Weber famosamente descreveu a ordem moderna, essa grande cristalização de estruturas econômicas, tecnológicas e burocráticas, como uma “gaiola de ferro” (na tradução de Parsons). A ideia de que nosso sistema civilizatório seja fechado e inexorável pode ser recusada por almas revolucionárias como exemplo de resignação mental, mas poucos negarão sua plausibilidade.
Admito que nossas discussões sobre a grande ideologia do progresso tem um quê desse pessimismo weberiano. Segundo exploramos em artigos anteriores, vivemos dentro de um grande sistema tecnicista-capitalista-terapêutico: um sistema de crescimento técnico e de distribuição de bens que alimenta e é alimentado por uma utopia psicologizada, na qual cada indivíduo é maximamente autônomo, autêntico e feliz.
Essa utopia do Self, que Edgar Cabanas descreveu como Happycracia, crida e cultivada por sujeitos frágeis e moralmente domesticados pelo sistema de consumo, parece um desdobramento muito irônico do grande ideal de personalidade livre celebrado na aurora da modernidade. Esperava-se o Novo Homem, mas o que veio foi o epicurista pós-moderno.
Essa alma sentimentalizada e frágil é alimentada e administrada pelo sistema do progresso, que realmente parece uma gaiola de ferro. Goudzwaard o compara a uma nave espacial em alta velocidade, na qual cada parte tem um propósito, e da qual não é possível escapar, ou com uma colmeia barulhenta e firmemente organizada. Mas a imagem preferida dele é a da “sociedade túnel”:
“A expressão 'sociedade túnel' talvez seja ainda mais clara uma vez que evoca a imagem de uma sociedade em que tudo – pessoas, instituições, normas, comportamento – contribui para o tranquilo avanço em direção à luz no fim do túnel. Porém, o fim do túnel parece nunca estar ao nosso alcance; a luz brilha para sempre no futuro. No entanto, mantém em movimento tudo e todos que se encontram no túnel.” (Bob Goudzwaard)
O angu-de-caroço é que diversos males sociais, como a crise ambiental, a desocupação e o desemprego, a dissolução do tecido social e o sofrimento psicológico tornaram-se imunes ao progresso, ou até mesmo revelaram-se subprodutos do progresso, o que torna o túnel uma armadilha. Dentre esses efeitos colaterais, o mais irônico talvez seja a epidemia de sofrimento mental, tendo em vista que a alma da atual versão da religião do progresso é justamente a terapêutica. É como se o sistema criasse a doença que alega curar.
“Ao romper os últimos costumes e tradições estruturantes, a revolução do consumo abandona os indivíduos a si próprios, e estes devem enfrentar as dificuldades da existência sem se beneficiar de regulações apoios coletivos. Atomizado, reduzido apenas às suas forças, levado a estender indefinidamente o círculo dos seus desejos, o indivíduo não está mais preparado para suportar as misérias da existência.” (Gilles Lipovetsky)
A locomotiva do progresso indubitavelmente traz imensas melhorias na qualidade de vida dos indivíduos, e negá-lo seria hipocrisia; mas ela promete mais do que pode entregar, especialmente no ponto central: a promessa da felicidade. “Um mal expulsou o outro. Não há progresso na felicidade”, lamenta Lipovetsky. Ela fica sempre diante de nós, como uma cenoura diante do burro, fazendo-o trotar cada vez mais rápido e mais desesperadamente.
Estamos então presos, irremediavelmente condenados à técnica, ao consumo e ao divã? Na verdade, Goudzwaard não pensava que a nossa sociedade seja total e absolutamente fechada, como se não fosse possível interferir em seu direcionamento. Para ele a gaiola de ferro teria uma portinha. Mas há novos desdobramentos preocupantes nessa direção, acontecendo neste exato momento.
A universalização da internet, a aceleração das comunicações, e a ascensão da computação afetiva, que possibilita às máquinas a interpretação e a resposta refinada aos nossos desejos, de um modo mais rápido e claro do que nós mesmos, tende a reduzir nosso poder de controle do consumo. E tornar o túnel ainda mais fechado.
Explico: já vivíamos em uma civilização do consumo emocional; não consumimos mais “coisas”, mas emoções. Então, o advento da internet expandiu as possibilidades, com uma dupla superexposição: por um lado, a aceleração das comunicações e a multiplicação das sensações apela ao nosso sistema límbico e embota nosso julgamento crítico, criando uma “ditadura da emoção”, como observa Byung-Chul Han; e por outro lado, a captação de informações exaustivas sobre nosso comportamento e o advento dos Big Data, possibilitam ao sistema de consumo entender melhor as nossas emoções do que nós mesmos.
Em seguida, temos o surgimento da computação afetiva, o estudo e desenvolvimento de sistemas e dispositivos que leem nossas emoções, interpretam o que estamos sentindo, e são capazes em seguida de simular emoções na comunicação conosco. A computação afetiva contemporânea nasceu por volta de 1995 a partir do trabalho de Rosalind Picard, uma cientista cristã piedosa e professora do MIT, com o propósito inicial de humanizar a interação com as máquinas em contextos como o tratamento do autismo em crianças. Mas os avanços do campo inevitavelmente foram incorporados ao sistema de progresso, permitindo que os Big Data fossem empregados na construção de linhas de comunicação direta entre o sistema e o sistema límbico dos consumidores – suas necessidades e expectativas emocionais. A terapêutica entrou, assim, num processo de algoritimização e robotização. Emerge aos poucos um grande inconsciente digital, que espelha de forma computadorizada o inconsciente individual e que planeja de forma sobre-humana o nosso bem-estar. Para o indivíduo, parece um milagre: tudo o que ele quer, “brota” na tela do computador. Mas o aumento da sua liberdade é uma ilusão: sem o saber, ele é cada vez mais controlado.
“Os big data talvez tornem legíveis aqueles nossos desejos dos quais nós mesmos não estamos propriamente conscientes... Vistos dessa forma, os big data fariam um ego a partir do id que se deixa explorar psicopoliticamente. Se os big data oferecessem acesso ao inconsciente de nossas ações e inclinações, então seria possível imaginar uma psicopolítica que interviria profundamente em nossa psique para explorá-la... Os big data também poderiam promover padrões coletivos de comportamento dos quais não seríamos conscientes como indivíduos. Com isso, o inconsciente coletivo ficaria acessível.” (Byung-Chul Han)
A máquina passa a nos entender melhor do que nós mesmos, e a aceleração nos mantém emocionalmente engajados de modo que a paciência e o raciocínio crítico são embotados. O mesmo processo se dá nos amargos debates do Twitter, no vício da pornografia online, nos bons usos educacionais do computador, e nos padrões honestos e ordinários de consumo de bens, serviços e informações pela internet: nesses contextos digitais, as emoções são formatadas e estereotipadas por algoritmos, e depois de processadas, são transportadas para a vida analógica.
Mas exatamente nesse importante momento histórico, a ascensão da Inteligência Artificial eleva tremendamente a velocidade de fechamento do sistema de progresso. O que ocorre é que um novo nível de interpretação e tomada de decisão é alcançado pela máquina, envolvendo graus de complexidade que são cada vez menos analisáveis pelos engenheiros. Esse é um dos principais desafios da IA: seu “pensamento” é muito mais rápido e complexo do que temos condições de compreender. Em parte, isso é simplesmente o esperado, já que estamos criando máquinas capazes de solucionar problemas que estão além de nossa capacidade. Mas isso também gera a possibilidade da inteligência artificial tomar decisões não-analisáveis sobre como dialogar com a nossa vida emocional e o nosso inconsciente.
Num reductio ad absurdum, tendo em vista as evidências do giro emocional na cultura ocidental, o sistema tecnicismo-capitalismo-terapêutica robotizado e inteligente se tornaria o córtex pré-frontal da civilização moderna, com a missão de conduzi-la ao paraíso da felicidade terrestre. Exagero? Talvez. Mas há verdades que só a caricatura pode contar.
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