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No que se refere à ADPF 811, Inês é morta. O caso foi encerrado com uma derrota humilhante para os defensores da inviolabilidade da liberdade de crença, e de sua inseparabilidade da liberdade de culto, aliviada apenas pelo voto simpático do ministro Dias Toffoli, que estendeu a mão ao ministro Kassio Nunes Marques.
As reações entre cristãos variaram da celebração à consternação, passando por apatia, perplexidade e raiva. Mas, embora a diversidade de percepções seja grande, é nítido que uma parcela significativa e barulhenta reagiu mal à coisa toda.
Sou membro do IBDR, um instituto que se fez representar através de Thiago Vieira como amicus curiae nesse importante julgamento, e compartilho com o instituto dessa defesa intransigente da inalienabilidade da liberdade religiosa. Ao mesmo tempo, penso que nenhuma igreja deveria celebrar cultos públicos expondo seus membros e a sociedade a elevado risco de saúde e de vida; assim, em momentos de piora nos índices de contaminação, elas deveriam fechar.
O STF sacramentou uma clivagem entre liberdade pessoal de crença e de consciência e a liberdade de culto enquanto prática e vivência coletiva e pública. Trata-se de um evento grave
Gostaria de compartilhar com meus leitores esse dilema, minhas impressões e o rumo a tomar diante dele. Tenho um palpite: acho que o Altíssimo enviou uma mensagem aos cristãos brasileiros ontem.
Pela liberdade de culto
Pois bem; por um lado, compartilho com tantos amigos conservadores e também irmãos de fé do entendimento de que a criação de semelhante jurisprudência pelo STF é extremamente danosa para o entendimento e a prática da liberdade religiosa em nosso país. Em meu entendimento, e do IBDR, o STF sacramentou uma clivagem entre liberdade pessoal de crença e de consciência e a liberdade de culto enquanto prática e vivência coletiva e pública. Trata-se de um evento grave, no qual um entendimento claramente pobre e secularizado da religião, emanado por mentes desacostumadas à piedade e à vida religiosa, se projeta sobre comunidades religiosas inteiras definindo a natureza de sua prática.
Essa decisão abre sério precedente para possíveis futuras intervenções do Estado em assuntos nos quais pessoas secularistas e alheias à religião organizada entendam que o cerceamento de atividades públicas da religião é aceitável, uma vez que suas crenças pessoais e sua consciência religiosa individual não tenham sido violadas. O que isso pode significar para comunidades terapêuticas religiosas, escolas e universidades confessionais, direito de família, editoria e jornalismo religioso, e atividade política cristã?
Não quero sugerir que estejamos sob perseguição religiosa e reconheço que tais preocupações são especulativas. No entanto, o impacto dos valores liberais progressistas – do que o entendimento dos juízes na ADPF 811 foi um exemplo típico – nos processos judiciais envolvendo liberdade religiosa em diversos países nos últimos anos e, particularmente, nos EUA, tem sido consistentemente ruim para a religião.
Pelo bem comum
Passemos agora ao outro lado da questão; de modo algum aprovo a abertura de templos e a realização de cultos durante os momentos mais dramáticos e perigosos da pandemia, como os que vivemos desde o princípio de março. Não é descabido mencionar aqui que sou ministro religioso evangélico de raiz batista, e que nossa congregação evangélica constituiu uma equipe de protocolo de saúde, de modo a manter as práticas da comunidade alinhadas com o melhor conhecimento sobre medidas de proteção e aspectos legais. O conselho da comunidade escolheu proteger as pessoas e cooperar com a sociedade, e proibições da prefeitura de nossa cidade seriam para nós instrumentos inócuos e supérfluos.
Eu não sou uma exceção. Conheço dezenas de pastores que se esforçaram para cooperar com as autoridades, para se informar sobre evidência científica, e para fazer o melhor para as suas comunidades.
De modo algum aprovo a abertura de templos e a realização de cultos durante os momentos mais dramáticos e perigosos da pandemia, como os que vivemos desde o princípio de março
Mas a existência de tantos líderes e leigos cristãos, tanto evangélicos quanto católicos, que rejeitam totalmente essa abordagem é um fato público e, em minha perspectiva, escandaloso. Refiro-me especificamente ao esforço contínuo para encontrar e propagar narrativas paralelas sobre a ineficácia de lockdowns, quarentenas, máscaras, e até mesmo de vacinas, misturando argumentos contra as quarentenas em nome da “economia” com novos argumentos em defesa da liberdade religiosa.
Há inclusive alguns exemplos infames de tal mentalidade. Enquanto o STF julgava a matéria houve reuniões de religiosos evangélicos sem máscara e realmente aglomerados – digo, abraçados uns nos outros – clamando a Deus em alta voz por uma resposta. Sinto-me inclinado a pensar que a resposta do STF, mesmo que questionável em termos de direitos humanos, pode ter sido mesmo uma resposta de Deus à falta de bom senso de uma parcela das igrejas e dos líderes religiosos.
Forma e liberdade
Concordar com reivindicações de ambos os lados desse importante debate me lança em um trágico paradoxo. Reconheço que se a tese do IBDR, da Anajure e de outros advogados obtivesse sucesso, é líquido e certo que teríamos uma profusão de casos de igrejas abusando de sua liberdade religiosa colocando em risco seus fiéis e a sociedade.
Sim, dirão tantos e eu mesmo: são os custos da liberdade. Aceitar uma sociedade livre é aceitar certo ônus, para a coletividade e o risco de alguns indivíduos prejudicarem a si mesmos e a outros no uso de sua liberdade. No entanto deve haver limites aí. Se a liberdade é persistentemente empregada para promover a sua própria destruição, temos uma irracionalidade moral, e isso pode se tornar um processo sistêmico.
Eu penso, por exemplo, que algumas correntes do Direito de Família contemporâneo, com sua ênfase terapêutica na absolutidade do bem-estar e da felicidade dos indivíduos, carregam uma irracionalidade sistêmica em seu ventre. O movimento dos “direitos afetivos”, para ser específico, labora no erro de absolutizar a felicidade afetiva, tornando a fidelidade e a virtude moral subsidiárias em relação à felicidade. Ora, é claro que não é possível construir vida moral coletiva dizendo a cada indivíduo que a felicidade dele está acima de tudo. A liberdade dos indivíduos deve ter limites, do contrário não haverá família. Como isso não se aplicaria, portanto, ao campo da liberdade religiosa?
Se a liberdade é persistentemente empregada para promover a sua própria destruição, temos uma irracionalidade moral, e isso pode se tornar um processo sistêmico
Francis Schaeffer, um dos grandes líderes evangélicos do século 20 e fundador da comunidade L’Abri, na Suíça, falou com muita propriedade sobre o problema da relação entre forma e liberdade no mundo moderno. Penso que ele nos ajuda a entender o que vem ocorrendo no Brasil, neste trecho de The Great Evangelical Disaster:
“Aqui o problema dos anos 1920 aos 1980 foi propriamente expresso. É a tentativa de ter liberdade absoluta – de ser totalmente autônomo em relação a quaisquer limites intrínsecos... nomeadamente o problema de forma e liberdade. É um problema que toda cultura desde o princípio da história teve de confrontar. O problema é o seguinte: se não há um equilíbrio apropriado entre forma e liberdade, então a sociedade se moverá para um de dois extremos. A liberdade, sem o equilíbrio da forma, levará ao caos e à ruptura da sociedade. A forma, sem o equilíbrio da liberdade, levará ao autoritarismo. Mas note: nenhuma sociedade pode existir em estado de caos. E sempre que o caos reina por algum tempo, dá à luz à imposição do controle arbitrário... Há um equilíbrio entre forma e liberdade que nos acostumamos a pensar que é natural, no mundo. Mas ele não é natural.”
Pois bem, aqui está a minha interpretação schaefferiana do que está acontecendo. Um processo de alienação social dos setores conservadores e religiosos da sociedade, provocado por uma elite cultural Weird e de esquerda, criou condições para a emergência de um movimento de ultradireita. Esse movimento inflamou o caos, reivindicando liberdade. Mas essa liberdade – traduzida em termos de liberdade religiosa – evidentemente agravou a convulsão social provocada pela pandemia da Covid-19. E isso motivou um gesto autoritário do STF.
Seria realmente maravilhoso o quadro de um movimento nacional das igrejas cristãs comprometido com a saúde pública, com o bem comum, realizando seus atos de diaconia para socorrer pessoas com necessidades causadas pela pandemia e combatendo a desinformação. Mas esse quadro não existe. O que temos é um grande motim social, que tem algumas razões, mas também muita irracionalidade. O que temos é o que, na linguagem da teologia moral cristã, nós chamamos de libertinagem: usos irracionais e viciosos da liberdade.
Mas notem: não digo, com isso, que o STF agiu “certo”. Talvez, em sua ansiedade moral, em sua preocupação com a saúde pública e para evitar algumas dezenas de milhares de mortos. Mas não podemos fechar os olhos para o fato de que se criou uma jurisprudência que pode não ser ruim – Deus queira! –, mas tudo indica que é.
Enfim, o ponto crucial: onde está o “pecado original?” Na concepção de Schaeffer, não há dúvida: no abuso da liberdade. E, se minha leitura da coisa estiver certa, os cristãos que abusaram da liberdade religiosa descuidando do bem comum são corresponsáveis, com o STF, pela presente ameaça à liberdade religiosa.
Uma resposta de Deus?
Eu sugeri acima que a decisão do STF pode ser uma resposta do alto. Assim mesmo como foi: torta, politizada, questionável, triste; mas, ao mesmo tempo, a mais consistente com o combate efetivo à pandemia no presente imediato.
Ora, segundo Jean Pierre de Caussade, o momento presente é como um “sacramento”. O sacramento do momento presente significa que os desafios e dádivas que Deus coloca diante de nós em cada momento são o lugar de nos encontrarmos com Ele. Na graça e no desafio de hoje Ele nos encontra. Consideremos a derrota da tese de inviolabilidade da liberdade de culto hoje no STF: por que não tomá-la como o lugar em que o Senhor encontra as igrejas brasileiras?
Sim, Deus permitiu uma derrota pública, embora não completa, da liberdade religiosa e, certamente, da libertinagem religiosa. Mas isso é tudo? Creio que não. A possibilidade de pensar em como servir ao bem comum e praticar a fraternidade, mesmo sofrendo um prejuízo, continua possível. Podemos mostrar ainda a que viemos. Não é com o bem que se vence o mal?
As Escrituras bíblicas ensinam em diversas passagens que Deus usou reis e impérios ímpios como os assírios, os egípcios e os babilônicos para castigar e disciplinar seu povo. Muitas vezes esse castigo era desproporcional, injusto. Mas era necessário para chacoalhar o povo de Deus. Será possível que o Senhor, por meio de exageros e omissões de nossa corte suprema, tenha nos advertido sobre nossas prioridades? Será que colocamos nossos direitos acima de nossos deveres, exatamente como alguns movimentos ideológicos e espirituais que nós criticamos em nosso país?
Alguns dirão que não podemos ser passivos, e que sem luta não há direitos. Vejo se hastearem bandeiras para a “guerra santa” (por ora apenas de palavras, graças a Deus). É verdade, sem luta não se consolidam direitos. No entanto, o cristianismo propõe uma forma bastante contraintuitiva de lutar: “buscai em primeiro lugar o reino de Deus, e a sua justiça, e todas as coisas vos serão acrescentadas”. Isso foi o que Jesus disse. Precisamos de liberdade de culto; mas talvez Deus queira outra coisa de nós nesse momento.
Resta a nós, agora, perguntar: como podemos ajudar aqueles que dos quais discordamos sobre liberdade religiosa e à sociedade como um todo, para enfrentar a pandemia da melhor forma possível? Penso que é lá que encontraremos o nosso Senhor. E, para reforçar meu ponto, convido os amigos à leitura do profeta Isaías:
“Clama bem alto e não te detenhas; levanta a voz como a trombeta; anuncia ao meu povo a sua transgressão, e à linhagem de Jacó, os seus pecados.
Ainda assim eles me procuram todo dia; têm prazer em conhecer os meus caminhos, como se fossem um povo que pratica a justiça e que não abandonou a ordenança do seu Deus. Pedem-me juízos corretos, têm prazer em se chegar a Deus!
Por que jejuamos, dizem eles, e não atentas para isso? Por que nos humilhamos, e tu não o sabes? No dia em que jejuais, cuidais dos vossos negócios e exigis que se façam todos os vossos trabalhos.
Jejuais para brigas e rixas, para ferirdes com punho pecador! Se quiserdes que a vossa voz se faça ouvir no alto, não jejueis como fazeis hoje.
Seria esse o jejum que escolhi? Um dia para que o homem se humilhe, incline a cabeça como o junco e deite-se em pano de saco e cinza? Chamarias isso jejum e de dia aceitável ao Senhor?
Por acaso não é este o jejum que escolhi? Que soltes as cordas da maldade, que desfaças as ataduras da opressão, ponhas em liberdade os oprimidos e despedaces todo jugo?
Não é também que repartas o pão com o faminto e recolhas em casa os pobres desamparados? Não é que vistas o nu, o cubras e não deixes de socorrer o próximo?
Então a tua luz romperá como a alva, e a tua cura logo chegará; a tua justiça irá adiante de ti, e a glória do Senhor será a tua retaguarda.
Então clamarás, e o Senhor te responderá; gritarás, e ele dirá: Aqui estou. Se tirares o jugo, o dedo acusador e o falar com falsidade do meio de ti;
e se abrires a alma ao faminto, e fartares o aflito, a tua luz nascerá nas trevas e a tua escuridão será como o meio-dia.” (Isaías 58,1-10)
Deus permitiu uma derrota pública, embora não completa, da liberdade religiosa e, certamente, da libertinagem religiosa. Mas isso é tudo? Creio que não. Podemos mostrar ainda a que viemos. Não é com o bem que se vence o mal?
Arrisco-me a fazer uma aplicação desse trecho da Escritura à querela presente. Queremos muito cultuar; queremos fazer nossos “jejuns e orações”. Mas o Senhor nem sempre está interessado nisso. Parece que, às vezes, tudo o que ele quer é que olhemos ao redor. Parece que ele não se interessa muito por jejuns misturados com brigas, nem por cultos cuja finalidade é elevar o engajamento político. Parece que o culto que o Senhor deseja é a promoção do bem dos outros – o bem comum. Deus aguenta ficar sem o nosso jejum e sem o nosso culto dominical. O que ele não suporta é uma congregação de pessoas que não se importa com os outros.
E, assim como o profeta anuncia, se abrirmos o nosso coração para os outros, a nossa luz nascerá nas trevas. Nós teremos a nossa liberdade religiosa. Mas talvez tenhamos de perdê-la primeiro, até aprendermos a usá-la. Talvez Deus queira desviar os nossos olhos das nossas liberdades e nos lembrar de nossos deveres com a fraternidade e o bem comum. Talvez o Senhor esteja abalando levemente uma das nossas mais prezadas liberdades para nos fazer lembrar por que somos cristãos.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos