Segundo noticiou a BBC Brasil no último dia 7 de março, o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, propôs “descriminalizar as drogas para reduzir a população carcerária”. Durante a entrevista, sem piscar os olhos, o ministro defendeu o indefensável apoio petista ao ditador Daniel Ortega, mostrou sua vontade de reescrever o passado (no assunto da anistia), confessou o abortismo, e derramou aquela conhecida confusão nos sentimentos morais da esquerda: desencarcerar os pobres bandidos e mandar fogo nos “fascistas”. O homem nega explicitamente que “a punição seja um elemento fundamental do combate à criminalidade”; no entanto, não disfarça a vontade de punir o “discurso de ódio”, a “LGBTfobia” e a “extrema-direita”. Silvio Almeida é um punitivista ideológico: quer esvaziar o presídio e pegar os conservadores na esquina.
Empoderar os desesperados?
Contradições à parte, não quero tirar do ministro a sua parcela de razão sobre drogas e encarceramento. Há uma imensa rede criminosa sustentando a drogadição, e ninguém negará que a descriminalização poderia trazer o controle da sua distribuição para as mãos estatais. Além disso, há algo de cínico em um Estado – e uma sociedade – que não ajuda ou até complica a ascensão social dos brasileiros pobres, geralmente pretos e pardos, e que depois “soluciona” o problema com o encarceramento. Nosso sistema prisional apresenta um baixo índice de recuperação; a reincidência criminal chega a 75%. É uma grande máquina de moer carne de gente desesperada. No nível das considerações sociológicas, o encarceramento evidentemente não atinge a raiz do problema.
No entanto, de sua rejeição ao encarceramento, como uma pseudossolução social, não se depreende que o ministro tenha uma solução viável. Dos pontos de vista da segurança pública e da saúde pública, a sua proposta é quase certamente um desastre. Não há aparelho social suficiente para recuperar tantos criminosos e absorver um desencarceramento em massa; e isso teria impacto sociológico, reforçando tremendamente a nossa cultura de impunidade. Além disso, a drogadição é uma das maiores causas do que especialistas chamam de “morte por desespero”; ela também é um sintoma de problemas mais profundos. O ministro quer substituir um paliativo ruim por outro ainda pior.
Silvio Almeida é um punitivista ideológico: quer esvaziar o presídio e pegar os conservadores na esquina
Os eleitores conservadores têm tipicamente um agudo sentido de justiça e uma elevada aversão a violações morais, ao passo que eleitores progressistas tendem a se incomodar muito mais com a desigualdade na distribuição de poder. Ora, nosso ministro é um marxista; sabemos o que ele tem em mente: empoderar pessoas excluídas e marginalizadas, e especialmente pardos e pretos, para dar-lhes um sentido de dignidade e valor. Empoderamento econômico, social e político é o que poderia curar a nossa sociedade. O problema é que, nesse caso, o fato de o grupo empoderado ser composto de criminosos encarcerados é tratado por Silvio Almeida como uma questão epidérmica, e irrisória. No entanto, o sistema prisional existe precisamente para desempoderar gente perigosa.
Essa crença vã de que a mera distribuição de poder possa curar uma sociedade é o ópio da esquerda nacional, e o nosso governo está engolfado na maresia. O uso contínuo dessa droga, além de piorar a segurança e a saúde, agravará a esquizofrenia na psicologia política nacional. O desencarceramento e a descriminalização das drogas levarão à radicalização da extrema-direita e da polarização – e o ministro pode escrever isso no seu caderninho.
As raízes do desespero
Para além do debate sobre os melhores paliativos para as nossas dores sociais, é preciso descer às raízes da enfermidade. Na tradição do sociólogo norte-americano Robert Nisbet (1913-1996), eu insistiria em que a doença das nossas sociedades liberais não é o mero desempoderamento de indivíduos ou classes, mas a falta de fraternidade social. Na raiz do problema está a fragilização do tecido social nacional, atingindo suas matrizes simbólicas e psicossociais: a família e a religião.
Concedo ao leitor marxista: o desajuste frequentemente começa, sim, com o desemprego, que atinge principalmente homens pardos e pretos. Mas ele progride com o desespero pessoal, o alcoolismo, o abandono da família, o divórcio e a monoparentalidade. O esfacelamento do tecido social ao redor desses pais pardos e pretos está na raiz da doença. Filhos sem pais presentes e sem educação moral acumularão a raiva, se tornarão mais antissociais e mais vulneráveis à cooptação pelo crime. A negação da paternidade nos colocou em um buraco. Nesse sentido, uma abordagem clínica de nossos problemas sociais precisa combinar remédios estruturais com remédios morais.
E aqui entra o ministro, com seu plano genial de empoderar os marginalizados que se tornaram marginais. Não seria melhor agir preventivamente? Se o gestor público quiser mais do que um paliativo, precisará empoderar as famílias e, especialmente, os pais de família pardos e pretos. O poder precisa migrar não para vontades individuais, mas para funções e instituições sociais.
Mas, além das políticas familistas, tenho um palpite: para lidar com o problema quase intratável do desespero, o gestor público poderia empoderar as comunidades religiosas que mostrem capacidade de promover coesão familiar e reduzir a omissão parental. A cooperação do Estado com as comunidades religiosas, no interesse público, é perfeitamente possível sem violação da laicidade estatal, segundo o conceito de laicidade colaborativa tão bem explicado pelos amigos Thiago Vieira e Jean Regina.
A religião faz diferença?
Penso que sim. Quando o assunto é a fraternidade e a recomposição do tecido social, a religião é historicamente um dos principais stakeholders.
Vou ilustrar a minha opinião com uma pesquisa estrangeira. Foi por uma matéria de 27 de fevereiro na The Economist que tomei conhecimento do paper recentemente publicado por Tyler Giles (da Wellesley University), Daniel Hungerman (da Notre Dame University) e Tamar Oostrom (da Ohio State University), apontando uma relação causal entre mortes por desespero e desfiliação religiosa. O artigo foi publicado pelo National Bureau of Economic Research (NBER).
Se o gestor público quiser mais do que um paliativo, precisará empoderar as famílias e, especialmente, os pais de família pardos e pretos
“Mortes por desespero” seriam aquelas causadas por alcoolismo e doenças associadas, como a cirrose, overdose de drogas e suicídio – no Brasil, poderíamos incluir outras violências. O consumo de drogas, em especial, tem sido associado com o aumento dessas mortes. Mas o que causaria a autodestruição patológica? Em tese, a piora nas condições econômicas seria um bom candidato. Mas, ao investigar a questão, os cientistas encontraram sólida corroboração para outra hipótese.
Eles conseguiram isolar o comportamento de um grupo social em particular: pessoas brancas de meia-idade e sem curso superior, tanto em ambientes urbanos quanto rurais, em várias regiões dos EUA. As mortes por desespero nesse grupo cresceram cerca de 30% nos últimos 20 anos, revertendo décadas de declínio anterior. Isso levou os pesquisadores à hipótese de que alguma mudança específica no tecido social das comunidades americanas poderia estar por trás da mudança.
Foi aí que a religião entrou como hipótese explanatória. Por um lado, muitos estudos recentes se acumularam comprovando uma relação entre religiosidade e indicadores de saúde em longevidade em geral – assunto sobre o qual Alexander Moreira-Almeida (UFJF), no Brasil, tem também se debruçado há algum tempo. Por outro lado, a queda na prática religiosa começara no fim dos anos 1980, um pouco antes de os americanos começarem a descer rapidamente a ladeira da saúde mental.
Os pesquisadores constataram que, nos estados dos EUA nos quais o abandono da prática religiosa foi maior, as mortes por desespero aumentaram, tanto para homens quanto para mulheres; onde a desfiliação foi mais suave, o aumento das mortes também foi mais suave, de modo consistente. Além disso, e de modo surpreendente, eles descobriram que nos estados que repeliram as “blue laws” (“leis azuis”) – leis que proibiam atividades comerciais nos domingos, para proteger o culto religioso – seguiu-se um aumento das mortes por desespero, ao passo que os estados que mantiveram os domingos protegidos apresentaram índices menores.
Ao sintetizar as implicações do seu estudo, os autores fazem uma observação absolutamente salutar:
“Muitos artigos têm discutido o recente declínio da adesão religiosa na América. Nós nos movemos para além das caracterizações desse declínio para considerar suas consequências. Nosso estudo indica que esse declínio pode ter tido efeitos amplos e negativos sobre o bem-estar. Ao considerar seus mecanismos, apresentamos evidência – consistente com trabalhos anteriores – de que esse declínio foi guiado por mudanças na participação religiosa formal, e não por meras mudanças na crença religiosa. Essa descoberta é especialmente relevante dado que a pesquisa frequentemente confirma que organizações religiosas frequentemente falham em duplicar com sucesso o sentido de comunidade, serviços sociais e coesão proporcionada pela participação em uma tradição religiosa.”
O que faz diferença não é a religião autodeclarada, mas as comunidades – e, falando de Brasil, as igrejas. Elas trazem esperança e saúde de um modo que o Estado e ONGs seculares são incapazes de replicar
Esse ponto merece a máxima ênfase: não é só uma questão de “crença” religiosa. É uma questão de prática religiosa comunitária. Em outros termos: o que faz diferença não é a religião autodeclarada, mas as comunidades – e, falando de Brasil, as igrejas. Elas trazem esperança e saúde de um modo que o Estado e ONGs seculares são incapazes de replicar.
A filiação religiosa é de interesse público
Semelhantes considerações passam longe da nossa elite cultural; ela é ainda iletrada a respeito. Quando dos julgamentos no STF sobre a abertura de templos durante a pandemia, muitos jornalistas, comentaristas sociais e juristas, incluindo membros da corte suprema, tratavam a liberdade religiosa como se equivalesse à liberdade subjetiva de crença. Uma ignorância de caráter elementar. Liberdade religiosa é a liberdade de praticar a fé em comunidade. Boa parte do debate público sobre religião, no Brasil, gira ao redor da subjetividade, sem a devida consideração do lugar social da vida religiosa coletiva. E, muito menos, da importância da vida religiosa para a saúde pública.
A bem da verdade, esse é um problema – como se diz – estrutural. A sociologia da religião brasileira é tímida nesse tipo de investigação. Sua ocupação principal há décadas é monitorar o impacto político e eleitoral da fé, com pouco interesse pela contribuição da religião para o tecido social e o bem comum. Pior: não se estudam por aqui os malefícios sociais da desfiliação religiosa. Uma pena, pois isso poderia alimentar abordagens clínicas muito interessantes ao problema do baixo capital social brasileiro.
As drogas são o fim de um processo, o fundo do poço do desespero. Duvido, por outro lado, que o ministro considere o problema da desfiliação religiosa uma questão de saúde pública. Entretanto, ele deveria fazê-lo
Mas voltemos ao ministro Sílvio Almeida; ele pensa que as drogas são um problema de saúde pública, e quer descriminalizá-las para esvaziar presídios. Mas as drogas são o fim de um processo, o fundo do poço do desespero. Duvido, por outro lado, que ele considere o problema da desfiliação religiosa uma questão de saúde pública. Entretanto, ele deveria fazê-lo, por inconveniente que isso seja para o partido.
É claro que a realidade dos EUA é muito diferente da realidade brasileira, e a pesquisa social de lá não prova nada sobre o que está acontecendo aqui. No entanto, a função da religião, e principalmente da religião evangélica, na prevenção e recuperação de pessoas em desespero e alienação social nos contextos urbanos mais vulneráveis do Brasil é um fato reconhecido por sociólogos e analistas sociais, de John Burdick a Juliano Spyer, passando por documentaristas como João Moreira Salles em Santa Cruz. E a correlação científica entre religião, coesão social e taxas de suicídio é velha como Émile Durkheim. É, no mínimo, muito plausível que a religião evangélica e, em certo grau, o catolicismo romano sejam as razões por que as mortes por desespero no Brasil não têm números muito piores que os que temos atualmente.
Em um mundo possível, Silvio Almeida buscaria o apoio das igrejas para políticas pró-família. Ele faria isso, claro, se não fosse marxista. A carga de ópio é elevada
O ministro Silvio Almeida é um marxista. Suponho que, a despeito disso, ele seja menos obtuso que seu mestre, e não considere a religião o “ópio do povo”. No que se refere ao governo que o contratou, no entanto, a religião parece não contar substantivamente no trato das questões nacionais. Ela só interessa na qualidade de repetidora da ideologia política. Temo, no entanto, que os evangélicos sejam a última barreira entre o povo e o “ópio” que o ministro quer descriminalizar.
Em um mundo possível, o ministro buscaria o apoio das igrejas para políticas pró-família, para o empoderamento social e econômico de pais negros e pardos, para a empregabilidade para homens oriundos de comunidades, ofereceria incentivos para ministérios de capelania religiosa no sistema prisional, e o suporte técnico construtivo (para além da mera fiscalização) às comunidades terapêuticas cristãs. Ele faria isso, claro, se não fosse marxista. A carga de ópio é elevada.
Esse é o barato da esquerda no poder: tirar do povo o “ópio” religioso e dar-lhe o ópio de verdade. Veremos como ficará o Brasil depois dessa maresia brava.
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