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O Brasil precisa de sabedoria
| Foto: Bruno Covello/arquivo Gazeta do Povo

Em “The Intelligence Trap” (Hodder, 2019), David Robson relata o interessantíssimo caso de Kary Mullis, um sujeito aparentemente obcecado por teorias conspiratórias, que acreditava ter sido abduzido por aliens, negava a existência do vírus da AIDS e cria que viagens astrais são possíveis. Nada muito surpreendente ou excepcional entre muitas pessoas comuns, exceto pelo sujeito ser ninguém menos que o prêmio Nobel de química de 1993 pela invenção da reação em cadeia da polimerase, sem a qual avanços importantíssimos como o Projeto Genoma Humano não seriam possíveis. Mullis morreu em agosto do ano passado, deixando pra trás esse mistério que, é, na verdade, bastante comum: como é possível que alguém seja tão genial e tão alienado ao mesmo tempo?

Robson acredita que esse fenômeno não se dá na ausência de inteligência, mas pela ausência de checks and balances, ou “pesos e contrapesos” para regular a inteligência. O gênio, na ausência desses reguladores, seria na verdade um bônus para a irracionalidade; ao invés de frear, turbinaria vieses, obsessões e desequilíbrios cognitivos.

O CÍRCULO DOS LUNÁTICOS

A racionalidade não pode realmente ser reduzida à eficiência e velocidade lógico-analítica. Que essa forma de inteligência seja uma dádiva e uma capacidade extremamente útil está fora de questão. Mas a ideia de racionalidade não pode ser reduzida à eficiência computacional, o que seria evidentemente ridículo. G. K. Chesterton pronunciou o veredito insuperável sobre a insuficiência dessa inteligência que não passa do encadeamento lógico e da obsessão pela consistência:

A imaginação não gera a insanidade. O que gera a insanidade é exatamente a razão. Os poetas não enlouquecem: mas os jogadores de xadrez sim.
Se você discutir com um louco, é extremamente provável que leve a pior; pois sob muitos aspectos a mente dele se move muito mais rápido, por não se atrapalhar com coisas que costumam acompanhar o bom juízo. Ele não é embaraçado pelo senso de humor ou pela caridade, ou pelas tolas certezas da experiência. Ele é muito mais lógico por perder certos afetos da sanidade. De fato, a explicação comum para a insanidade nesse respeito é enganadora. O louco não é um homem que perdeu a razão. O louco é quem perdeu tudo exceto a razão” (Ortodoxia, p.25, 28)

Assim Chesterton define o lunático; alguém que se move com rapidez e consistência sobre um círculo fechado e minúsculo de experiência, escolhido por ter a medida certa para maximizar certeza, previsibilidade e controle, mas no qual não cabe a vida; um obcecado pela forma da lua. E assim são os pensadores absolutistas, de sistema, os racionalistas, os materialistas, os ideólogos revolucionários, os perfeccionistas.

Nessa patologia da inteligência o defeito não se encontra no excesso de racionalidade lógico-analítica, mas na carência daquilo que está fora do pequeno círculo, isto é, a própria existência, com sua multiplicidade, diversidade, contradições e repetições.

Em outras palavras: o bom pensamento tem suas raízes na vida concreta, e não em fundamentos abstratos ou sonhos utópicos. O arrazoado, o discurso, a explanação e a consistência são como a estrutura visível de uma árvore, com seu tronco, galhos e folhas; mas seu suporte e sustento invisíveis ocorrem debaixo da terra, onde a árvore “começa”. O pensar tem sua gênese na vida concreta, e se a vida é pobre, se a existência do sujeito carece de valores e de experiências de sentido, sua árvore será também pequena e pobre, ainda que seja sólida e durável como uma planta de plástico.

FAKE NEWS SÃO SINTOMAS

A popularização das mídias sociais e a democratização da internet trouxe consigo um preocupante efeito colateral: oceanos de pessoas parecem muitíssimo dispostas a embarcar e discursos e ideias distorcidas ou sem fundamento simplesmente porque confirmam suas escolhas políticas e medos morais. Não que isso fosse incomum anteriormente, mas a velocidade do contágio social aumentou como a mobilidade urbana com a invenção da locomotiva a vapor. O comportamento de manada, o viés de confirmação e a autojustificação operam de modo altamente eficiente na internet.

E com isso os usuários acolhem informações contraditórias, absurdos, difamações e falsidades – as Fake news. Não importa a ideologia, os blocos de gente acostumada a replicar conteúdos duvidosos seguem fazendo estragos.

O padrão corresponde à advertência Chestertoniana: dogmatismo, argumentação retórica, pequenez, circularidade. Pessoas muito inteligentes construindo narrativas absurdas, movidas por paixões e wishful thinking, e pessoas comuns, mais ou menos inteligentes (ou nem tanto), perfeitamente funcionais em diversas atividades, engolfadas nessas narrativas através de mecanismos de contágio social em redes, comportando-se como loucos nas mídias sociais por conta de doutrinas pequenas demais para conter a vida.

Mas não estaríamos tão mal se nosso problema residisse apenas no limitado âmbito das mídias sociais. O que temos, ali, é a espuma à superfície, o sintoma do estado crítico de nossa vida interna. A civilização brasileira está fervendo por dentro, e seus turbilhões espirituais têm relação direta com a incapacidade de discernir, julgar, ponderar e comunicar. Tolice tem tudo a ver com conflito, desentendimento e surdez.

Sim, não se trata de novidade na história; ocorre, no entanto, que dessa vez os tolos somos nós, não os que já morreram nem os que ainda não nasceram. Temos que fazer algo a respeito. O encantamento da lua precisa ser quebrado por nós; precisamos nos libertar do círculo dos lunáticos.

A SABEDORIA ENTRE AS “CIÊNCIAS DA VIRTUDE”

Há uma palavra certa para designar esse olhar e essa postura holística, ponderada, capaz de equacionar uma multiplicidade de dimensões e de valores humanos envolvidos numa situação, e de refrear-se de jogar fora o bom-senso em nome de qualquer ídolo, seja ele a certeza, o bem estar, a reputação ou até mesmo a consistência lógica: “sabedoria”.

O Max Planck Institute for Human Development, em Berlim, lançou com apoio da Fundação Templeton o Berlin Wisdom Paradigm (“Paradigma Berlinense da Sabedoria”), uma iniciativa que busca estudar cientificamente o fenômeno moral da “sabedoria” a partir de bases psicológicas, sociais e morais, e chegou a uma definição muito interessante: “um conhecimento com nível de expertise na pragmática fundamental da vida”. E a palavra “vida”, aqui, não é firula. Trata-se de uma forma holista e integrativa de saber, incorporando valores, práxis, imaginação, flexibilidade, conhecimento e também um elemento de incerteza.

Em “The Science of Virtue” (Brazos Press, 2017) Mark R. McMinn conta a sua própria jornada nos estudos científicos a respeito da sabedoria, a partir do paradigma da “Psicologia Positiva”, estabelecendo ali uma distinção muito útil entre “sabedoria convencional” e “sabedoria crítica”.
A sabedoria convencional se mostra num realismo humilde e apegado ao bom-senso, acumulado por experiências pessoais de aprendizado mas “armazenado” num depósito coletivo de práticas, valores e discursos da comunidade. Assim existem as sabedorias em diversas profissões, a sabedoria da família, de uma comunidade religiosa, e de uma civilização inteira.

A sabedoria crítica emerge em certas pessoas que “pensam fora da caixa, não apenas para contrariar o convencional; elas pensam diferentemente em razão de um profundo compromisso com a justiça e a bondade”. Pense em grandes homens em campos muito diferentes, como Sócrates, Robert Boyle, Bach ou Martin Luther King; uma das marcas da sabedoria, enquanto pragmática fundamental da vida, reside na capacidade de inovar e ampliar os horizontes, de virar do avesso o modo tradicional de pensar. Mas olhando de perto, notamos que esses homens não introduziram suas revoluções arrasando o que havia antes, mas elevando a sabedoria já recebida a um novo grau de qualidade.

Pense em Jesus: sem dúvida um judeu autêntico, mas absolutamente surpreendente, incorporando a sabedoria judaica convencional em uma nova forma de vida mais rica e desafiadora, diante da qual o entendimento e a prática religiosa do establishement de Jerusalém viram-se expostos e obsoletos. Era ao mesmo tempo a velha sabedoria e uma nova sabedoria. Esse é o efeito da sabedoria crítica.

AD FONTES

Esse diálogo crítico, integrando leitura do presente e imaginação criativa com um enraizamento profundo nas tradições espirituais e morais que fundam a civilização é uma marca da sabedoria. E em tempos de aceleração e desenraizamento moral, é muito importante tornar o movimento Ad Fontes um método intelectual e moral.

E daqui em diante, quando falarmos sobre a sabedoria da qual os Brasileiros se mostram tão carentes, recorreremos à grande tradição sapiencial que funda o ocidente, reunida pelos judeus na Bíblia Hebraica e incorporada na tradição Cristã. Certamente não nos esqueceremos dos gregos, nossos jovens pais, mas manteremos a consciência de que, como diz o Apóstolo Paulo, “A sabedoria de Deus é loucura para os homens” (1Coríntios 1.18).

Certamente que Paulo, a grande ponte entre o mundo hebreu e a civilização clássica, não propunha com isso nenhum fideísmo irracional; ele não podia evitar, no entanto, a constatação de que a sabedoria de Deus será sempre e renovadamente a grande virada da mesa, o plot twist, a “eucatástrofe” (Tolkien) de todas as nossas respostas convencionais a nossos problemas convencionais. De fato, os sábios reportam a mesma história: o salto integrador, o dom da sabedoria crítica, que ilumina e “resolve” a crise de seu momento pessoal ou histórico é, sempre, uma experiência espiritual.

Estamos metidos, como nação, em um formidável impasse histórico. Precisamos desesperadamente de sabedoria crítica para superá-lo.

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