio Cristo, não pode ser dispensada impunemente. Essa é uma das razões por que o Ocidente cairá: sua rejeição à fé cristã custará a sua vida.
Mas esse é um julgamento de grande escala. No que se refere ao indivíduo, àquele que é o meu próximo, nenhum avanço será obtido nessa maiêutica espiritual até que o objetivo crucial seja alcançado, e o principal castelo na consciência do humanismo secular seja tomado: é preciso que o sujeito reconheça a face cristã em sua própria existência. Enquanto enganosamente atribui a si mesmo ou a outras fontes os benefícios que herdou do cristianismo, o laicista pós-cristão pode ainda esconder-se sob uns restos de telhado. E aqui temos um problema de caráter sistêmico; volto a Tom Holland em Domínio:
“O Ocidente, no curso de sua hegemonia global, tornou-se competente na arte de reempacotar conceitos cristãos para audiências não cristãs. Uma doutrina tal como a dos direitos humanos seria muito mais provavelmente subscrita se suas origens entre os juristas canônicos da Europa medieval pudessem ser mantidas escondidas. A insistência das agências das Nações Unidas quanto à ‘antiguidade e ampla aceitação do conceito de direitos do homem’ era uma necessária pré-condição para a sua reivindicação como uma jurisdição global, em vez de ser meramente uma jurisdição ocidental. O secularismo, de modo idêntico, dependeu do cuidado com o qual cobriu seus rastros. Para que fosse abraçado por judeus, ou muçulmanos, ou hindus, como um mantenedor neutro do anel entre eles e os povos de outras fés, ele não poderia admitir ser visto como o que era: um conceito que tinha pouco sentido fora do contexto cristão. Na Europa, o secular foi secularizado por tanto tempo que se tornou fácil esquecer suas origens últimas.”
Sem a verdade, a beleza e a bondade se dissiparão. A verdade, que integra todas as verdades, a verdade que é o próprio Cristo, não pode ser dispensada impunemente. Essa é uma das razões por que o Ocidente cairá: sua rejeição à fé cristã custará a sua vida
Parece-me plausível alegar que há, no Ocidente secularizado, uma desonestidade sistêmica. Essa desonestidade, que não é um julgamento do caráter individual de ninguém, mas de todo um estilo de pensamento laicista, tornou-se uma espécie de método, de um apagamento sistemático de sua ascendência cristã, um crime com ocultação de cadáver.
Vejo essa desonestidade em humanistas seculares, principalmente de esquerda, que militam freneticamente por direitos humanos ao mesmo tempo em que promovem a mais radical assepsia da influência cristã pública, em nome da “laicidade”; vejo-a também no movimento de alguns cristãos, de negar a importância do substrato cristão na formação do Ocidente, e usando como contraponto as maldades e desgraças promovidas pela “civilização cristã”.
Mas não há o que fazer aqui: Judas, o traidor, e Pedro, o negador, foram ambos discípulos de Jesus. Não temos o direito de salvar o cristianismo de suas culpas abdicando, com falsa humildade, de seus méritos. Mais: se o cristianismo é, primariamente, uma fé, sua interpretação precisa ser necessariamente normativa, e não apenas descritiva. É como um coração: existe a sua versão saudável e a sua doença, e sua doença não é prova contra a existência da saúde.
O que sabe Dawkins? Quase nada. Mas ele sabe de alguma coisa, e precisamos honrar a sabedoria, mesmo quando sai da boca dos “idiotas ingleses”. E quando diz que “se sente em casa com o ethos cristão”, merece nossos cumprimentos. Cabe a nós, cristãos, jamais guardar ressentimentos contra os descrentes, e fazer um mundo hospitaleiro também para eles.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos